Sobre amor, tartarugas e novas chances escrita por Blue Butterfly


Capítulo 19
Capítulo XIX


Notas iniciais do capítulo

Dois capítulos em dois dias? Só porque não quero torturar vocês!



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Vida e morte.

Eram sempre as duas coisas que cruzavam a cabeça de Jane Rizzoli ao entrar num hospital. Vida e morte, definidas por uma linha fina e trêmula de tempo. Vida e morte, dançando com nuances de ritmos, ora mais lento ora mais rápido... Ora brincando de pisar no espaço um do outro, rodopiar, se afastar e se reunir de novo. Lado a lado, sempre comandadas pelo senhor da duração dos momentos, até que por alguma razão a linha tão fina se dissipa e os dois se misturam, se borram, se unem... Até que a vida seja diluída na morte.

Jane Rizzoli odiava hospitais. Odiava as luzes claras e o ambiente que parecia ser frio mesmo nos verões. Odiava estar dentro de um hospital - fosse por ser a paciente ou por estar à espera de alguém. As paredes sempre pareciam grossas demais, e ela se sentia como se estivesse enjaulada, supostamente esperando pela cura, realmente sendo enganada. Era sempre assim. À beira da morte, à beira da vida.

E Jane já tinha morrido algumas vezes dentro daquele lugar. Estar ali trazia à tona suas piores lembranças. O silêncio era plano de fundo para sussurros e bipes de máquinas. Eram sussurros de fantasmas no seu ouvido. Ela não conseguia ignorar o desconforto crescente no peito, ficava cada vez mais pesado e a busca por ar... O que tinha acontecido com o ar que parecia raro-efeito? Ou era só uma impressão? Ela apoiou os cotovelos no joelho e a cabeça nas mãos. Era só um mal-estar, ela estava bem, nada daquilo dizia respeito a ela. A cadeira parecia dura demais, impessoal demais, como um daqueles bancos quase esquecidos nos cantos menos ensolarados dos parques. Todo mundo sabe que eles estão ali, mas ninguém quer se sentar neles. Nem mesmo nos verões.

Jane não gostava de hospitais e verões na mesma frase. Tinha sido um erro pensar nos bandos de parques durante o verão. Porque ela estava num hospital e assimilar a estação com... Aí estava a primeira razão do desconforto. Ela sentia o sangue correr pelas mãos como se fosse a qualquer minuto vazar pela cicatriz, do mesmo jeito que sentira naquela noite em que fora atacada. Antes de conhecer Maura. Antes de morrer pela primeira vez.

Ela fechou a mão em punhos e abriu de novo, consciente demais da cicatriz ali. Repetiu o movimento algumas vezes até se certificar de que não havia dor - nem sangue. Fazia tempo que não pensava em Hoyt. Fazia tempo que não pensava em morte. Era aquele maldito lugar tirando o melhor de si, tentando torturá-la de novo. Ela sentiu a mão de Maura lhe acariciar as costas e o gesto trouxe certo conforto. O que ela teria feito sem Maura naquela época? O que teria acontecido se não tivesse sido a loira a lhe ajudar com trauma, se Jane tivesse a afastado como tentara fazer antes?

Voltar para a delegacia depois da recuperação - física - tinha sido um inferno. Uma salva de palmas era exatamente o tipo de recepção que ela esperava e recebera, mas para ser honesta ela nunca se importara. Não melhorava as coisas. As palmas eram destinadas à antiga Rizzoli, e ela estava morta. Pelo menos uma grande parte dela. Tinha sido difícil tolerar os pesadelos. Completamente doloroso as sessões de fisioterapia. Jane se recusava a ir ao psicólogo, e quando soube que só seria liberada para trabalhar novamente se comparecesse as sessões, ela compareceu. Quando o homem lhe disse que a recuperação era lenta, ela soltou um comentário sarcástico sobre a observação dele. Não bastando isso tudo, ainda tinha a nova médica legista. Irritante, meticulosa, wikipedia ambulante. Atraente, mas sobre tudo extremamente inteligente e anti-social. Quase fria. A rainha dos mortos. Era maldade, mas logo todos estavam a chamando assim. Exceto Jane que já não se importava com muita coisa, tão pouco com um mero apelido ridículo. Nunca tinha conversado com a médica, considerando que passara um mês inteiro na mesa fazendo papelada, sem pegar casos novos. Enquanto a reputação de Rainha dos mortos acrescentava nerd-sabe-tudo, Jane ignorava a presença da mulher no trabalho. Até que um dia repetia o mesmo gesto que estava fazendo agora no hospital.

Abrindo e fechando as mãos, em dor. Sentada em sua cadeira, encarando um calendário que marcava quatro meses atrás. Ela nem se dera ao trabalho de mudar a folha. Não é como se usasse muito de qualquer forma.

'Suas mãos doem.' Foi a primeira vez que a loira dirigiu a palavra à ela. Algo entre uma pergunta e uma afirmação.

'Bem observado.' Ela retrucou em voz baixa, um tanto mal humorada.

'Será que eu posso...?' Ela indicou com um dedo a mão da mulher. Jane hesitou. Ninguém comentava sobre suas mãos. Ninguém apontava, ninguém nem mesmo olhava. O que aquela mulher estava pensando? Mas o olhar segurava o de Jane e a morena pensou que era pura curiosidade médica. É claro, porque não?

Jane esticou as palmas para cima, como se em desafio, como se dissesse 'veja que belas cicatrizes tenho, como se fecharam corretamente'. Era sempre isso que ouvira dos médicos: suas feridas precisam se fechar corretamente, em cicatrizes perfeitas. Cicatrizes perfeitas. Nada mais cruel do que isso. Então ela iria mostrar suas cicatrizes agora perfeitas para a médica em sua frente. Ela só não esperava... que ela fosse tocá-las. E tinha sido tão gentil, tão macio. Desarmou Jane imediatamente, os olhos se abriram em perplexa confusão, rendição.

'Se você massageá-las assim, em círculos, ajuda o fluxo de sangue fluir melhor. O tecido cicatricial dificulta a passagem do líquido, mas algumas administrações ao longo do dia podem ajudar a melhorar a dor.'

Ela esperou até que a médica tivesse terminado de massagear os dois lados da mão, atônita demais para responder ao atrevimento dela. Jane não queria ninguém tocando-a, dizendo o que fazer com suas feridas. Quando a médica soltou sua mão, ela abriu novamente e fechou sentindo a melhora instantaneamente.

'Parece melhor?' A outra inclinou levemente o pescoço para o lado em curiosidade e Jane se viu balançando a cabeça em sim cedendo ao gesto meigo da outra.

'Dr. Maura Isles.' Ela estendeu a mão como se não tivesse acabado de pegar na de Jane. A morena estendeu de volta a sua e apertou a de Maura. O aperto da loira tinha sido firme, o mesmo tipo de aperto que ela ofereceria para qualquer outra pessoa que não tivesse a mão cicatrizada. E não doía. O gesto implicava em algo que Jane esperava receber das pessoas: a credibilidade de que ela ainda continuava forte o suficiente para aguentar o que quer que fosse. A começar por um corriqueiro aperto de mão.

'Jane Rizzoli.' Ela respondeu e foi estranho como fazia tempo que os olhares se seguravam. Os olhos verdes eram doces e afiados com inteligência e Jane notou uma fragilidade que não notara antes, talvez porque agora estivesse olhando tão de perto. A loira sorriu para ela e soltou a mão, em seguida apontou para uma pilha de documentos que tinha deixado na mesa de Korsak.

'Se você puder dizer que trouxe os exames de ontem, ficarei muito grata. Ele estava esperando pelos resultados.'

Jane duvidou seriamente que Korsak não fosse notar a papelada, mas concordou com a cabeça mesmo assim. 'É claro.'

'Obrigada.' A médica lhe ofereceu mais um sorriso, pareceu hesitar por um segundo antes de sair, passou as mãos em dobras inexistentes no vestido antes de dizer, 'Até mais.', e finalmente se retirar.

Jane se sentia um tanto quanto invadida. A médica tinha sido ousada, afinal de contas elas nunca tinham trocado palavras antes, apenas meros olhares. Se sentindo irritada, sem necessariamente entender o porquê, ela dirigiu para a casa naquela tarde jurando nunca mais permitir tamanha aproximação da outra. O que tinha sido muito engraçado, de fato, considerando que no dia seguinte era ela quem estava batendo na porta do escritório da médica.

'Eu não... Eu não agradeci.' Ela disse sem jeito e achou que não tinha sido uma boa idéia quando a médica juntou as sobrancelhas em não entendimento.

'Perdão?'

Jane mostrou a mão e deixou cair em seguida. 'Obrigada pela dica da massagem. De ontem.'

Ela viu quando as sobrancelhas da outra se arquearam em compreensão. 'Oh, espero que tenha funcionado.'

'Na verdade eu não fiz mais.' Ela disse naturalmente dando de ombros.

'Por qual razão?' Maura parecia confusa. Jane não esperava pela pergunta. Inconfortável, ela se remexeu sobre os pés.

'Eu não... Consigo fazer sozinha.' Olhar no chão, sorriso tímido. Jane Rizzoli definitivamente tinha mudado.

'Por que você não me deixa fazer?' Maura apontou a cadeira em frente à mesa que estava sentada, indicando que Jane tomasse o lugar. 'Eu não estou ocupada.'

Jane quase se sobressaltou. 'Não. Não... Eu não vim aqui... Eu só queria agradecer. Você não precisar fazer isso, sério.'

A loira encolheu os ombros. 'Não me custa nada.'

Jane ergueu uma sobrancelha. 'Vai me custar alguma coisa? Seu tratamento de primeira?'

De novo ela viu a confusão se instalando no rosto da loira. 'Não, eu...'

Jane estava surpresa. Ela arqueou as sobrancelhas e sorriu sem acreditar no que tinha visto. A mulher tinha perdido o sarcasmo.

'Dr. Isles... Isso é sarcasmo.' Ela se explicou e sentou na cadeira, mas tomada por curiosidade do que pela oferta.

'Oh. Entendo, detetive.' Ela sorriu.

'Me chama de Jane, acho que você merece depois de ter', ela gesticulou as próprias mãos, 'você sabe.'

'Bem, nesse caso... Me chame de Maura.' A loira disse tomando uma mão nas suas, começando cuidadosamente a massageá-la.

E o encontro se repetiu várias vezes durante a semana, e na seguinte as duas estavam almoçando juntas. Na terceira, Maura saíra com ela e os rapazes para comemorar um caso fechado, e depois disso a amizade se desenvolveu ainda mais rápido. Em um mês Jane sentia que conhecia Maura a vida toda, e era como se Maura a conhecesse também. As mãos estavam consideravelmente melhores - tanto na dor quanto nos movimentos - mas os pesadelos aterrorizavam suas noites. O sono durante o dia era combatido com copos e copos de café, e durante a noite fugia espantado para algum lugar. Dormir era raro, difícil. Baixar a guarda depois de ter sofrido tamanho trauma era impossível, mas Jane ia levando no melhor que podia. Ter Maura ao seu lado ajudava de alguma forma. Quando a loira abria a boca para explicar o fenômeno dos sonhos relacionados ao trauma Jane fingia que não escutava, fazia careta e piadas, mas no fundo prestava atenção. Ela se divertia com Maura. Ela era estranha, inteligente, engraçada em seu próprio jeito, totalmente nerd e inegavelmente linda. Era sempre agradável tê-la por perto. Até que um dia Jane quase jogou tudo por água abaixo.

A princípio tinha sido um convite simples. Conhecer pela primeira vez a casa da nova amiga era empolgante. Jane se perguntava se Maura morava em algum tipo de museu, com ossos de dinossauros e artes estranhas - ela acertou nesse último - espalhado pelo lugar. A conversa no sofá fluiu naturalmente enquanto uma bebia cerveja e a outra vinho branco. A tv ligada ao fundo tinha sido ignorada na maior parte da noite até que um documentário sobre criminologia tinha chamado atenção das duas. Maura fazia comentários aleatórios durante o programa e Jane oferecia uma ou outra informação sobre armas. E seus olhos foram ficando pesados à medida que o cansaço do dia somado com as noites de insônia fecharam suas pálpebras. E tudo que ela soube, a seguir, era que Hoyt tinha voltado. E que tinha cortado a garganta de Maura, porque ele sabia que ela era importante para ela. E depois seus braços estavam segurando os ombros dela, chamando seu nome enquanto Jane implorava-lhe para que por favor não a machucasse. Os bisturis eram afiados e Jane segurou mais uma vez os braços dele com tanta força que...

'Jane!' A voz de Maura chamou e ela abriu os olhos em desespero. 'Jane, é só um pesadelo.'

Vulnerável, Jane se encolheu no sofá como se sentindo medo da médica. Depois, mais consciente de si, soltou o aperto dos braços da outra que agora estavam marcados em vermelho. Jane sentiu o pânico se estabelecer em si. Num pulo, ela saiu do sofá e respirando pesado demais se desculpou com Maura. Deus, ela quase tinha machucado a mulher. Envergonhada, ela disse que precisava retornar para casa e o pedido de Maura para que ficasse e conversassem sobre aquilo não tinha sido o suficiente para mantê-la ali.

Exposta. Jane havia sido exposta. Ninguém podia saber do seu ponto fraco, seus medos, sua fragilidade.

Ela evitou a médica por três dias. As mãos sentiam falta da massagem, mas o ego ferido exigia a distância. Jane não conseguiria mais olhar para a médica, sequer. Ela se perguntou como seria ter que continuar trabalhando ali no mesmo ambiente que a outra. Ela não podia evitá-la para sempre, mas não sabia exatamente quais medidas tomar para resolver a situação. Felizmente, naquela noite de sábado enquanto ela se perguntava a solução sentada no sofá, a resposta bateu na porta de sua casa.

Imaginando ser a mãe - no máximo o irmão - ela arrastou os pés no chão e abriu a porta de uma vez, se deparando com... Maura.

'Como você sabe onde moro?' Foi a primeira coisa que perguntou, sem nem mesmo pensar.

'Eu tenho meus métodos.' A loira disse e Jane podia sentir a mágoa em sua voz. 'Você tem me evitado.' Ela disse quase sem sentimento, apenas contestando o óbvio. Jane estava sem reação, mas a loira parecia disposta a esperar por quanto tempo fosse necessário.

Jane esfregou os olhos e finalmente cedeu. 'Eu não quero te machucar, Maura.'

'Você não vai. Você não me machucou, Jane.'

A morena abaixou a cabeça ao chão, se sentindo derrotada. Por que seu corpo pesava tanto assim?

'Eu estava esperando no mínimo uma rejeição, mas considerando que você ainda não me expulsou... Será que podemos entrar e conversar?' Ela pediu educadamente - ainda que fosse uma intromissão.

Jane hesitou. 'Minha casa... tá bagunçada.' Não era verdade. A mãe tinha arrumado a casa no dia anterior, enquanto Jane pedia para morrer com tamanha inconveniência. Na realidade, o que ela queria dizer era 'eu estou bagunçada', o que Maura pareceu perfeitamente entender porque ela sorriu delicadamente e piscou os olhos verdes como se já tivesse uma solução.

'Eu não me importo.'

E Jane deu passagem e fechou a porta atrás de si. Ela jurou que iria jogar Maura pela janela quando a loira começou - mais uma vez - a falar sobre stress pós traumático. Como se Jane não soubesse melhor, como se ela não tivesse experimentando tudo aquilo. Ela poderia descrever melhor do que Maura, honestamente. Só que Jane tinha se descoberto interessada no modo delicado e doce como Maura explicava coisas complicadas para ela. Jane aproveitava cada vez, sutilmente sorrindo em diversão quando se tornava encantador demais.

'Por mera coincidência eu tenho um vinho aqui.' Ela disse fingindo mais uma vez ignorar as palavras da loira.

As duas terminaram mais uma vez no sofá. A conversa tinha sido leve e elas riram em vários momentos, até que o relógio tinha parecido pular algumas horas e o sono, de novo, queria domar a morena. Os olhos estavam pesados, mas ela se recusava a dormir. Ela não queria que a diversão acabasse, que Maura fosse embora. Ainda assim, o sono...

'Eu não vou embora.' A loira afirmou do meio do nada, para a surpresa de Jane.

'O que?' A voz saiu rouca.

Maura pareceu lutar com as palavras e então finalmente disse... 'Você não tem dormido, posso dizer pelos círculos escuros em torno dos olhos. É claro que isso pode significar falta de várias vitaminas, mas considerando - '

'Ok, Maura, já entendi.' Jane a cortou.

'Não vou embora.' Ela repetiu. 'Você precisa dormir, e precisa de alguma segurança para isso.'

'Eu não quero que você fique.' Jane disse secamente, embora fosse mentira.

'Você quer. Você só não pede porque quer parecer forte o suficiente.' Maura definitivamente não sabia das linhas que tinha ultrapassado. Jane se sentiu insultada - exposta como nunca.

'Eu não preciso que você fique.' Ela retrucou, engolindo seco. Ela fez menção de se levantar mas a mão de Maura em sua perna a paralisou.

'Não precisa. Também não precisava de mim para massagear suas mãos, Jane. E mesmo assim eu fiz. Foi tão ruim?'

O apelo vindo dos olhos claros da loira foi o que manteve a cabeça da morena no lugar. Por que ela estava fazendo isso?, ela se perguntava. Ela não tinha medo? Não tinha sido o suficiente a noite na casa dela em que Jane apertou-lhe os braços forte o suficiente para marcá-la? Não tinha sido vergonhoso o suficiente para Jane estar aceitando a proposta com a cabeça agora?

'Eu não quero te machucar, Maura.' Ela disse simplesmente.

'Eu já disse que não vai, Jane.' Ela insistiu.

'Ok'. Ela cedeu e Maura sorriu para ela. Jane se perguntou se parte da sua resposta era devido à recompensa do sorriso que ganharia em seguida.

'Não resista ao sono. É pior.' Maura disse minutos depois quando Jane se acomodava no sofá de novo.

'Você vai dormir no sofá?' Ela perguntou ironicamente.

'Eu não me importo.' E era verdade.

Jane deu de ombros. 'Nem eu.'

'Jane, os sonhos acontecem num estado em que seu cérebro está... semi acordado, por assim dizer. Talvez você tentar mudar o final dele seja uma boa solução para terminar com os pesadelos.'

'Anotado.' Ela disse cansada demais. E mais uma vez a voz de Maura comentando sobre o assunto da televisão tinha ninado Jane ao sono. E é claro, mais uma vez Hoyt viera lhe assombrar. Jane lutou com toda força para sobreviver a mais um ataque, mas as energias estavam esgotadas. O corpo doía em protesto às noites sem dormir, e agora ela sabia que era um sonho, mas o terror parecia na mesma medida que antes. Ela apertou as mãos no sofá, tentando se agarrar em algo e foram as mãos gentis da médica, segurando seu rosto, que a trouxe de volta para a noite escura.

'Shhh...' Ela sussurrou para Jane. O gesto a congelou porque Maura estava próxima demais, tão próxima quanto Hoyt estava em seu sonho e por um momento ela pensou que fosse o homem. E ela se encolheu e murmurou seu medo. 'É só um sonho, nada real, Jane.' E devia ser verdade porque o toque gentil de Maura em seu ombro era muito mais verdadeiro do que o rosto embaçado de Hoyt.

'Por que você tá fazendo isso, Maura?' Ela perguntou enquanto os olhos procuravam por entendimento no rosto da mulher.

'Jane... Eu não quero que você desista de vencer seu medo porque parece que vencendo é o único jeito de manter você perto. Você é a pessoa mais próxima a mim e... Eu não quero desistir de você. E não quero que você desista de mim também.'

A confissão quase trouxe lágrimas aos olhos da morena. Maura era sozinha, não tinha família próxima, pouquíssimos amigos. Fazia sentido. Ela segurou a mão da loira e apertou em uma promessa. 'Eu não desisto, Maur.' E o apelido tinha surgido, saído de sua boca tão naturalmente que Jane não se ouviu dizendo.

'Ótimo. Nós não desistimos, então. É um acordo?' Maura perguntou em expectativa, sabendo que a oferta implicava em estabelecer uma relação entre as duas que Jane poderia compreensivamente hesitar. Ela gostava de se passar por forte, e aquilo que Maura estava propondo a colocaria em uma posição onde ela teria que admitir que tinha seus momentos de fraqueza. Entretanto...

'Temos um acordo.' Jane acenou com a cabeça, aparentemente sem pensar muito nas consequências da decisão ou então confiante o suficiente em Maura para se sentir confortável perto dela - para precisar fingir mais nada.

Era justo afinal, Maura tinha colocado as cartas na mesa. Se ela tinha revelado seus pontos fracos, por assim dizer, Jane também poderia fazer o mesmo. Satisfeita com a resposta, Maura apertou a mão da mulher num gesto de carinho. O sorriso da loira foi a última coisa que Jane se lembrou de ter visto antes de pegar no sono, depois de se deitar no sofá perto de suas pernas. Maura segurou sua mão, porque o calor que emanava dela era um passe seguro para o mundo dos sonos. Jane dormiu direto naquela noite, até as horas claras do dia.

Tinha sido Maura quem a tinha trazido de volta à vida. Tinha sido sua amiga, até então, quem tinha reacendido o fogo dentro de si, a vontade de encarar todos os dias, de correr atrás de suspeitos e derrubá-los no chão. Jane Rizzoli tinha morrido no hospital depois de Hoyt, mas Maura tinha ajudado a construir uma nova Jane, alguém melhor. A morena sentia agora os dedos da loira massageando, como no passado, sua mão. Tinha se tornado um gesto involuntário de tão repetitivo durante o passar dos anos.

Ela não resistiu a urgência de passar um braço em volta da cintura da loira e trazê-la junto ao peito. Ela devia tantas coisas à Maura. Tantas. A mulher parecia mais calma e centrada hoje, em comparação ao dia anterior. Talvez o encontro com Hope tivesse surtido esse efeito nela - elas não tinham tido tempo de conversar sobre isso ainda - o que de quebra, seria ótimo para Maura. Durante a temporada de eventos excruciantes era necessário achar conforto nas pessoas, e se tivesse acontecido com Hope, Jane ficaria contente. Maura precisava se conectar realmente à ela, ao seu passado, era essencial para o seu presente.

Maura. Um dos motivos a mais pelos quais Jane odiava hospitais. Ela queria saber se ela estava confortável ali, se o lugar trazia as mesmas lembranças que trazia para ela, se ela gostaria de esperar em outro lugar. Entretanto, ela sabia que nenhuma das duas iriam embora até terem notícias de Harriet. Jane fechou os olhos e rezou para que a criança estivesse bem. Elas não poderiam perder mais uma... quer dizer... Ela suspirou e plantou um beijo na cabeça de Maura. A mulher se remexeu e segurou com firmeza sua mão. Jane se sentiu grata de tê-la ali no hospital, mas em seus braços. Significava que ela estava segura e não... como da outra vez.

Tinha sido aterrorizante. Acordar com o grunhido de vindo de Maura no meio da noite, a mão da loira apertando seu braço num pedido de ajuda, tinha disparado seu coração, trazido aquela sensação horrível de susto e desorientação. Ela se lembrava do horror atingindo seu corpo quando viu a camisola da loira manchada de vermelho e por um segundo, ainda desorientada por não estar completamente consciente, o pensamento horrível de que alguém tinha machucado sua mulher lhe ocorreu.

Ela apoiou os dois braços em proteção do lado do corpo da loira, se inclinando para cima dela e procurando por alguém dentro do quarto. Lhe pareceu ridículo quando, mais uma vez, a médica apertou seu braço e chamou seu nome enquanto pressionava um braço em volta da barriga que mal tinha começado a aparecer. E nesse momento Jane compreendeu que o quê - ou quem - estava causando dor à Maura, vinha de dentro do próprio corpo da mulher.

A compreensão tinha lhe enfraquecido. Ela não era médica mas poderia chutar que a quantidade de sangue denunciava a gravidade da situação. Ainda assim não havia tempo para perder se ela quisesse tentar. Agindo por impulso, como sempre fazia quando as situações exigiam, tudo o que ela agarrou fora uma toalha e Maura. Se a loira pareceu mais leve em seus braços era apenas por causa da quantidade de adrenalina correndo em suas veias. Maura tinha protestado dizendo que poderia andar, mas ela estava visivelmente em dor e Jane jamais permitiria.

'E se for tarde demais, Jane?' Ela se lembrava dos olhos marejados da loira procurando pelos seus olhos reconfortantes.

'Não é, Maur. Ok? Não é.' Ela apertou a nuca da loira com carinho e voltou a atenção à estrada. Ela tinha dito palavras que ela mesma duvidava, mas preferia acreditar cegamente nelas, para não ter que ser insensível caso contrário.

Ela tinha ficado na sala de espera enquanto Maura era atendida. Coincidentemente Hope tinha sido a primeira a chegar até elas e Jane soube que a situação não era nada boa pela expressão no rosto da mulher. Talvez se a médica não fosse a mãe biológica de Maura, ela saberia disfarçar melhor sua emoção. Hope não prometera nada para Jane. Fora completamente honesta ao dizer que eles teriam que primeiro examinar sua mulher, mas que as chances nesse ponto não eram altas. Jane agradeceu a honestidade; tinha sido melhor de qualquer forma se preparar para o que era quase certo. Palavras suaves talvez amenizassem a dor na hora, mas depois a falsa ilusão dificultaria encarar a realidade. Jane gostava das coisas esclarecidas. Respeitou profundamente a atitude da médica e ficou comovida, é verdade, ao notar um traço de simpatia e compaixão vinda dela.

Ela esperou pelo que lhe pareceu horas, sentada numa cadeira que deveria ser planejada para ser confortável em consideração às pessoas que ficavam sentadas ali por muito tempo esperando notícias de alguém querido, mas pelo visto a solidariedade dos fabricantes fora colocada de lado, substituída pela inflexível antipatia que funcionava mais como um lembrete de que naquele lugar nada poderia ocorrer agradavelmente.

Quando Hope apareceu novamente, Jane sabia o que tinha acontecido antes mesmo da mulher falar.

'Eu sinto muito.' Foram as palavras dela, e para a detetive elas soaram honestas. Jane sempre manteve um pé atrás com Hope, mas vê-la abalada com a situação tinha de alguma forma feito com que a morena lhe desse créditos. Por um momento pareceu que a médica iria abraçá-la, mas incerta demais ela acabou esticando um braço e a chamando para levá-la até o quarto de Maura. Ela fora deixada lá sozinha, e Hope se despediu com um olhar cheio de condolências.

Ver Maura deitada na cama tinha trazido um turbilhão de sentimentos dentro de si. Dor, raiva, tristeza, desespero. Não era justo que elas estivessem passando por isso. Elas eram boas pessoas, não mereciam esse tipo de coisa. Maura queria demais o bebê - assim como ela - e Jane nem conseguia imaginar como contar para a mulher que tudo o que vinham estudando, imaginando, esperando, tinha ido por água abaixo. Era difícil pensar que Maura acordaria de um sono tranquilo, provavelmente induzido por algum medicamento, e abriria os olhos para uma realidade diferente da de ontem: estavam as duas sentadas no sofá decidindo pelas cores claras que pintariam o quarto designado para o bebê.

As coisas mudam rápido de lugar. Ela pensou enquanto se sentava na poltrona que - graças a Deus - era muito mais confortável do que os bancos do lado de fora. Ela segurou a mão de Maura e deslizou o polegar da palma para a extremidade de cada dedo, num gesto de carinho e amor, e depois segurou a mão delicada na dela. O rosto pareceu quente ao seu toque e ela se perguntou se a médica estava com febre. De um jeito ou de outro, ela já tinha sido medicada. A morena queria manter suas emoções sob controle e tentava isolá-las em algum lugar da mente, mas quando sua mão descansou em cima do estômago da mulher, ela não conseguiu evitar as lágrimas quentes que escorreram pelo rosto. Ela juntou a mão da loira junto ao seu peito, descansou a cabeça na cama e chorou silenciosamente pela perda que tinham sofrido. Chorou enquanto podia, enquanto achava que poderia se dar ao direito de ceder à tristeza. Ela queria estar recomposta para lidar com Maura quando a mulher acordasse. Se era difícil para ela, ela nem imaginava como a loira se sentiria. Tinha sido seu corpo, sua dor física. Ela tinha entrado sozinha na sala e enfrentado a situação por si só. Deus... Ela tinha permanecido consciente? Jane rezou para que não. Ela não sabia como era o procedimento, mas não deveria ser nada agradável de se viver.

'Jay?' A voz rouca da loira a tirou de seus pensamentos horas depois. Jane estava sentada com as costas descansadas na cadeira, cuidando do sono da mulher enquanto esperava que ela recobrasse a consciência. Ela se inclinou para frente e segurou a mão de Maura carinhosamente. Como ela deveria lhe dar a notícia agora que o momento tinha chegado? Ela brigou com as palavras dentro de si e viu quando Maura se tornava inquieta. 'Maur...' Ela começou, mas logo se calou de novo. Talvez devesse esperar um pouco, talvez fosse melhor deixar que Maura se localizasse primeiro, que ela começasse a fazer perguntas. Foi só quando a loira se tornou realmente inquieta - tentou se levantar - foi que Jane reagiu, finalmente. 'Shhh.' A morena advertiu. 'Não, Maur. Você... Você tá... bem.' Ela disse numa escolha duvidosa de palavras, pressionando os ombros da mulher para mantê-la deitada.

'O que acont-aconteceu?' A voz quebrada da outra lhe atingiu os ouvidos enquanto as mãos seguravam firme seus punhos.

'Nós perdemos o bebê, querida.' E Jane se sentiu decepcionada quando sua voz tremeu. Era para ela supostamente se manter firme, já que já tivera sua cota de choro pelo dia. Era Maura quem precisaria de consolo agora, e não ela. 'Eu sinto muito, Maur.' Ela acrescentou com a voz rouca, carregada pelo choro que ameaçava aparecer. Ela desviou o olhar porque se mantivesse encarando Maura por muito mais tempo acabaria desabando ali mesmo ao ver a dor estampada no rosto da loira.

'Não...' Ela ouviu a voz se manifestar tão dolorosamente em uma única palavra.

Ela não conseguia lidar com isso. Como ela achou que poderia? 'Eu sinto muito', ela disse de novo, e ela sentia por parecer tão fraca nesse momento, desejando ser o porto-seguro de Maura. Ela se inclinou, encostou a testa na da loira e plantou um beijo em seus lábios no mesmo momento em que as lágrimas teimosamente caíram do seu rosto. Jane se amaldiçoou mais uma vez, desapontada consigo mesma por não conseguir se controlar. Ela se sentia horrível. Talvez aquilo tivesse sido culpa dela, talvez ela devesse ter cuidado de Maura melhor, levado a loira ao médico assim que a primeira febre aparecera ainda que a mulher tivesse insistido que era apenas um resfriado. E se ela tivesse obrigado Maura a ficar em casa no dia anterior, isso ainda teria acontecido? Qual a parcela de culpa que a morena tinha nisso? Enquanto todos esses pensamentos corriam em sua mente, é claro que ela não se achava no direito de sofrer nem um pouco a mais do que a loira - e tão pouco demonstrar isso.

Apesar da tristeza estampada no seu rosto, Maura parecia controlada demais. Foi só quando ela começou a levantar hipóteses do que poderia ter acontecido foi que Jane tinha entendido que ela estava escondendo o que estava sentindo atrás de lógica, e a morena não se surpreendeu nem um pouco quando Maura desabou ao chegar em casa. Um mês difícil, o pior mês de seu relacionamento que Jane tinha passado. Elas vinham superando aos poucos, e algumas vezes as lembranças voltavam vívidas - como agora - mas já não era tão angustiante como antes.

De volta ao presente, ao hospital, à mão de Maura tão confortavelmente encaixada na sua, Jane revivia o momento por causa da similaridade da situação. Elas tinham perdido uma criança uma vez e era inevitável associar isso com a incerteza, a possibilidade de perder Harriet também. Isso a deixava transtornada, agitada. Ela queria esfregar as mãos uma na outra, mas Maura segurando a sua tornava o gesto impossível. Ela optou por bater um pé no chão, e é claro, o gesto não diminuiu em nada sua ansiedade.

Ela definitivamente odiava hospitais. Ela havia perdido parte de si ali, por causa de Hoyt. Havia perdido o bebê com Maura. Era um lugar lúgubre que só oferecia perdas, onde seus medos tornavam formas pesarosas e caminhavam pelos corredores, próximos demais da zona negra, advertida, no lugar onde as coisas vivas entravam e nunca mais retornavam para ser vistas. E eles arrastavam Jane para lá, mas com toda força de vida ela se mantinha firme, recusando a se entregar à escuridão. Havia, entretanto, uma pequena migalha de luz ali, não havia? Ela mesma não tinha retornado, ainda que não completa, para a vida? Ela tinha que equilibrar os lados, afinal de contas. Uma vez ouvira alguém dizer que quanto mais forte fosse a luz, mais negra seria a sombra, a escuridão, e Jane pensava que nesse caso, ainda assim era melhor ter uma luz brilhando. Se a morte caminhava perto demais de si, ela preferia se manter focada na vida e não olhar para os lados.

Ela olhou para Maura que parecia cansada demais nessa hora da noite, apenas para checá-la. Era fácil dizer como a espera, como o peso daquilo estava esgotando com suas energias. Os olhos da loira desviaram-se do seu para encontrar com uma figura caminhando na direção delas, e Jane seguiu seu olhar.

Uma médica - uma mulher bonita, ruiva, mas que parecia abalada, talvez pelo cansaço dos plantões - se aproximava rapidamente delas com uma expressão que Jane não sabia decifrar.

E se fosse tarde demais, mais uma vez? Ela apertou a mão de Maura e ambas se levantaram.

'Vocês são as responsáveis por Harriet, certo?' Ela perguntou em urgência. Jane sentiu o coração disparar e a mão de Maura apertar a sua.

'Somos.' A loira disse firmemente.

A ruiva correu a mão pelo cabelo e a língua entre os lábios. Apoiou as mãos na cintura e soltou um longo suspiro enquanto parecia medir as palavras.

Jane sentiu os olhos encherem de lágrimas. O que isso significava? Ela estava paralisada e o único movimento que conseguiu fazer foi virar a cabeça para Maura - a única médica ali que estava ao seu lado, segurando sua mão - em busca de resposta. Medo tomou conta dos seus sentidos e ela já não sabia em qual lado estava prestes a pisar. Mais uma vez as conhecidas palavras cruzaram sua cabeça.

Vida ou morte?


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Notas finais do capítulo

Ou talvez eu queira ;)