O Relógio escrita por aneurysm


Capítulo 3
O Ritual do Convez


Notas iniciais do capítulo

em meio a solidão, talvez a amizade não seja o que você procura mas seja só o que você tenha!



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Depois desse dialogo intenso, ela ia dar-me as costas quando eu a chamei de volta, eu estava curioso com o fato dela estar sempre calada, e de como ela tinha tanta experiência com navegação, então decidi perguntar, ela voltou, se sentou novamente a beira da cama, tirou do bolso um cigarro, eu perplexo coma cena antes de qualquer coisa perguntei: - Mas você fuma? Isso não e errado para uma mulher?

Ela acendeu o cigarro, apagou o fósforo e levantou a cabeça, após soltar à fumaça da tragada que acabara de dar ela disse: - Você mente, isso não é errado para um homem?

E naquele momento fiquei sem reação, eu não sabia o que fazer. Então eu meio que decidi partir para a próxima pergunta.

–‘Ta bem, você fuma e eu sou um mentiroso, que bela dupla de desajustados. Ok então, vamos continuar. de onde vem os seus conhecimentos em navegação? Por que eu não conheço bem a Rússia, mas, acho que está meio longe do mar, e ainda assim, de todos os lugares que já visitei entregando, não me lembro de ver garotas no mar, me conte essa historia.

– Bom, o meu pai, sempre quis ter um filho, mas quando eu nasci ele disse que ficou tão maravilhado que nada o fizera tão feliz, mas ainda assim, eu não compartilhava das alegrias dele, como o esporte e a cerveja, mas algo que me fascinava muito era a forma como ele velejava. E sim você está equivocado quanto onde eu vivo, eu sou de São Petersburgo, e é uma cidade costeira, no inverno e impossível chegar perto do mar, mas o verão no mar é maravilhoso na Rússia, e como eu estava dizendo, meu pai comprou um barco quando eu tinha oito anos, e quando cheguei aos dez, minha maior vontade no verão era entrar no Ivaine, que era o nome da minha mãe, e velejar pelos mares frios do ártico com ele, era incrível, nada me deixava tão feliz. Quando eu cheguei aos quinze, eu era uma eximia navegante, meu pai me ensinou tudo e até confiava o barco a mim quando ele não podia ir comigo, eu viajei muito, e conheci muitos lugares velejando, por isso eu tenho tanto conhecimento em navegação meu caro patrão, eu sou uma garota do mar.

Enquanto eu via Alice falar sobre suas aventuras foi incrível ver ela feliz, eu não havia percebido que ela podia ser tão alegre, ela contava as historias de suas viagens, com uma alegria imensa, ela tinha um sorriso tão bonito, que durante as historias eu tinha vontade de interromper a historia só pra dizer a ela que ela deveria sorrir mais. E assim a conversa se estendeu por horas a fio, o mar era tão presente em nossas vidas e tínhamos tantas historias para contar um ao outro, e tantas experiências ao mar. Eu fiquei abismado ao ver que ela era como o meu pai, decisiva e impetuosa, ela falava do mar de forma tão calorosa, que às vezes eu nem acreditava que era a mesma pessoa, de horas atrás.

Acabamos por dormir e no outro dia bem cedo fomos à procura de uma carona para Bergen, por não encontrarmos para Bergen decidimos seguir a Oslo onde seria mais fácil encontrar uma forma de chegar a Bergen. Ao chegarmos a Oslo eu enviei um telegrama aos meus marujos mais importantes solicitando a volta deles a Bergen para que voltássemos ao Brasil imediatamente, e assim foi feito, de Oslo seguimos até Bergen e ao chegarmos a Bergen meus homens já estavam a postos a minha espera, preparamos o navio, e eu apresentei Alice aos rapazes, alguns não gostaram muito da idéia de uma mulher a bordo, já que um dito popular antigo dizia que a presença de uma mulher no navio pode trazer má sorte, mas somente os supersticiosos não entraram em acordo com a presenca dela.

Mas eu disse que ela não deveria se preocupar que seria apenas uma questão de tempo, entao eu voltei ao hostel dos floyvisk, já que o outro dia era dia dezenove, e eu tinha que preparar minha alma para a chegada de Francesco. Eu sentei na cama, retirei o velho relógio do bolso e novamente pensamentos assolavam a minha mente, e a solidão voltava a martelar na minha mente, como iria eu sofrer de agora em diante, os últimos dias mesmo com a companhia de Alice, o sofrimento não me abandonava e eu não conseguia esquecer como minha vida estava arruinada, e naquele momento eu não conseguia parar de pensar em Francesco, o homem, que de forma inocente, cometeu o maior crime que se pode cometer. O crime de roubar a razão de viver de alguém.

E muitas vezes olhando para aquele relógio eu me perguntava se por apenas um instante, o tempo parasse para mim, e eu deixasse de fazer parte do tempo, se a minha falta seria notada, se a saudade no coração doeria por mim. E entre tantos pensamentos ruins, eu me lembrava de o mundo não gira ao meu redor, e assim Francesco não é culpado pelo meu sofrimento, ele estava feliz e eu deveria estar feliz por ele. Era em meio a tantas amarguras e boas idéias, que eu me perdia entre o certo e o errado e agora como diz a doxa na filosofia, o erro era constante em minha mente e a razão já não mais fazia parte de mim.

E então após uma noite de martírio intenso, chegou a manhã, eu acordei, tomei o meu café, me encontrei com Alice e fomos ate o caís, aonde lá estava Francesco e Angelika, a me esperar, ao ver aquele rosto ao lado de Francesco, com o braço entrelaçado ao dele e levemente escorando seu corpo nele, eu senti uma nova forma de inveja. Agora eu invejava o amor do outro, e eu não me lembro nunca de ter ouvido falar sobre isso, eu me via no lugar dele, mas por um instante, pois eu voltava a mim mesmo e me lembrava que não era aquilo que estava previsto pra mim. Então com um aperto no peito, eu cumprimentei os dois, e os convidei para o navio, mostrei todas as dependências do navio a Francesco, e lhe expliquei detalhadamente como seria o trabalho dele. Ele limparia o convés, e ajudaria os outros nas demais necessidades até que ganhasse experiência, ele sem relutar aceitou de bom grado.

Ao voltarmos para o convés, enquanto caminhávamos em direção a vela eu percebi na perna de Alice uma tornozeleira, dourada e rendada, era muito bonita, e eu me perguntei se seria aquele seu totem. Ao chegarmos até ela, Angelika estava na ponta do navio e veio andando até nós, cada passo dela era meu martírio, a forma com que ela andava e falava cortava meu coração em pedaços, mas eu me segurei de qualquer sentimento naquele momento e fui o mais profissional possível. No dia seguinte, partimos em direção ao Brasil, eu comuniquei o encerramento adiantado das minhas férias e fui buscar um carregamento que acabara de chegar, foram mais de trinta dias de viagem ate o Brasil, aonde Francesco, maravilhado com o sol e as cores que meu pais carregava, andava de um lado ao outro do píer gritando: “Belíssimo, belíssimo”.

Gastamos três dias para carregarmos o navio e partimos novamente em direção ao mar, mas depois de vir ao Brasil, eu deixei meus homens cuidando da navegação, e dentro da minha cabine eu me acovardei da vida, e me aprisionei de forma tão solitária, que nem mesmo o radiante mar calmo me fazia sair de dentro dela. A janela e o velho relógio eram meus únicos companheiros e aquilo era tudo que eu precisava naquele momento, depois de dias sem sair, Alice foi ver o que estava acontecendo. E depois da viagem de volta da Dinamarca para a Noruega, nos tornamos grandes amigos, eu disse que só queria ficar sozinho, mas ela começou a fazer visitas diárias de forma periódica, e ela era a única pessoa que eu conseguia receber e ter um dialogo.

Nossa amizade foi crescendo, e com o tempo segredos foram sendo colocados a mostra, eu contei sobre meu medo de altura, e ela sobre o medo de baratas, eu contei não sabia o que era o amor e ela contou que sabia. E naquele momento eu fiquei perdido em pensamentos, depois disso ela se retirou e não me contou mais sobre sua vida, mas a depressão e algo tão egoísta que você quando sofre de tristeza profunda só tem tempo de ver os seus problemas e não consegue enxergar o mundo a sua volta. Por isso a solidão é companheira da tristeza. Um ano se passou, a vida seguia normalmente, mas ao contrario de antes, agora eu era outro, já não atendia mais quando me chamavam, já não me importava as horas que eu acordava, já não me importava mais o dinheiro que ganhava, agora tudo era incerto, somente Alice acompanhava meu tormento, eu carregava comigo o egoísmo da solidão.

Marco, um grande amigo de infância, entrou na minha cabine, me olhou nos olhos e disse: - Se você esta triste tudo bem, nos entendemos, mas há um ano não fazemos o ritual do convés, os marujos estão ficando ansiosos e nós exigimos a sua presença lá esta noite, você sabe o horário não se atrase.

E frente a esse confronto verbal eu fiquei sem reação, o ritual do convés se tratava do capitão do navio lavar todo o chão do convés exatamente a meia noite, a tradição diz que se for bem lavado com água do mar, esse navio não ira afundar naquele ano, e toda sorte de bênçãos será acrescentada aquela tripulação e ao seu capitão. Ao chegar ao convés a meia noite, a primeira vez que saia da cabine naquele dia, havia dois baldes cheios e um esfregão me esperando, eu cerrei de leve os olhos, respirei fundo, peguei o esfregão e comecei o trabalho.

Após metade ser lavada eu parei um instante, levantei a cabeça, olhei para a frente e lá estava ela, Alice parada com os braços cruzados e a cara fechada, eu olhei e meio que perdido perguntei o que foi, ela me olhou e disse que aquilo não era o trabalho de um capitão, eu olhei pra ela com um sorriso no rosto e disse: - Pois então o seu pai não te ensinou tudo, mas se você não conhece a historia eu vou explicar, todo bom capitão, esfrega o convés com água do mar a meia noite uma vez ao ano para garantir sorte e prosperidade no ano que se seguir, e um ritual bobo, mas os marujos exigem que seja feito, então eu não discuto, apenas faço, a anos navegamos sem problemas, e tudo tem dado certo, sendo assim acho que eles tem razão não é mesmo?

Ela deu uma gargalhada e disse que era a coisa mais idiota que já havia ouvido, mas que era engraçado, então eu terminei meu trabalho como de costume ela ficou olhando eu trabalhar. Marco estava no timão, e ficou observando, ele era o meu amigo mais intimo na infância, mas depois do trabalho nos distanciamos, e mesmo passando períodos longos de tempo juntos, algo nos afastou, mas ele em um empenho de trazer de volta nossa amizade, naquela mesma noite foi à cabine falar comigo. Ele disse que não entendia aquela apatia entre a gente, logo nós que éramos tão amigos, iniciamos uma discussão sobre as possíveis causas de nosso distanciamento, que acabou durante a noite inteira, eu acabei contando a ele da minha tormenta. Ele como amigo me confortou como pode, mas ele também não tinha as respostas, mas de forma reconfortante, ele me disse que uma vez leu uma historia de um homem, que também não encontrou o amor de forma comum, mas que a solidão não o acompanhou por muito tempo, e que essa historia dizia que o destino rege a nossa vida da forma que acha certa, mas nunca se ouviu falar de um homem que teve a solidão sua companheira eterna.


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