Arabella escrita por Selene Aurier


Capítulo 3
Bilhetes de Macchiato




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Alguns dias se passam, e posso afirmar que isso me deixou levemente atormentada. Tentei descobrir o que o adjetivo entediante significava, e quem o mandou, com que propósito. Mas não seria possível, contando que temos quatro blocos de apartamento, não tem assinatura e, assim não é possível saber se se trata de uma garota ou um garoto. Tento tirar isso da cabeça, mas não dá. Simplesmente não dá.

Não me apresentei pelo nome completo nenhuma vez no Right Arrow, professores e coordenadores me chamam por Srta. Moretti, como saberiam meu nome? E qual o porquê de tal comparação com as outras, denominadas entediantes?

Depois de terminar o lanche que pedi e validar o cartão, volto a caminhar. A pulseira de safiras que ganhei de Benedict antes de vir para o Right Arrow balança em meu pulso à medida que ando e me traz lembranças doídas.

Faz muitos anos, mas lembro-me como ontem. O caixão branco com uma bandeira da França sob ele era o que eu enxergava em minha frente, então fui tirada da sala. Benedict ajoelhou-se em minha frente, olhou-me nos olhos e deu um meio sorriso.

“Eu sei que pode parecer que não há nenhuma solução para isso, Ari.” Disse ele. “Tudo o que posso fazer é dizer que estarei aqui pra tudo que você precisar, pequena, sempre. Sua mãe e eu vamos cuidar de você a partir de agora.”

Assenti, sem certeza alguma. Eu era realmente pequena e a ingenuidade era algo que ainda me pertencia. Mas isso acabou há muito tempo.

Durante o coma, eu ouvia as pessoas. Ouvia-as dizer que não teria jeito, ouvia dizerem que eu iria morrer. Mas o pior de tudo era ouvir demonstrações de pena. Eu não sou digna de pena. Concordo, era perturbador não ter a capacidade de nem mesmo abrir meus olhos, e curioso o fato de eu reconhecer o que outros falavam, mas isso não significava que todas as esperanças deviam ser perdidas de todos que me visitavam. Se teve algo que aprendi em meus dezoito anos, foi que as esperanças não devem ser perdidas nunca.

Ao chegar perto da casa de madeira que vira no outro dia, observo o céu e, acidentalmente, trombo em alguém. Balbucio mil desculpas, mas acho que o estrago maior foi em minha boca.

O garoto com quem dei um encontrão tem cabelos loiros e torce a boca em um meio-sorriso.

– Desculpe. – Diz ele. – Espere, isso é...

Coloco a mão nos lábios, e sim, eles sangram.

– Ah, Deus – Ele larga os livros que carregava no chão e tira uma espécie de lenço do bolso, entregando-me em seguida. Limpo meus lábios com o pulso. – Perdão, é sério.

– Fui eu que bati em você – Retruco. – Estou bem.

Ele morde os lábios e franze a testa, em nervoso ou desaprovação.

– Você é a novata, certo? – Ele esboça um sorriso.

Assinto, sem muito ânimo. Pelo menos, é um avanço não ser chamada de “A garota que acordou do coma”.

– Seja bem vinda, Srta. Moretti. – Ele retoma os livros em sua mão. - Eu me chamo Albert Reenceal, sou o monitor do bloco quatro e o representante de algumas aulas.

– Ia me apresentar, mas acho que já sabe tudo sobre mim. – Digo, em deboche, e ele sorri. – Foi um prazer, Albert.

– Ei, espere. – Ele segura meu braço. – Uma pessoa deixou isto comigo.

Ele tira um papel meio amassado e rosado do bolso de sua calça e me entrega. Sua caligrafia é forte e não uniforme, porém é bonita. Reconheço essa letra.

Hesito um pouco, mas então tomo o papel em minhas mãos e agradeço.

Ele murmura um “Tchau” e ando pelo lado contrário seguindo pelo meio de uma espécie de trilha com chão de terra. Meus tênis ficam sujos, mas não ligo para isso. Anda chovendo bastante ultimamente, e isso me revigora a cada vez que acontece. Entretanto, não posso deixar de imaginar que tudo isso foi proposital. Que, ou Albert anda me seguindo, ou o autor dos bilhetes confia nele e o entregou, sabendo que eu iria andar por esse perímetro, como fiz nos últimos dias. Descartei a ideia de Albert ser o autor, pois ele não demonstra ser nem um pouco misterioso, na verdade, só de olhá-lo, vejo que é previsível. Um provável representante da área dos inteligentes, como se estivesse fazendo o papel em um filme americano clichê ou puxando o saco de algum milionário. Não é Albert, essa é a certeza.

Vou até um lugar um pouco mais isolado ainda e sento-me em um pequeno muro, abrindo o bilhete em seguida.

"Doce Arabella,

Imagino que esteja se perguntando quem sou. Talvez não devesse se preocupar tanto, pois mostrarei a você quando quiser. Não vou manter os bilhetes em segredo, não vou manter nada em segredo. Vários sabem o desejo de comunicação que tenho com a senhorita, e não adianta indagá-los quanto a isso, não irão te responder. Estarei na aula de religião. Você só precisa saber me encontrar.

*Obs.: O café Macchiato é meu favorito. Creio que o seu seja o Mocha."

Arregalo os olhos. Ele acertou.

Há dois dias, eu pedi um Mocha. É meu café preferido, e foi o que tomei quando me mudei para o Canadá. Me traz lembranças demais. O modo com me senti quando meus pés pousaram nesse país pela primeira vez, não renovada, mas sim atormentada. Foi aqui que tudo começou. Aqui que oportunidades surgiram e o banho de sangue também.

Vínhamos para cá todas as férias. Papai costumava fazer fondue, e ele e os amigos, mamãe e as amigas tomavam vinho branco. Uma vez, ela me dera um gole, mas não gostei. Eu costumava usar um casaco-quase-vestido rosa, que parou de me servir. O moletom enorme e branco que uso agora não parece nem um pouco luxuoso, mas é confortável, e é isso que quero de agora em diante.

– Corram! - Grita uma voz ao longe, e gritos a acompanham. Guardo o papel no bolso e ando rapidamente para ver o que está havendo. Todos movem-se para seus blocos, e ao ver que o que sobrevoa o local é um avião, corro o mais rápido que posso.

Meu coração palpita. Asian Airways. Meu pai nunca se deu bem com asiáticos. Eles eram seus primeiros concorrentes comerciários, e também quem mandou matá-lo. Subo rapidamente para meu quarto e tranco a porta atrás de mim, segurando-a por um tempo, suando frio. Um bilhete na mesa. Pego-o com rapidez e levo-o para a cama junto comigo.

"Arabella,

Não se preocupe. Estou aqui para te proteger."

Ele estava me observando durante esse tempo todo. Pôde ver o desespero aparente em minha face. Ele está perto de mim. Sempre.

Levanto-me novamente, afobada, e reviro os papéis de minha escrivaninha até achar os horários das aulas. As mangas grandes de meu moletom tornam difícil pegar o pequeno papel com a tabela, mas pego-o e o observo. Amanhã tem aula de religião.


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