_Seus sonhos não são exatamente sonhos.

Isso foi o que o psicólogo me falou quando fui a seu escritório em busca de respostas às diversas perguntas que meus ‘sonhos’ me proporcionavam. Lembranças, isso é o que são, memórias do meu esquecido passado como consequência a forte batida que sofri na cabeça quando fui levada para aquele inferno, esse que ficou no passado depois de Nikki ter nos salvado daquele maldito tráfico internacional de crianças, porém as memórias são como cicatrizes, sempre ali para meu tormento, as malditas memórias felizes e bizarras com pessoas das quais nunca vi em minha vida.

Repetidas torturas. E aqui estou eu novamente, em um novo sonho, uma nova lembrança.

Música clássica preenche o obscuro auditório lotado de apreciadores da arte que não ousavam desviar os olhos do palco. A melodia dos violinos com o piano é incrivelmente bela e estimulante, o coral misto, formado por homens e mulheres que aparentavam ter em torno de 25 anos eram bastante encantadores, porém a atenção da plateia estava direcionada em outro ponto do palco, o jovem pianista, um garoto que aparentava ter 11 anos, o mesmo garoto que sempre presenciava meus diversos sonhos, de pele clara, cabelos escuros como o céu noturno e olhos insanamente azuis, o jovem misterioso que me atormentava enquanto me deixava excitada com todo o magnetismo, o medo do desconhecido me alucinava.

Só de observá-lo tocando já era perceptível a paixão que ele tinha com a música, aquilo era inegável até para um cego, todo o sentimento era transmitido através de cada nota, a sensação de paz era grande fluindo através de meu corpo, me levando a lugares desconhecidos onde nem a palavra tristeza era pronunciada em alto som.

Depois de pouco mais de meia hora o espetáculo chegou ao fim com suaves notas de piano para um incrível encerramento, quase que instantaneamente todos do auditório que estavam sentados apenas observando em completo silêncio levantaram-se e aplaudiram fervorosamente, todos do palco fizeram seus agradecimentos e se retiraram dos holofotes, poucos minutos depois o garoto de olhos azuis estava em uma correnteza de pessoas que queriam ao menos cumprimentar tal talento nato.

Ele estava ansioso embora não aparentasse, ele estava mexendo em seu anel disfarçadamente dentro de seu bolso frontal da calça formal preta que usava com seu terno feito sob medida como seus pais sempre comprava para ele, pois é, eu sabia de coisas que nem me lembro de ter visto em minha vida e também de lê-lo com uma simples olhadela, era como respirar, esse era um dos primeiros itens de minha lista das “Coisas a não fazer em sonhos sinistros”

As pessoas aos poucos iam abrindo passagem e partindo logo após conseguirem o que queriam com o comandante das atenções até que ele finalmente foi liberado, soltou um longo suspiro automaticamente e começou a analisar cada canto do auditório, as poltronas, o palco que estava há minutos atrás, deveria estar orgulhoso com a bela apresentação que tinha feito, até que encontrou o que tanto procurava no corredor da saída onde eu estava confortavelmente apoiada à parede colchoada, um sorriso logo surgiu em seus lábios.

Quase todos já haviam partido, olhei ao redor tentando localizar a fonte daquele sorriso repentino, mas sinceramente não encontrei nada nem ninguém, a não ser pela garota que acabara de entrar pela porta de saída, aparentava ter seus 10 anos, com seus incríveis cabelos escuros e também com seus olhos insanamente claros, parecia mais uma modelo mirim perfeita em seu vestido rosa. Espera, ah qual é? Se pessoas entram pela porta de saída então pra que ter portas de entrada e saída? E qual é a dos olhos insanamente claros? É a moda daqui? Parece que estão me cercando.

_Kim!

Voltei minha atenção para o garoto que estava mais próximo agora e logo minha consciência ligou os fatos, eu não precisava ter um ataque, ele não estava sorrindo ou notando minha presença, é apenas um sonho como todos os outros, sou só uma observadora e ele estava se referindo com a garotinha que acabara de entrar ignorando as regras de entrada e saídas. Bem isso foi o que pensei antes de me surpreender com o que veio a seguir.

_A, Finalmente te encontrei!_ A modelo mirim pulou nos braços do garoto de olhos azuis que prontamente segurou-a._ Aquilo foi incrível! Todos só tinham olhos pra você, mas agora tia Lindsey e tio Hendryk já estão prontos para irmos e pedi-o para que se apressasse, eles estão muito felizes!

Certo, até aí tudo bem, meu susto veio depois disso na verdade.

_Muito obrigado Soph, eu me diverti muito nessa apresentação também, mas eu ainda não posso ir, pode falar para o papai que já estou a caminho? Quero falar com a Kim antes de partir._ Aquilo sim me chocou, então a garotinha não se chamava Kim, e a única pessoa que estava no auditório nesse exato momento além deles dois era...eu.

_Não irei sem você, não irei lhe deixar sozinho com ela, irei lhe esperar aqui_ A garota se sentou na poltrona mais próxima com cara de poucos amigos. E aqui estamos nós com uma nova descoberta: ela não gosta de mim.

_Então Kim, tem alguma coisa que queira me falar?_ O jovem pianista tinha dado um passo a mais, estávamos a dois palmos de distância agora, cara a cara, seus olhos brilhantes e suas mãos ansiosas novamente no bolso.

E foi ai que a fixa caiu totalmente, ele queria uma resposta de...mim, pela primeira vez eu podia interagir e ele estava me vendo, há tantas perguntas que quero fazer. Mas tudo o que eu saio da minha boca foi:

_Está falando comigo?

_É claro! Ou teria alguma outra Kimble McCormick por aqui?_ ele perguntou soltando uma daquelas risadas contagiantes que só ele tinha o poder para abrir qualquer sorriso involuntário de mim ou qualquer garota de sua idade.

_Mas Senhor Pianista eu não me chamo Kimble, meu nome é Feith Thompson. F-E-I-T-H.

_Bem, se vai ser assim, então por mim tudo bem, eu posso entrar no seu jogo senhorita_ ele estava andando em circulo me tornando o seu centro até parar subitamente em minha frente e anunciar com um sorriso no rosto sarcástico_ a proposito você nunca me chamou de Senhor Pianista, faz parte da brincadeira?

_É claro!_ eu não perderei a oportunidade dessa vez, tinha que saber ao menos seu nome_ e como se chama então Senhor Pianista?

_Te direi meu nome em troca de sua opinião sobre o espetáculo, meu nome é Aaron, Mademoiselle, ao seu dispor_ Aaron falou dando uma apresentação cavalheiresca com enrolar de mãos e uma leve reverencia.

Aquilo me fez ficar de alguma forma envergonhada, mesmo sendo algo tão trivial, mas o sorriso que ele deu logo após a reverencia era de entrar em combustão.

_Okey, darei sua resposta e, por favor, nunca mais faça isso novamente, é embaraçador, seu espetáculo foi incrível, radiante e extremamente único, aposto que toda a cidade falará disso amanhã_ falei em disparada com meu rosto provavelmente em chamas, devo estar parecendo uma pimenta viva.

_Sério?!_ Aaron agora estava radiante, não havia palavra que o descrevesse melhor_ Obrigado Kim, nada disso estaria acontecendo se não fosse por você!

_Meu nome não é Kim, é Fei..._ Eu não pude terminar porque naquele exato momento ele me enlaçou em seus braços e todo o cenário mudou bruscamente, não estávamos mais no auditório, estávamos agora em enorme campo de grama verde com diversas flores, estávamos em baixo de uma enorme árvore ainda abraçados, o abraço estava mais forte agora, duas crianças ou pré-adolescentes, seja o que for, aquela sensação de tranquilidade e paz era a única coisa que importava.

_Eu vou estar sempre com você Kim, do mesmo jeito que você estará eternamente comigo.

Aquilo afundou meu coração, uma queda sem volta, e então... Eu me acordei.