Gelo e Calor, Negação e Atração escrita por Blue Butterfly


Capítulo 10
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Eu não durmo direito durante a noite. Como poderia? Eu mal conheço essas pessoas que estão deitadas aqui no chão comigo. Eu não consigo deixar de pensar que, talvez, uma delas seja responsável pelo corte na barriga da médica. E se for, eu não quero baixar minha guarda e correr o risco de ser a próxima. Então eu obrigo meus olhos a ficarem abertos, mesmo meu corpo pedindo por descanço. Quando checo o celular as três da madrugada, esperando encontrar torre e me decepcionando por não ter sequer uma barra, Frankie vem e se senta do meu lado.

'Seria bom se você dormir. Eu faço guarda agora.' Ele me diz. Eu estalo a língua e digo que tô bem, mas ele sabe. Ele parece poder ler minha mente. 'Sério, Jane. A gente precisa de você, eu preciso de você, em bom estado. Durma, amanhã cedo precisamos discutir sobre o que fazer.'

Eu suspiro. Ele está certo afinal de contas. Eu escorrego para o colchão e me cubro. O vento lá fora parece cantar uma melodia a qual eu não gosto - um sopro áspero, metálico como dos filmes de terror. Eu me lembro especificamente de um quando vi quando era adolescente, não me lembro o nome mas é um que nunca vou esquecer. As pessoas sentam em torno de uma fogueira e contam histórias de terror onde todas os protagonistas morrem no final. E, por irônia, no final do filme, todos eles descobrem que estão mortos - mas até então eles não tinham idéia.

E quanto a nós? Estamos mortos também?

Eu me pergunto várias vezes, pensando nas possibilidades. Isso tudo é tão surreal que é difícil de acreditar que está realmente acontecendo. Com pensamentos assim, um tanto quanto insanos, eu acabo pegando no sono.

Quando acordo o sol mal iluminava o céu. O que ouço primeiro é o som de uma chiada, alguém pedindo para outro alguém se calar. Eu franzo minhas sobrancelhas enquanto me levanto, me perguntando quem é responsável pelo som. Quando me viro, o que vejo me faz lembrar do dia anterior, de Brenda, de Maura.

A menina tem as duas mãos pertos da mulher, balançando de cima para baixo lentamente. 'Shhh.' Ela fez de novo. Intrigada, eu apenas sento e observo. Me dou conta do que está acontecendo quando vejo Maura se remexer, franzir o cenho e levar as mãos na barriga.

'Shh. Vai passar. Vai passar.' A menina estava tão concentrada na outra que nem notou minha presença. Ninguém mais está acordado, todos parecem estar dormindo profundamente, como se nenhum mal pudesse nos acontecer.

Até mesmo Frankie. Ótimo trabalho, babaca. Mas eu não posso culpá-lo, ele fez tanto ontem a noite, assim como eu. Eu me sinto exausta. Pernas e braços e costas doendo. Deve ser por isso que não se mexer parece tão convidativo. Eu apenas olho Brenda, então.

'Numa vila afastada há um velho barbudo.' Ela começa a dizer baixinho. Eu penso que é comigo, mas não faz sentido nenhum. 'Sua barba é cinza e longa, e alguns acham que, por isso, ele é sábio. Outros acham que ele está beirando o ridículo. Ele só acha que é divertido ter um visual diferente.' Ela continua e eu entendo que ela está contando uma história. 'Um dia ele encontrou dois meninos na beira do morro, discutindo quem iria matar uma aranha que estava aninhada no emaranhado da corda com que queriam brincar. Aparentemente nenhum deles queria correr o risco de ser picado. Quando os meninos pediram por ajuda, ele coçou a cabeça e disseque ajudaria se, primeiro, eles lhe ajudasse. Ele disse então que estava procurando provas sobre uma teoria que levantara. Ele achava que a coragem tinha escolhido morar só em algumas pessoas e para incitar os meninos perguntou se algum deles tinha a coragem. Eu tenho, disse o menor. Então mate a aranha!, o velho pediu. O menino pareceu hesitar, mas como não queria ter sua braveza questionada, pegou uma pedra e esmagou a aranha com ela. Eu te disse. Ele falou, orgulhoso. O garoto maior abaixou a cabeça. Bem, ele é mais corajoso do que eu. Ele se lamentou. Mais corajoso! O velho exclamou, sorriu e foi embora.'

Brenda então toca o rosto de Maura, os dedos finos afastando fios de cabelo de sua testa. 'Que história boba você me contou, Maura Isles. Ambas sabemos que não é assim que a coragem funciona.' Ela diz e ri baixinho, mas de repente sua expressão fica séria de novo. Isso porque a cabeça da médica virou para seu lado, e a garota agora abriu bem os olhos. 'Maura?' Eu escuto ela dizer.

'Eu estava escutando você.' A voz da mulher vem fraca, rouca. É a primeira vez que a ouço, mas é uma voz tão singular que sei que a partir de agora vou reconhecê-la em qualquer lugar. 'O que aconteceu? Por que minha barriga dói tanto?'

'Eu não sei!' A menina exclama baixinho, parecendo desesperada. 'Alguém machucou você, tinha tanto sangue. Jane me trouxe aqui, e trouxe você.' Eu escuto meu nome e me sinto envergonhada por estar escutando a conversa alhei sem me manifestar.

'Jane, quem?' A outra parece desorientada. Ela fica em silêncio, acaricia o rosto pálido de Brenda. 'Eu não conheço ninguém com esse nome. Onde nós estamos? Brenda, você precisa de sua medicação. Você não pode ficar sem ela.' Vejo Maura tentar se levantar, mas talvez por instinto, por entender melhor disso do que eu, Brenda reage instantaneamente e segura seus ombros contra o chão.

'Você precisa descansar, Maura. Você me disse que quando nos sentimos doentes, nós precisamos de repouso. Ajuda o corpo, se lembra?' Ela diz para a médica com tanta atenção e seriedade que eu quase esqueço de que ela ainda é uma criança. Ela é a médica agora. 'Angela tem tomado conta de mim. De você também. Tinha tanto sangue.' Ela murmura e eu fico impressionada em como ela pode variar de adulta para criança em menos de trinta segundos. Sua voz falha no final, denunciando seu medo.

'Brenda, eu estou bem. Eu juro.' Maura diz. 'Nós estamos seguras aqui?'

A menina balança a cabeça em sim.

'Você tomou mesmo seus remédios?'

De novo, sim. Os lábios curvados para baixo. Ela parece muito mais interessada no estado de Maura do que no seu próprio. 'Como você sempre diz para eu fazer.'

'Perfeito. Vamos dormir um pouco mais. Quando for a hora nós vamos trabalhar nessa bagunça, tá bem?'

'Eu fiquei com medo de você ter me deixado.' Ela confessa para Maura, como se pedindo desculpas por ter duvidado dela. 'Porque você demorou tanto para voltar.'

'Eu jamais faria isso, Brenda.' Maura sussurra para ela, mas eu ainda consigo ouvir.

'Eu sei.' A menina responde. 'Eu posso te abraçar hoje?'

'É claro.'

E então Brenda deixa seu braço pairando sobre o torso de Maura, até que a outra lhe mostre onde é seguro apoiá-lo para não sentir mais dor. A menina meneia a cabeça em compreensão. Quantas vezes elas já fizeram isso antes? Elas parecem tão próximas, parecem se conhecer tão bem. Ainda assim, Brenda tinha temido que Maura a deixasse. Por que ela acharia isso, então?

Eu estudo a menina, agora deitada. Ela me pega encarando, os olhos me implorando por algo. Eu não sei o que é. Eu ainda não criei com ela aquela conexão que as pessoas criam quando se conhecem bem o suficiente para se comunicarem apenas por um olhar. Ah, pelo amor de Deus, eu conheço ela não tem nem 24 horas. Eu ofereço então um sorriso. Ela pisca os olhos e aperta gentilmente o ombro de Maura, mas não tira os olhos dos meus. O que ela está fazendo, então? Protegendo a outra? Cuidando dela? Impedindo-a que levante e vá embora? Aproveitando os últimos dias com ela? O pensamento mais cruel cruza minha mente, e embora seja insensível, pelo que Angela me disse - droga, pelo que essa própria menina disse! - eu acho que ele pode ser muito verdadeiro.


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