O Grande Livro Marrom escrita por Fernando Cabral


Capítulo 2
O Segundo Baralho




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Já era noite avançada, e Clow caminhava por ruas estreitas e molhadas, obra de um chuvisco que acabara de cair. Num piscar de olhos, apareceu sobre o telhado de um dos prédios da rua. Olhou sorrindo para o céu, que já estava ficando limpo. Um vento fresco corria por ali, afastando para longe as nuvens já não tão carregadas.

Estava com quinze anos e havia perdido seus pais de uma forma que só filhos de magos poderiam perder, e não gostava de falar sobre o ocorrido. Ficara com a casa na qual passara a infância, mas o lugar só servia para lhe trazer lembranças dolorosas de como fora feliz ali. Nem a cerejeira que tanto gostara conseguia o animar mais. Herdara também uma fortuna que seus pais haviam deixado em um banco.

A única coisa a qual ficara apegado era seu baralho.

No dia em que pela primeira vez lera cartas, sua mãe voltou ao quintal para recolher as sobras do lanche e se deparou com o filho estarrecido, enquanto parte de um dos baralhos voava a seu redor. Ela o ajudou a sair do choque e o levou para dentro. Lá, junto de seu pai, conversou com o menino e lhe explicou algumas coisas sobre leitura de cartas e perscrutação de sonhos, do futuro e das estrelas. Com essa conversa, Clow ficara mais calmo e se sentiu tentado a voltar a conversar com as cartas, o que fez no dia seguinte. Sua mãe, nesse mesmo dia, o presenteara com um novo baralho, dizendo que a leitura ocorreria de forma mais fluente caso as cartas fossem de propriedade dele. Em seguida, seu pai lhe entregou uma espécie de caneta, que escrevia a nanquim, e disse para escrever seu nome em todas as cartas, dessa forma elas não se esqueceriam de quem era seu dono.

E esse baralho era o mesmo que Clow levava sempre consigo, não importa para onde fosse. Seu nome estrava gravado em cada carta, com a tinta já envelhecida e em uma grafia infantil. Se sentia totalmente dependente delas, afinal, depois da morte de seus pais, foram elas quem continuaram a mentoreá-lo.

O menino as trazia no bolso de seu sobretudo negro naquela noite fresca. Sentado no telhado, observando as nuvens correrem no céu, Clow pegou o baralho e segurou uma das cartas na mão. O general. Encarou a figura por um tempo, em seguida a guardou de volta em sua embalagem, e por sua vez, colocou a embalagem de volta no bolso, passando então a espiar a cidade em volta.

A maior parte das casas estava com as luzes apagadas, o que deixava a cidade parcialmente às escuras. Os responsáveis pela maior parte da claridade àquela hora da noite eram os postes das ruas e praças. Esse era o horário preferido de Clow, pois era quando a cidade ficava mais calada.

Mesmo tendo só quinze anos, Clow usava óculos. Começara a usá-los pouco antes de seus pais morrerem, e escolheu uma armação idêntica à da mãe. Com seu poder se desenvolvendo, as cartas o informaram que, se quisesse, não precisaria mais depender do objeto para enxergar direito, mas o jovem resolveu mantê-los. Clow só não tinha a aparência muito próxima da mãe, pois usava os negros cabelos quase tão grandes quanto eram os do pai, e também os deixava presos num rabo de cavalo. A preferência por roupas de cor preta também havia sido herdada dele.

Depois de ficar sentado no telhado por um pouco mais de uma hora, Clow se levantou para voltar para casa, mas não antes de deixar uma pequena surpresa para o donos da casa da qual estava no telhado. Ele nunca usava o mesmo telhado, e sempre deixava alguma lembrança. Sentia que treinava seu poder mágico dessa forma. O que fez dessa vez foi deixar a hera que havia dentro do quintal da casa num tamanho quase gigantesco. No dia seguinte, os donos da casa não entenderiam o que poderia ter causado o crescimento repentino da planta, e isso divertiu Clow.

Satisfeito, voltou para casa. Chegando, pegou na cozinha um de seus doces favoritos, um tipo de bolinho de arroz com morango dentro, e se jogou numa poltrona. Ainda mastigando, pegou suas cartas e as abriu na mão como um leque. Havia passado a chamá-las de “Cartas-mentoras”, devido ao fato delas o ajudarem a desenvolver seu potencial mágico. Achou que era uma boa hora para se comunicar com elas e as espalhou no chão.

Clow as dispôs em pares e começou a revelar uma dupla por vez. Elas lhe revelaram que seu poder já era suficiente para começar a ler o futuro utilizando-as, embora, disseram, para protegê-lo, não mostrariam partes de seu futuro para os quais não estivesse preparado para saber. O jovem respondeu que não queria ter nada escondido de si e que exigia saber de tudo, afinal estava dialogando com seu próprio potencial mágico, mas o que as cartas replicaram foi que ele ainda não tinha forças para controlar sua magia, então ela mesma decidiria o que seria bom ou não para ambos. Clow se irritou e estava decidindo se voltaria ou não a falar com as cartas, quando elas lhe revelaram que dentro de algum tempo ele seria capaz de perscrutar o futuro mesmo sem elas, o que o acalmou um pouco, mas não completamente.

Foi até a cozinha para pegar mais doces e retornou à sala, sentando-se no chão, dando uma mordiscada num bolinho e voltando a atenção às cartas.

Elas lhe revelaram que haveria uma época em que a leitura do futuro seria apenas um poder derivado de outro maior: o de transcender o tempo e se projetar para o futuro; e nem esse seria seu limite, pois ele viria de outro grande poder, esse sim sendo o seu maior dom, e por isso, o mais invejado: Clow teria capacidade de atravessar dimensões.

O garoto não tinha muita ideia do que isso significava, mas sabia o suficiente para perder o apetite. Tinha ficado realmente assustado. Se isso o que acabara de saber era verdade, não imaginava as coisas que estavam sendo escondidas dele.

Se seu poder era tão grande assim, pensou, deveria dividi-lo. Poderia ser a única maneira de acertar as coisas e conseguir viver uma vida normal. Não queria toda essa responsabilidade sobre si. Ele poderia acabar envolvendo outras pessoas, caso perdesse o controle de sua magia. Seria uma vida de extrema e constante vigilância.

Clow parou de ler as cartas e passou a pensar numa maneira de dividir seus poderes. Deveria ser de uma forma que ele já fosse capaz de executar, mesmo ainda não estando com seu potencial em plena forma. Teria de ser em algo simples…

Ao pensar tais coisas, seu olhar voltou para o baralho, que ainda estava espalhado sobre o chão. Então a ideia surgiu como num clique da sua mente. Criaria cartas, novas cartas. Faria um baralho só dele, e dividiria seu poder nele. Sendo assim, aproveitaria para dar uma personalidade para cada uma das figuras, assim teria companhia, e não precisaria ficar conversando com seu próprio poder, o que, além de ser assustador, era quase a mesma coisa que bater papo consigo mesmo.

Deixou seu atual baralho no chão e correu para o sótão de sua casa, sem esquecer de pegar de volta o bolinho que havia deixado de lado, tornando a comê-lo no caminho, com o apetite restaurado. Chegando no segundo andar de sua casa, puxou a corda que fazia com que a escada de acesso ao sótão descesse e em seguida subiu para lá, pulando de dois em dois degraus.

Lá dentro estava muito empoeirado, mas Clow não ligou para isso, se dirigindo rapidamente a um grande baú que estava em um dos cantos do cômodo. O abriu, retirou alguns objetos que estavam lá, levantando muita poeira no processo, até que encontrou o que procurava: folhas de um papel grosso. Parecia ser do mesmo material no qual foram feitas as cartas que estavam naquele momento no chão da sala. O jovem passou a mão pelos papéis, retirando um pouco do pó cinza que estava sobre ele, e desceu com as folhas de volta para o primeiro andar, esquecendo de fechar o sótão ao sair.

De volta à sala, sentou-se novamente no chão. Primeiro precisava decidir quantas cartas haveria no novo baralho. Parou para pensar um pouco e chegou à conclusão de que, antes disso, deveria escolher quais seriam essas cartas.

Passou para a poltrona, se sentando com as pernas jogadas por cima de um dos braços dela, enquanto sua cabeça ficava apoiada no outro, mordiscou o bolinho de arroz com morango e começou a matutar.

Cartas iguais às que sua mãe lhe dera não teriam a mínima graça. Além disso, não pretendia que seu novo baralho tivesse nenhuma figura igual a outra. Se queria dividir seu poder, poderia separar cada uma de suas habilidades e colocar nas cartas, dando o nome dessa mesma habilidade para cada uma delas, respectivamente.

Levantou, foi até o escritório que era de seus pais, pegou uma folha de papel comum, um lápis, e voltou para a sala. Àquela hora já era quase de manhã, mas Clow não ligava. Poderia dormir até a hora que quisesse no dia seguinte. Um vento gelado entrou pela janela da sala e o garoto a fechou, tornando o ambiente um pouco mais quente e agradável. Sentou à mesa, para poder escrever, e pensou nas habilidades que possuía. Descobriu que era algo difícil de se fazer. Buscou na memória por algo que tivesse criado, e a primeira coisa da qual lembrou foi de ter feito crescer a planta da casa a qual estivera no telhado. Era um truque que gostava bastante de fazer. Anotou “crescer plantas”, mas achou meio estranho para o nome de uma carta. Deixou assim por enquanto e passou para a próxima. Uma das coisas que mais o divertia em relação a seus poderes era magia elemental, então poderia criar uma carta para cada elemento também, pensou.

Depois de matutar por quase uma hora, Clow decidiu consultar suas cartas atuais, para ver se elas poderiam ajudá-lo em algo. Elas revelaram que, se ele se concentrasse nos principais tipos de cartas que desejava criar e fizesse o encantamento correto, seu próprio poder se dividiria e criaria as figuras a partir do papel que ele havia trazido do sótão. O jovem achou aquela uma boa ideia, mas primeiramente pensaria mais um pouco sobre o baralho que criaria.

Depois de rabiscar todo o papel que havia pegado no escritório, Clow se sentia pronto para começar. Pôs as folhas no chão da sala, juntamente com o papel que havia rabiscado com as ideias, além do baralho que sua mãe havia lhe dado. Buscou seu cajado e ficou no centro do cômodo, tendo os demais objetos a sua volta. Fechou os olhos e começou a pensar no encantamento que lhe havia sido passado pelas cartas.

Um vento muito forte começou a circular pelo cômodo, fazendo com que o material do chão levantasse voo. Clow não via nada, pois mantinha seus olhos fechados, para manter uma melhor concentração.

O ritual demorou mais de meia hora para terminar, e, ao finalizar o processo, Clow caiu ali mesmo onde estava, sobre o tapete da sala, dormindo de exaustão.

Na manhã seguinte, Clow acordou com o rosto amassado, tendo os padrões dos fios do tapete da sala impressos na bochecha. Primeiramente ficou perdido, pois não costumava dormir no chão da sala, mas então se lembrou de tudo o que passara. Ao levantar o tórax, passando a ficar sentado, o jovem notou que ao seu redor haviam muitas cartas espalhadas, formando uma espécie de círculo bagunçado a sua volta. Antes que pudesse analisar o desenho no verso das cartas, elas começaram a emitir uma intensa luz e levitaram, como se dançassem numa roda. Então não havia mais cartas. Seres de luz faziam uma ciranda em volta do mago, que ficara encantado com a visão. Alguns tinham formas de animal, outros eram humanóides e uns se pareciam objetos. Depois de alguns segundos de dança, as personificações pararam, encararam seu mestre por um momento, exalando uma aura de felicidade, e se tornaram novamente cartas, e voltando ao chão. Ainda impactado com a emoção da visão, Clow pegou uma das cartas, observando seus detalhes. O desenho e a moldura eram de um bege parecido com a cor da areia. O verso da carta possuía, em cor dourada, um círculo mágico composto pela Lua e pelo Sol, o que simbolizava a junção da magia ocidental com a oriental. O círculo ficava sobre um fundo vermelho de tom próximo ao do sangue. Na parte da frente da carta havia o desenho de uma mulher com grandes asas de fada, que Clow lembrara acabar de ter visto encarando-o com carinho. O título da carta era Vento.


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