Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 8
7 - 30 Moedas de Prata




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O sol já tinha nascido quando Mikhil voltou à estalagem. Burm já estava a postos, trabalhando atrás do balcão enquanto sua esposa arrumava as mesas, ambos com um sorriso radiante nos lábios. O choro da menina podia ser ouvido do andar de cima, e os risos dos outros filhos do casal ecoavam por toda a parte.

A típica família feliz que tanto queria.

– Bom dia. – cumprimentou ao entrar. – Como estão? Passaram bem a noite?

– Doutor! – o homem sorriu, indo cumprimentá-lo junto da esposa. – Muito bem, obrigado! Graças a vocês, estamos bem! Ajudaram muito!

– E a pequena?

– Linda e forte. – a mulher revelou com orgulho.

– Fico feliz! – Mikhil sorriu satisfeito, seguindo Burm até o andar de cima. – Quero lhe perguntar uma coisa, Burm.

– Se é sobre a nossa amiga em particular, saiba que ontem foi a primeira vez que a vi pessoalmente. – ele se adiantou antes que o médico falasse demais. – Mas digo que ela é poderosa e importante como aqueles que vieram antes dela. Não entraria em seu caminho se fosse você.

– Mas eu quero estar no caminho dela... Junto com ela... Não posso?

– Só o destino pode decidir isso.

Mikhil suspirou e se pôs a atender a recém-nascida. O problema de deixar com o destino, além da possibilidade de nunca poder realizar aquele desejo, era que a entidade que mediava o delicado equilíbrio da vida dos seres não mais operava desde que a guerra contra o Ódio começou.

Guerra que participou, mesmo que brevemente.

Um grito ecoou no andar de baixo, e um estrondo abalou as estruturas da estalagem. Um bando de hominídeos irrompeu o quarto, detendo com violência os moradores e o pobre médico, arrastando todos para baixo, para a presença do líder daquela operação.

Mikhil obedeceu sem questionar, acompanhou os soldados com as mãos à vista, ajoelhou-se no chão quando mandaram e ficou em silêncio, esperando o que viria a seguir. Burm e a mulher imploravam por clemência enquanto a filha chorava de desespero, pedindo que lhe devolvessem o bebê preso em suas garras.

Com certeza, aquela cena toda não ia acabar bem.

– Calada! – o soldado, o mesmo que perdera para Kira, gritou ameaçando-a.

– Acalme-se, senhor, não precisa ser violento. Ninguém que está aqui é uma ameaça. – Mikhil pediu calmamente, chamando a atenção para si. – Vamos colaborar, então devolvam o bebê.

– Silêncio! – o soldado brandiu, acertando-lhe um soco no rosto. Se seu monóculo caísse naquela hora, não se arrependeria em nada pelas consequências. – A menos que fale o que queremos ouvir, cretino!

– Por favor! Soltem minha família! – Burm implorou.

– Quieto. – o líder ordenou, sentando-se em frente ao homem em desespero. – Ontem à noite você serviu uma jovem. Ela roubou vários machos e armou uma grande confusão. Quero saber quem é ela e onde está.

– Não sabemos! – ele chorou. – Por Chronos! Devolva minha neta!

– Está disposto a guardar esse segredo? Ela deve ser muito importante para merecer a vida desse bebezinho. Se não quer perder a neta, Burm, fale.

– Eu não sei onde ela está! Piedade!

– É uma pena. – ele pegou a pequena nos braços e revelou um punhal afiado. – Poderia salvá-la se tivesse algo a dizer.

Mikhil observou a lâmina descer em câmera lenta. A mãe e a avó choravam descontroladas e Burm implorava misericórdia. Se deixasse o pior acontecer, podia trazer a criança de volta, afinal esse era seu diferencial como Curador. Mas trazer uma alma tão nova poderia ser catastrófico.

– Pare. – gritou antes que a lâmina atravessasse a criança. – Se eu disser... Se eu disser o que eu vi... Vão deixá-los em paz?

– Diga o que sabe.

– Liberte-os. – impôs persuasivo, olhando-os seriamente. – Devolva a criança para a mãe e afastem-se daqui.

– Senão o quê? - ele sorriu desdenhoso, apertando o cabo da arma firmemente.

– Não duvide de mim. – o olhar que Mikhil lançou os fez recuar. Parecia que a própria morte habitava aqueles olhos de cores diferentes. O mal estava preso ali, naquele olho vermelho cuja sombra se projetava para o mundo. – Faça o que digo.

– Tudo bem. – o líder concordou, entregando a criança para Burm e ordenando com as mãos que os outros saíssem do local. – Diga.

– Descendo o rio, vi uma trilha seca. Provavelmente levantaram acampamento logo na alvorada. Podem seguir o rastro. – informou sério, sentindo o peito pesar.

– Tem certeza? Como sabe que era ela?

– Digamos que o que enlouqueceu seus homens, me afetou um pouco também.

– Sempre os rabo-de-saia. – o líder riu antes de deixar o lugar. – Obrigado, Doutor.

Um silêncio mortal se seguiu por alguns minutos antes de ousarem respirar aliviados. Os outros filhos de Burm haviam entrado quando a tropa se retirou do local e agora choravam silenciosos nos braços da mãe. A filha de Burm chorava num canto, abraçada à filha, tremendo demais para o bem sua própria saúde. Esperava que ela não tivesse sequelas.

– Vocês estão bem? – perguntou preocupado, calçando suas luvas de couro pretas.

– O que você fez? – Burm gritou alarmado. – Como pôde dar a pista dela?

– Feche tudo, Burm. As coisas ficarão tensas. – ele parou à porta, lançando um último olhar para aquela família assustada. Ela tinha razão... Ele trairia por uma vida.

E antes que perdesse mais tempo, saiu porta afora, rezando para chegar a tempo no acampamento de Kira e constatar que ela havia partido com os primeiros raios de sol. Correu pelas árvores e se orientou pelo rio até o lugar em que achava que ela havia passado a noite com os companheiros, onde podia sentir o resquício de magia que os protegera...

O lugar estava vazio, mas pior do que o vazio foi constatar que chegara tarde demais.

Afinal, como todo bom azarado, suas preces nunca eram atendidas, pelo contrário... Eram sempre distorcidas.

–-**--

Kira não sabia se o que a acordara fora a dor de cabeça ou o tapa dolorido que lhe desferiram. Para falar a verdade, um golpe daquele em seu estado normal não passaria de cócegas. E realmente quase não o sentiu. Mas com seu corpo inteiro parecendo que fora atropelado por uma manada de mamutes, até mesmo um carinho do vento a faria gritar de dor.

– Deixem ela em paz! – ouviu Lissa gritar em algum lugar perto. Seus sentidos estavam tão preguiçosos...

– Cale a boca, menina! – o cara que a agredira gritou, fazendo uma nojenta chuva de cuspe em seu rosto. – Se não se calar, darei outro uso para essa boca!

– Não se atreva a tocar nela, bastardo! – Leo gritou parecendo mais próximo e mais furioso do que já o tinha visto.

– Silêncio! – outro brutamonte gritou e o som de um soco abafado foi ouvido antes de um gemido. – Cale-se antes que arranquemos sua língua.

Quando Kira despertou totalmente, obrigou-se a se concentrar na situação em que estava para entender o que se passava. Sua cabeça doía e uma névoa enuviava seu raciocínio. Não se lembrava de nada depois que se despedira de Mikhil no rio...

Ah, sim... Cordas e um poste. Estava amarrada a um maldito poste de madeira, seminua, dolorida e confusa. Provavelmente os capturaram quando estava adormecida, depois que a barreira se desfez sozinha. Estivera tão faca que não pudera manter a proteção, principalmente depois que dormira, deixando a vigília para Leo. Mas não deixara tudo desprotegido. Mesmo que não pudesse manter a barreira, a camuflagem que usara não precisava de magia, o único empecilho era o preço que se exigia: silêncio.

E só uma pessoa sabia onde eles estavam.

– Maldito... – murmurou raivosa, observando ao redor, esperando ver um par de olhos bicolores olhando-a com descaso. – Desgraçado...

– Kira! Você está bem? – Lissa perguntou aflita.

– Vou ficar quando souber o que aconteceu.

– Nos capturaram quando começamos a levantar acampamento. – Leo explicou. – Eu sei que você pediu para ser acordada com o sol, mas achei que devia dormir mais... Desculpe.

– Não é culpa sua. – Kira o acalmou, bolando algo para se libertar. – Vou tirar a gente dessa.

– E como vai fazer isso, Vadia? – O cara que a guardava riu desdenhoso, encarando-a de perto. – Vai pagar caro pelo que fez comigo.

– Não me lembro de você. Por acaso te dei um fora ou foi uma surra?

– Vagabunda! – ele levantou o braço, pronto para golpeá-la.

– Chega. – uma voz forte se fez ouvir, congelando o Gorilão no lugar. – Se afaste dela, soldado.

– Senhor. – ele bufou e se afastou, com as mãos ainda em punhos.

O homem que os interrompera parecia ser uma autoridade naquele batalhão. Kira levantou os olhos e o observou com atenção quando ele se aproximou o bastante. Era oriental, alto com os cabelos lisos e os olhos bem negros. Suas roupas negras podiam ser comparadas às dos ninjas, mas eram mais modernas e com recortes. Seu perfume era a morte e toda a sua aparência ostentava o partido do Ódio.

Mas nada nele deixava Kira mais apreensiva que aquelas armas astrais feitas de ossos. Eram mortais até mesmo para ela. E isso era um grande problema.

– Você é o chefe aqui, suponho. Devia colocar uma coleira nesses animais. – Kira falou com cautela, mesmo que a afirmação fosse carregada de sarcasmo.

– Você é a ladra que roubou meus homens. – ele acusou friamente, como se aquilo tudo não fosse mais que uma intervenção numa briga de crianças.

– Ladra? Que eufemismo! Foi uma aposta justa! Não tenho culpa se são todos fracos.

– Cadela mentirosa!

– Vai negar que o jogo era que o vencedor da queda-de-braço levasse tudo? Eu ganhei, fiquei comigo mesma e com o dinheiro da aposta.

– Você nunca disse que teria que te vencer!

– Ninguém perguntou. – ela deu de ombros, recebendo o olhar fumegante do Gorilão.

– Está dizendo que perdeu para uma mulher, soldado? – Kira não sabia dizer se preferia que o líder continuasse distante daquela discussão ou que se envolvesse daquele modo frio de antes. Definitivamente ela não gostava daquele tom interessado.

– Foi truque! É uma cretina trapaceira e mentirosa!

– Deixe-a. – o chefe ordenou quando percebeu que seu subordinado partiria para cima da cativa novamente. – Diga, mulher, que poderes usou para enganar esse idiota?

– Meu charme, apenas. Garotas bonitas têm armas naturais, não preciso de truques. Tudo que posso fazer é combater força bruta com força bruta. Não tenho magia.

– Prove.

– Me solte e farei esse idiota voar feito passarinho. – ela pediu, remexendo-se sob as cordas. – Ou prefere que disputemos outra queda-de-braço?

O chefe não respondeu. Parou um pouco e se pôs a pensar, alternando o olhar entre seu subordinado e ela. Kira precisava apenas de uma brecha para poder se libertar e soltar os primos. Mesmo que tivesse que lutar com todo aquele batalhão, contanto que não lutasse com o chefe, tudo ficaria bem.

– Bata nela. – ele disse por fim, olhando o Gorilão que ficara lívido. – Agora!

Uma expectativa silenciosa se seguiu enquanto o Gorilão se aproximava de Kira, com o rosto pálido e o suor escorrendo. Engolindo a seco uma última vez, ele muniu-se de coragem e vingança, postou-se na frente dela com os olhos brilhando de ódio e se preparou.

Foi quando puxou o soco do fundo e o acertou no rosto dela que as coisas ficaram verdadeiramente complicadas.

Um barulho alto soou com o golpe, aqueles segundos intermináveis acabaram com o som de algo se quebrando e os gritos do Gorilão ecoando no acampamento. Sangue jorrou pelo ar e fraturas se romperam na pele grossa, revelando o estrago.

– Você é fraco. – Kira constatou, provando o filete de sangue dele que escorrera em seu rosto.

O Chefe não disse nada, apenas se limitou a olhar a cena com uma indiferença quase gélida. Nenhuma das Sombras que o acompanhavam – aqueles clones assustadores e odiosos – se manifestou e muitos dos outros soldados se permitiram observar a cena em silêncio, tendo por coro os gritos do ferido.

Definitivamente era plateia demais.

– Você é fraco. – o chefe repetiu a sentença de Kira, se aproximando do Gorilão com ares de repulsa. – Uma perda de tempo.

Sem aviso, ele transpassou o braço pelo peito maciço do Gorilão e moveu-o em corte, liberando sons de ossos triturados, dilacerando aquele corpo imenso como se fosse papel. Um grande boneco de papel. Lissa gritou e desviou o olhar quando a chuva vermelha de sangue jorrou sobre todos antes de se cristalizar e pequenas peças vermelhas caírem ao chão, junto a uma estátua de um corpo grande que pertencera ao tolo que se permitira ser fraco na frente das pessoas erradas.

Era essa a morte naquele mundo. Não havia decomposição, não havia retorno ao pó. Se a alma abandonava o corpo, não havia mais o que se fazer, nem mesmo reencarnar.

– Traga o capitão. Ele vai querer ver esses três. – ele falou para uma de suas sombras.

– Nos liberte. – Kira pediu com firmeza. – Não vai quebrar sua palavra, vai?

– Nunca disse que o faria. – o sorriso desdenhoso que ele lançou irritou Kira do fundo da alma.

– Nesse caso, não vou me sentir culpada, então. – ela sorriu ao arrebentar as cordas que a prendiam, sacando sua espada logo em seguida.

A luta se mostrou feroz quando a tropa se mobilizou contra ela. Kira lutava com garra e habilidade, mesmo ainda estando debilitada. Os atacantes caíam pelos lados quando se atreviam a enfrentá-la e por mais divertido que aquilo pudesse ser, precisava acabar logo com a brincadeira.

Estava no limite.

– Kira! – Lissa gritou apavorada e percebeu-a ser levada por um dos soldados.

– Dgrov! – chamou amparando um ataque, antes de surrupiar uma faca do agressor e atirá-la nas cordas de Leo, que se libertou rapidamente e foi atrás de quem pegara Lissa.

Ele saltou e golpeou as costas do homem com os dois pés, arremessando-o ao chão e fazendo-o derrubar Lissa. Não sabia como nem porque, só sabia que tinha que ter suas armas nas mãos naquele momento. Saltou novamente quando o outro reagiu e, em pleno ar, chamou suas companheiras.

Elas vieram. Rápidas e ávidas como águias.

Não houve tempo para pensar, no momento em que suas adagas se acomodaram em suas mãos, Leo aterrissou no chão e lançou-as sobre o soldado que se pusera a atacá-lo, enterrando suas companheiras naquela carne cheia de músculos e tirando a vida que habitava aquele corpo.

Sua primeira morte.

– Dgrov! – Kira chamou alarmada, tirando-o da contemplação do corpo cristalizado se estilhaçando no chão.

O rapaz foi rápido em pegar a menina no colo e se agrupar com Kira. Com um simples gesto, ela sinalizou para fugirem e quando abriu caminho pela turba, criando um corredor entre aqueles homens, Leo se pôs a correr para a floresta, com Lissa em seus braços. Mas estavam cercados.

O olhar vazio que os doppelgangers tinham em seus rostos, penetrava fundo em seus ossos, odiando-a pela confusão que estava causando. Kira sabia que não teria chances contra eles, ainda mais com suas forças minguando. Entretanto, era outra batalha que precisava vencer.

Leo atacou com suas adagas e teve a abertura que precisava. Lançou um de seus melhores ataques e escoltou os primos até os limites do acampamento. Um puxão violento em seu cabelo impediu seu avanço, jogando sua cabeça para trás e fazendo-a perder o equilíbrio, quase se encontrando com o chão. Firmou-se a tempo de perceber um ataque afiado, que tinha seu pescoço por alvo, e reagiu o melhor que pôde. Puxou a cabeça para frente e dobrou-se sobre o próprio corpo, a tempo de salvar seu pescoço da lâmina.

Kira só sentiu o aço se chocando contra seus fios, antes de atravessá-los de forma limpa, próxima à fita que os prendia. Ela caiu sobre o chão e rolou sobre os joelhos, antes de parar e constatar o estrago que tinham feito. Lágrimas ardidas brilharam em seus olhos quando viu seu cabelo – seu amado cabelo – ser balançado como um troféu na mão do clone que a parara.

Ódio... Agora ela sabia o que era ódio.

– Kira! – o grito de Leo soou da floresta, revelando-o acuado e alarmado.

– Corra! – ela gritou em resposta, interceptando um ataque antes de se voltar para a direção da voz do primo.

E ela parou de repente, quando algo maligno atingiu seus ouvidos, provocando um arrepio terrível em sua espinha. Uma música aterradora, que parecia penetrar em sua alma, tomou o local como precedendo a chegada de um parasita mortal.

Que os deuses permitissem que estivesse errada!

Voltou-se para a direção do som e avistou, à porta de uma tenda, o chefe parado ao lado de uma cadeira de rodas, onde uma criatura deformada e moribunda repousava sentada, com os grandes olhos esbugalhados fixos nela, sedentos de algo que ela tinha em abundância.

Céus! Como odiava aquele tipo de mago!

Que o destino me proteja. – ela pensou, avançando contra a criatura com a grande Zeela em riste. – Só um golpe, Kira. Acerte só um golpe!

Num salto, passando pela horda que a enfrentava, preparou a espada com um giro do pulso e, com a ponta afiada voltada para o peito esquelético do mago, rezou para que tivesse forças para resistir ao que viria a seguir. Esperava que o impacto de seu golpe especial acabasse com tudo ao redor, inclusive a maldição que ele tentava lançar.

O chefe saltou sem sua direção e confrontou-a com sua arma – um punhal de osso serrado que cheirava à morte e putrefação -. O choque entre as duas armas foi tanto que Kira não suportou a força do impacto. Sentiu as costas doerem e o ar fugir de seus pulmões quando se chocou com o chão cascalho. Suas feridas de outrora se abriram novamente e tudo que conseguiu distinguir de seu corpo foi o sangue escorrendo.

Fora derrotada.

– Agora, Princesa... - ele falou, pegando-a pelo braço e jogando-a em frente ao moribundo. – Reviva nosso mestre.

A música ficava mais alta a cada segundo que tentava se libertar da Sombra que a aprisionava. Pouco a pouco a música, que parecia soar somente em sua cabeça, se tornou mais alta e tomava todo o lugar, vinda da boca seca do mago a sua frente. Mais rápida e mais terrível, a melodia macabra se incrustava em seus ossos e se fixava em seu interior, sugando sua vitalidade.

Estava sendo parasitada.

– Não...! – ela praguejou, perdendo as forças.

Kira sentiu de repente duas mãos nodosas pegarem-lhe o rosto e levantá-la sem dificuldade alguma. Viu-se encarando aquele rosto disforme, que rapidamente se normalizava, rejuvenescendo e revitalizando ao passo que sua força se esvaía mais rápido do que deveria.

– Me solta! – gritou em desespero, tentando livrar-se daquelas mãos.

– Sua força é incrível, menina. – ele falou extasiado, levantando-se da cadeira e revelando músculos que inflavam como balões. – Me alimente mais.

Foi quando ele bateu sua testa à dela que o feitiço se completou. O cântico cessou, deixando um rastro mágico no ar, fazendo-se ouvir apenas na cabeça dela. Kira gritava enquanto sentia seu interior ser atacado pela maldição, com o perigoso pensamento que não saía de sua mente: ia morrer para ele recuperar a vida. Ia morrer ali e seus primos se perderiam naquele mundo hostil e sem esperança... Ia falhar.

Por que Anami permitiria que uma coisa dessas acontecesse?

Uma densa fumaça tomou conta do local, nublando totalmente a visão de todos e desorientando quem quer que ousasse andar. O mago gritou de dor e respingos de sangue atingiram o rosto de Kira. Ele a soltou e não teve forças para se levantar novamente, constatando que seus sentidos se apagavam um a um. Quando finalmente desistiu de se manter acordada, dois braços fortes a aninharam protetores contra um peito largo, levando-a para longe daquele caos.

– Aguente firme, Kira. – ele falou, deixando o capuz cair para longe de seu rosto.

E ela desmaiou antes que pudesse ver o rosto de seu salvador.

–-**--

A dor em seus ossos foi tanta que a despertou de seu torpor. Queria gritar, mas suas forças estavam concentradas em ativar (inoportunamente) seus receptores de dor. Sentou-se com cuidado, sentindo a tontura chegar pela porta da frente e fazer sua cabeça girar mais rápido que um carrossel desgovernado.

Demorou um tempo para que pudesse distinguir o local em que estava, e mais ainda para se lembrar do que acontecera. Leo e Lissa estavam sozinhos em algum lugar, bem como o mago se valendo da maldição que lançara em sua alma.

Levantou-se e cambaleou pelo quarto rumo à porta. A casa estava silenciosa e aparentemente vazia. Não havia mais quartos naquele andar, além do banheiro, e tudo parecia excessivamente minúsculo para a qualidade da arquitetura, como se a casa tivesse sido suprimida para acomodar seu dono apenas com o essencial. O que com certeza aconteceu.

Desceu as escadas com dificuldade e viu-se parada numa sala grande, com sofás e poltronas espalhados pelos cantos e em frente à lareira, mesinhas de centro com vasinhos de flores pequenas e livros finos. Havia também prateleiras com livros coladas às paredes e um ou outro quadro perdido no mar pastel. Era acolhedora, realmente adorável e se não estivesse tão empenhada em resgatar os primos, deitaria em um daqueles sofás e descansaria para sempre.

– Kira? – aquela voz conhecida chegou aos seus ouvidos com um misto de preocupação pessoal e profissional.

Kira encarou aquele rosto com surpresa, ainda absorvendo a situação em que estava. Ali estava ele, o médico que a ajudara, a curara, que a protegera – mesmo que no momento não precisasse de proteção – e a traíra tão facilmente quanto havia previsto. Ali estava o cara a quem confiara seu corpo e seus lábios, que gastara seu último sopro de energia para mantê-lo perto, que a desconcertava e a incendiava.

Mikhil estava ali, na frente dela, e tudo que conseguia sentir por ele era raiva. Uma raiva que nunca havia sentido antes. Uma raiva que arrancava lágrimas de seus olhos dourados e a impelia a matá-lo tão cruelmente que se espantara por ter tais pensamentos.

Aquilo sim era ódio.

– Kira... – Mikhil tentou falar quando chegou mais perto, mas o soco que recebera lançou-o para trás, de encontro com a parede.

Ela o atacava com fúria e ferocidade, não deixando brechas para ele se defender. Mas, se prestasse bem atenção, veria que ele não reagia, não porque não podia e sim porque não queria. Mikhil estava disposto a suportar a fúria dela e encorajá-la para que continuasse a extravasar suas frustrações. Afinal, ele merecia muito mais que uma simples surra.

– Maldito! Confiei em você! Confiei! – ela gritava insana, atacando-o com fúria e alheia a tudo o que acontecia ao redor. – Confiei nossas vidas a você! Por quê? Por quê?!

– Me perdoe... – ele sussurrou arrependido, ousando olhá-la nos olhos. – Me perdoe, Kira.

Ouvir aquela voz pedir perdão a enfureceu ainda mais. Num ataque de ira, puxou o soco do fundo e acertou aquele lindo rosto que tanto a fascinara, arrancando sangue da boca que beijara. Mas não era suficiente. Vê-lo sangrar não era suficiente para aplacar sua raiva. Só se daria por satisfeita quando ele parasse de respirar.

Levantou o braço em lâmina e puxou novamente o golpe de trás, do fundo da alma, visando o peito dele como alvo a ser transpassado. Antes de completar sua vingança, antes que destruísse o coração dele, antes que sua sede de sangue fosse saciada, um par de braços a enlaçou pela cintura e elevou-a do chão, afastando-a do traidor que no íntimo desejara ver de novo. E estava fraca demais para se soltar e acabar com aquele médico.

– Kira! Kira! Acalme-se! – alguém dizia em seu ouvido e por aqueles momentos não tinha ideia de quem fosse.

– Me solte!

– Se acalme, Prima! – uma voz feminina soou quando chamou-lhe atenção, obrigando-a a desviar o olhar de seu alvo e encarar os novos olhos azuis de Lissa. – estamos bem, estamos vivos! Leo e eu estamos bem! Agora acalme-se!

– Lys... – Kira parou de se debater e obrigou-se a prestar atenção.

Leo a mantinha presa contra seu corpo, com os pés acima do chão, enquanto Lissa – que estava lindamente alta – segurava-lhe o rosto, repetindo incessantemente que estavam salvos e seguros. Que não estavam machucados e que ela devia se acalmar.

Zeus! Aquilo era um milagre em um mar de desespero!

– Como vocês...?

– Mikhil nos salvou. – Lissa contou. – Derrotou os soldados que nos encurralaram e nos trouxe em segurança para cá. Depois foi salvá-la. Devemos nossas vidas a ele, Prima.

– Não lhe devo nada! Traidores não merecem agradecimentos! Foi esse cretino que nos colocou em perigo! Ele nos dedurou! Revelou nossa localização! Ele...

– Foi preciso! – Lissa cortou-a, tentando fazê-la encarar seus olhos novamente. Iam matar todos na estalagem. Iam matar a mãe e o bebê e a culpa seria nossa.

– Burm... – Kira parou um momento e se obrigou a pensar. – Ah, Burm!

Quando relaxou, Leo afrouxou o aperto e pousou-a no chão, sem se afastar totalmente, tanto para contê-la quanto para ampará-la.

Kira ponderou a situação e encarou Mikhil por um instante. Seus olhos bicolores contavam mais do que podia (e queria) acreditar, e algo nela brotava tão inesperadamente que teve vontade de chorar. Burm e sua família seriam mortas se ele não tivesse falado e a culpa seria dela por ser tão prepotente a ponto de não considerar a segurança de seu povo. Mikhil pensou nas variáveis e provavelmente, por uma vida, decidiu que falar seria o melhor jeito. E se o que via em seu rosto fosse verdade, ele tentou salvá-los antes de serem capturados.

– Isso ainda não acabou. – anunciou alarmada, se lançando porta afora.

– Espera! – ouviu Mikhil chamá-la logo atrás. – Pare, Kira!

– Me solte! – gritou quando ele a agarrou. – Me solte antes que...

A ânsia veio ligeira e inesperada. Antes mesmo que pudesse se soltar daquele aperto, o fluído subiu por sua garganta e explodiu na boca, salpicando Mikhil de sangue escuro e espesso, totalmente anormal. Dor e fraqueza dobraram-na a partir dos ossos e não conseguiu se manter em pé. Tombou para o lado e sentiu-se convulsionar nos braços dele, cuspindo sangue e perdendo o controle.

E sua consciência voou longe com a última visão daqueles olhos bicolores...

A sombra do olho dele a chamava...

Para a morte.


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Notas finais do capítulo

Não acaba aqui! Não deixem de ler o próximo capítulo!

Edição feita em 25/04



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