Inesperado escrita por Kam_ted


Capítulo 1
Capítulo 1




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 Aconteceu no intervalo para a próxima aula; os alunos levantaram, falavam alto, alguns esperavam pela entrada do próximo professor.

 Permaneci sentado na cadeira com a cabeça apoiada na carteira de trás, ele mexia em meus cabelos, sua testa na altura dos meus olhos, os cachos alourados roçavam na minha fronte; ouvíamos música, cantávamos baixinho. Estávamos concentrados no círculo do nosso entretenimento. Talvez ele estivesse concentrado em outro ponto mas assim eu nos víamos: éramos amigos e um fazia companhia ao outro. Eu estava alheio à situações até aquele determinado momento.

 O professor era de português, amestrado em psicologia. Entrou e, com ele, os alunos caminharam para seus respectivos lugares. As lembranças me ocorrem fugidias na memória, descrever agora me é confuso e complicado. Recordo da blusa social amarela do professor quando perguntou o que estávamos fazendo. Não compreendi a repreensão, queria movimentar meu corpo em resposta como se falasse "nada aqui é sério". Mas o ar emitia a sensação de frieza. Continuei imóvel. O professor não olhava em minha direção, deitava censura para atrás de mim, em único. Perguntou o que ele fazia da vida. Havia em sua personalidade gestos de desdém e irônia, não se deixaria ser humilhado por pessoa nenhuma, e respondeu ao superior da classe:

 - Torço pro flamengo. Eu quis rir mas o ar era gélido e não permitia risadas naquela situação que eu não entendia.

 O professor o perguntou se namorava.

 - Não. Então notei no tom de sua voz uma recusa, um recuo, não havia mais desdém ou ironia mas imploração para não ser entregue a mercê do perigo. Entendi a profundidade que não podia ser tocada. O ar se fez vagaroso. A gota d'água prestes a se acabar no chão.

 O professor queria mais, queria esgotar, queria deixar a mostra o segredo, e precisava desnudá-lo para isso. E sabia que tinha o poder de o fazer, pois notava em seu aluno a alma estarrecida louca para ser dividida, a alma cansada, rastejante. De repente enxerguei, o ar me mostrava a alma dele caída, precisando de ajuda, não a ajuda escancarada que o professor oferecia. Eu estava virada à frente do professor. Quis virar em sua direção e falar que estava tudo bem, que não importava mais as resposta para aquela cena patética, quis que ele se acalmasse no afago dos meus olhos. E o ar se impôs, me fazendo inerte. O professor perguntou se ele gostava de alguém.

 Senti o sangue parar ao ouvir atrás de mim o arrastar da cadeira. Então ele explodiu. Assustei-me, obrigando o corpo a voltar em sua direção. Vi seu rosto vermelho, contorcido, havia lágrimas rolando. Berrava com raiva, as veias saltando na testa, as veias grossas do pescoço enviando grande quantidade de sangue transitório para todo o corpo, enquanto gritava, se jogava fora em resposta ao professor:

 - Gosto. E o pior é que ele não percebe. Quanto mais tenho com ele, mais sinto vontade de possuí-lo. E ele nem sabe.

 Pegou sua carteira e jogou com força no assento vazio ao lado. Não me olhou em nenhum instante. Nada ali era anormal, todos olhavam ligeiramente surpresos, o professor parecia aliviado com a sinceridade rasgada, e eu de pé próximo as cadeiras derrubadas ao chão, paralisado observando olhares que agora deitavam em mim, alguns me chamavam de idiota, burro, lerdo, outros me indicavam para ir atrás dele que acabava de atravessar a porta. Não olhava para ninguém, o ar me transmitia tudo. Sentia uma faca entrar cada vez mais fundo, afetando meu estômago com a descoberta de um amor supostamente por alguém que meu amigo escondia, revelado teatralmente.

 Todos começaram a acompanhar o professor que iniciava qualquer escrita no quadro. A aula havia começado.

 Sai ao encontro dele. Me sentia nauseado, o ar me fazia culpado e ainda não entendia minha participação naquilo tudo, mas algo mais além dizia que eu era o protagonista, estava tão envolvido, ou até mais que ele, que no meu ver era uma vítima. O encontrei no corredor, voltando, estava ileso de qualquer emoção, o rosto estava limpo, nenhum vestígio de lágrimas. Caminhamos em silêncio enquanto voltávamos à classe. Ao chegarmos na porta, lhe falei como se eu estivesse alheio:

 - Queria poder te ajudar...

 Sua voz estava normal, de quando conversávamos amigavelmente, respondeu como se nada houvesse acontecido:

 - Esquece...

 Uma dor invadia o peito e chorei. Ele sentou-se perto da porta, continuei sentado no mesmo lugar. O professor passando exercícios no quadro, pessoas conversavam baixinho, e lágrimas desciam do meu rosto involuntariamente. Apenas sentia que a dor também era minha. Chorava silencioso. Notava seu olhar lá de trás no meu rosto, imaginando que estava chorando. Acabei o exercício, mostrei ao professor na tentativa que deixasse eu ir ao banheiro. Quando voltei, ele não estava mais sentado no seu lugar, em lugar nenhum. Perguntei a pessoa mais próxima e ela disse que ele havia entregado o exercício e havia ido embora.

 Ele nunca mais voltou.


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