O sussurro dos injustiçados escrita por Talmud


Capítulo 2
Capítulo 2 - Sinais no espelho




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A estratégia de correr pelas ruas durara exatos quinze passos. O vento fustigante somado à crescente camada de neve da calçada e às pesadas roupas do menino esgotaram quase que instantaneamente suas reservas de energia, que já não eram tão altas, considerando seu porte não muito atlético.

Andando vagarosamente, Adam mentalmente amaldiçoava sua diretora por ter tido a brilhante ideia de abrir o colégio em um dia de nevasca, pensamento que lhe fez refletir sobre o quão monótona seria sua manhã. Duvidava seriamente que a mãe de mais alguém seria louca o suficiente para despachar seu filho para a escola em um tempo como esses, o que lhe renderia um dia inteiro sozinho na escola encarando professores igualmente animados por estarem ali.

Ao contornar a rua principal, Adam se viu percorrendo uma parte da cidade que nunca tinha percorrido antes. Lojas antigas, casas caindo aos pedaços e até mesmo um prédio aparentemente abandonado faziam do cenário uma paisagem ideal para um remake de Chernobyl. O que chamou sua atenção, porém, foi uma única loja, um pouco mais a frente, aberta em meio à fileira de placas " fechado no momento".

Apenas metade do caminho já tinha sido percorrido, e já eram sete horas. As aulas começavam sete e vinte, o que tornava humanamente impossível a tarefa de não se atrasar. Por puro desencargo de consciência, Adam continuou seu caminho, afinal, ainda havia tempo para chegar na segunda aula. Mais alguns passos e o menino passou, enfim, em frente ao enigmático comércio. A loja era pequena, com paredes internas de madeira e centenas de espelhos expostos com preços pendurados. Mesmo aberta, não se viam vendedores ou caixas, as luzes estavam apagadas e um sentimento de " Melhor sair logo daqui" tomou conta de Adam.

No momento em que ia se virar, porém, viu com o canto dos olhos um vulto passando entre os espelhos. Em seguida, em cada um dos espelhos da vitrine ( Agora embaçados) ficaram nitidamente escritas palavras aleatórias, as quais Adam olhou intensamente, decorando-as com certa facilidade e buscando algo que lhes conectasse.

Em um piscar de olhos, as letras sumiram, transformando novamente os objetos misteriosos em simples decorações domésticas. As luzes da loja foram acesas, comando que tirou Adam de seus devaneios e lhe lembrou que aquilo definitivamente não era normal, re-acendendo em sua mente a sensação de " Eu não deveria estar aqui". Assustado, disparou imediatamente para a escola, novamente não obtendo sucesso em sua tentativa de correr. As palavras dos espelhos saltavam em sua mente, e sua composição não parecia, aos olhos do menino, possuir muito nexo.

"Retsacnal"

"Saisélaf"

"5,3"

"Sairdnôcotim"

"Ogimoc oãtse sevahc saus"

Nada fazia muito sentido, e Adam decidiu relevar, afinal, estava cansado de andar e definitivamente não seria a primeira pessoa a sofrer pequenas alucinações durante uma nevasca. O frio pode realmente mexer com as pessoas.

Mais quarenta minutos de uma torturante caminhada e Adam finalmente chegou ao colégio. Atrasado, como previsto . A primeira pessoa a lhe cumprimentar foi o porteiro, cujo nome poucos realmente conheciam. Assim como diversos outros profissionais terceirizados, não tinha uma real identidade como pessoa em seu trabalho, e "porteiro" tornou-se, ao menos ali, seu novo primeiro nome.

– Adam, é você?! Sai dessa neve! Céus...

– Oi! Estou um pouco atrasado, eu acho... Mais alguém veio?

– Além dos professores? Não, ninguém. Além da Margot, é claro. Venha, me siga, como só tem você aqui não vou precisar abrir a sala grande.

A palavra que melhor descreveria o colégio é, indiscutivelmente, impressionante. Construído em uma tentativa de copiar o estilo gótico, passa uma sensação de insignificância a quase todos que o visitam pela primeira vez. O elemento que mais se destaca é a altura : A maior parte das áreas comuns ( com exceção das salas de aula ) possui um pé direito de, no mínimo, oito metros. Vitrais gigantescos com cenas marcantes da bíblia enfeitam os tetos dos salões, permitindo uma iluminação natural quase perfeita, o que justifica a quase ausência de lâmpadas na parte interna da escola. A escolha da cor escura do revestimento das paredes , ao menos, é sensata : O tempo em Terwinland é severo, e cores escuras absorvem melhor os escassos raios solares do inverno.

A junção de todos esses elementos fazia de Clue I algo que parecia muito mais uma igreja que uma escola. Todo o luxo, que inviabilizaria claramente os lucros da instituição tem, porém , uma explicação. O fundador, um antigo habitante que ficara bilionário investindo em extração de petróleo, buscava muito mais exaltar seu Deus e proporcionar uma melhora na infraestrutura e qualidade de vida da pequena cidade que lucrar em cima da escola.

Adam sempre achou que o motivo de toda a "bondade" do fundador era se marcar como um ícone histórico da cidade, mas não reclamava : Assim como a maioria dos alunos, possuía uma bolsa de estudos, mantida simplesmente por não tirar notas extremamente abaixo da média e por não apresentar mau comportamento.

Passando pelos altos corredores - Ainda frios, mas muito mais aconchegantes que o gélido vento das ruas - Adam se viu encarando uma jovem menina sentada numa cadeira de rodas. De cabelos ruivos e com uma aparência fraca, Margot - Ou, como era mais conhecida, a " filha da diretora" - estava quase soterrada por meia dúzia de cobertores azuis, observando calmamente a neve cair do lado de fora. Adam nunca realmente se deu ao trabalho de conversar com ela - Era dois anos mais nova, e estava quase sempre rodeada por algum auxiliar, o que tornava a tarefa em algo desestimulante para o tímido menino - .

– Bom dia, Margot! Foi bem na prova? - Perguntou educadamente o porteiro.

– Oi, fui sim. - Se limitou a responder Margot.

Essa simples conversa fez com que Adam se lembrasse do motivo de querer faltar hoje. A prova! Como tinha se esquecido? Se a sala inteira faltasse seria certamente cancelada, mas agora não havia volta. O pior? Não tinha a menor ideia da matéria, pretendia há semanas faltar naquele dia.

– Você vai ficar nessa sala aqui, já vou chamar o senhor Nichols.

Uma ponta de esperança acendeu em Adam. Senhor Nichols dava aulas de história e geografia, e, no auge de seus sessenta e cinco anos, já apresentava os primeiros sinais de Alzheimer. Encolhido atrás de seus pequeninos óculos e de camadas e mais camadas de blusões que imitavam camurça, o professor não parecia nada ameaçador . Pensar que ele se esqueceria da prova por sua doença em estágio inicial não era muito ético, mas essa possibilidade soava extremamente conveniente ao menino.

– Bom dia , meu jovem. Não esperava ver mais ninguém por aqui hoje, já estava quase dormindo no sofá da sala dos professores... Bom, pelo visto temos alunos muito dedicados nessa instituição, meus parabéns.

Adam revirava seus olhos na medida em que o professor terminava sua fala. Nenhum adulto era inocente a ponto de achar que alguém viria para a escola em um tempo como esses, e Sr Nichols provavelmente estava tão animada quanto ele em estar ali. O homem estava quase hibernando em sua cadeira de professor.

– Bom dia, professor! Eu não iria vir hoje, mas minha mãe me obrigou, ando faltando muito. Como foi a sua semana? O senhor parece mais... revitalizado que semana passada! Aconteceu algo? - Adam estava impressionado com sua própria falsidade. Não estava nem um pouco interessado na semana de seu professor, que, por sinal, parecia tão acabado quanto na semana anterior. Precisaria, porém, convencer o professor a não aplicar a prova naquele dia caso se lembrasse dela, e agradá-lo seria um grande primeiro passo para tal.

– Oh, obrigado, Adam. Minha semana foi corriqueira, mas comecei a tomar um medicamento de reposição de cálcio, fico feliz que esteja fazendo efeito. - Sorriu o professor, talvez mais iludido que Fred,o gato da família, que regularmente miava para espelhos buscando afastar seu próprio reflexo de seu território. - Está pronto para a prova?


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