O sussurro dos injustiçados escrita por Talmud


Capítulo 1
Capítulo 1 - A nevasca




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Batia a sexta badalada do sino da igreja de Terwinland quando o irritante, e atrasado, relógio cuco do quarto começara a tocar.

Adam já teria certamente se livrado dele anos atrás, se o mesmo não fosse, de acordo com sua mãe, "Herança de família, antiguidade valiosíssima". Os males do tempo afetaram severamente o pobre passarinho de madeira, que passara a apresentar um ruído estridente e, de certo modo, assustador.

Era novamente inverno, o pior em vários anos, por sinal. O frio congelante da rua somava-se ao calor e conforto das felpudas cobertas de Adam, tirando-lhe toda e qualquer vontade de sair da cama. Contra sua própria vontade, e ainda com olhos zonzos, o menino levanta de sua cama e segue para o banheiro. Escova seus dentes, lava o rosto, troca o confortável pijama pelo apertado uniforme e começa a descer as velhas escadas de sua casa, guiado pelos berros vindos da cozinha:

— Sai da cama, menino. Se não vai se atrasar! O café já está pronto! — Gritava Lilian, sua mãe, que há esta hora já aprontara o café vestindo sua habitual vestimenta de gatinhos.

Gatos, por sinal, eram os animais favoritos da mulher. No auge de seus 40 anos, qualquer um lhe daria facilmente 25 por sua aparência e 50 por suas roupas. Alta, de corpo esbelto, a mãe de Adam poderia perfeitamente vestir um biquíni colado e posar para uma propaganda de produtos cosméticos sem ser criticada. Seu gosto extravagante, porém, fazia-lhe parecer uma verdadeira lunática. Com seus cabelos pintados de laranja, presos em um enorme coque no centro de sua cabeça, o pescoço e pulsos cobertos de adereços prateados, blusões estampados de felinos e uma calça legging preta colada. A mulher seria taxada facilmente de cheiradora de gatinhos pelo primeiro que a visse na rua. Isto é claro, se ela não gostasse de ficar em casa, coisa que adora e que seu trabalho como professora de teologia de uma universidade online convenientemente lhe proporciona.

— Já estou aqui — Respondeu-lhe o menino, quase tropeçando na poça formada pela goteira no teto da cozinha.

— Ótimo, o café já está na mesa. Coma bastante, vai precisar... Seu ônibus não está funcionando hoje.

— De novo? Já é o quinto dia seguido, não vou andar três quilômetros só para ir à escola. Não tem nada lá em dia de nevasca.

— Ah, você vai. Já faltou nos últimos quatro dias, está ficando acomodado. E não são três quilômetros, são cinco. A rua principal está interditada pela neve.

— O que?! Definitivamente não vou. - Respondeu o menino, exaltado.

— Vai sim, e se achar ruim vendo seu computador.

O coringa foi usado. Embates entre as duas personalidades fortes eram frequentemente resolvidos com essas simples palavras.

– Tá, eu vou — bufou o menino, enquanto engolia rapidamente o suco preparado por sua mãe.

A mãe sorriu triunfante, gesticulando para as blusas esticadas sobre uma cadeira enquanto cantarolava:

— Seus blusões estão bem ali, vista todos pra ficar bem quentinho no caminho.

Adam fez uma cara azeda.

— Não se esqueça de seus remédios. — acrescentou a mulher — Estão na pia, duas pílulas hoje.

Adam sofria de esquizofrenia. Doença que lhe proporcionara, em sua infância, alguns "amigos imaginários", que lhe forçaram a ser o verdadeiro terror das creches escolares. Aos seis anos, após uma relutante visita ao psiquiatra, foi-lhe dado seu diagnóstico. Desde então o garoto nunca deixara de tomar, diariamente, duas grandes pílulas vermelhas, que lhe garantiam a plena saúde mental.

— Tá bom, tá bom.

— Não fica assim, filhote — o menino encenou vômito, odiava ser chamado assim — Mamãe te ama, tá bom?

— Tá, tá — levantou-se rapidamente, derramando acidentalmente o resto de suco em sua blusa.

— Santa incompetência... — comentou a mãe, revirando os olhos — Vá trocar de roupa, você tem muito que o andar ainda.

Adam a fuzilou com os olhos, voltando para seu quarto e trocando de roupa. O relógio apontava tremulamente seis e vinte, indicando ao menino que precisava se apressar. Voando pelas escadas e abrindo a porta com demasiada violência o garoto se despediu, com um simples "Tchau mãe", com a sensação de ter se esquecido de algo realmente importante.

O frio do ar da rua lhe gelou a espinha e fez com que rapidamente esse algo fosse esquecido. Algumas horas depois, Lilian, em busca de petiscos para Fred, seu gatinho favorito, rendeu-lhe - com razão - uma enorme preocupação. Lá estava, do lado de um copo d'água, o algo que geraria futuramente um motivo para preocupações ainda maiores: Duas pílulas, vermelhas grandes e brilhantes como as mais preciosas das rubis, observando-a como dois assassinos olhos. Olhos que teceriam a mais cruel das vinganças pela traição de terem sido esquecidas e largadas perante uma reles pia de mármore por seu ingrato e insolente amante.


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