Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 2
1 - De Acordo com o Plano




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Talvez tivesse sido a claridade excessiva que o acordara. Quando o homem abriu os olhos lentamente, aquela luz ofuscante da sala branca penetrou em suas retinas e ele teve a sensação de que suas órbitas queimavam em ácido. Com uma maldição, fechou os olhos novamente e voltou a abri-los algum tempo depois, dando mais atenção para as cenas frescas de sua mente que a queimação ocular. Parecia que acordara de um longo e horrendo pesadelo, que se repetia infinitas vezes para levá-lo à loucura.

Ah, sim! Não era um pesadelo, era a realidade. Em ambos os casos.

A imensidão branca não passava de uma cela oval sem aberturas ou partições para sugerir seu fim. E não, não estava suspenso por magia. Aliás, aquele grilhão de sonhos era o único ponto de cor daquele inferno branco. Era uma cruz marrom, com fios que se pendiam uns aos outros, onde os brilhantes nós se moviam em toda sua extensão levando pensamentos para a cabeça do cativo. Não era grande o objeto, na verdade mal chegava aos seus cotovelos de envergadura e parava pouco depois de suas omoplatas. Só precisava prender os braços e a cabeça firmemente para manter seu prisioneiro por muito, muito, muito tempo.

Quem diria que um dia poderia ser preso numa cela dessas? Era até ridículo, levando em conta quem era.

Com certa dificuldade, limpou sua mente e expeliu toda e qualquer influência que lhe tivessem imposto, focando-se na lembrança do rosto daquela que era a razão de sua vida. Tinha que achá-la, libertá-la e saber o que houve, por que perderam e o que deveriam fazer em seguida. Ela estava por perto, seu inimigo não foi esperto o bastante para separá-los, mas não fora com esperteza que conseguira derrubá-los.

Com a força que poupara durante todo aquele tempo, quebrou seus grilhões e saltou ao chão, numa queda curta que parecia mortal. Dobrou o joelho ao chão e baixou a cabeça, sentindo-se fraco e apático, mas nada que o impedisse de completar sua missão. Só imaginava quanto trabalho teria para fugir dali, se bem que, se o sistema fosse o mesmo da época em que comandara aquela instalação, não seria difícil.

Tateou cegamente pela frente e sorriu ao constatar que não era uma cela grande. Alguma daquelas paredes tinha que ser mais fina que as outras para ruir com um bom soco. E assim foi. Bateu e bateu naquele ponto, não se importando se ficaria machucado. Ferro doía, mas tinha que insistir. Ela dependia dele e ele dependia dela.

A porta quebrou, revelando um longo corredor ao som de alarmes estridentes. Sem perder mais tempo, correu pelo labirinto da prisão, procurando o corpo dela. Só ela poderia dar fim a toda aquela sandice.

Por favor! – pensou, invocando na mente o espírito dela. – Por favor, meu amor, me diga onde está!

Esperou um pouco, enquanto se ocultava dos soldados armados que passaram em grupo. Demorou. Demorou demais e por um instante achou que não havia mais esperança. Mas ela respondeu seu chamado como uma brisa morna e convidativa, acariciando seu rosto como um beijo terno e saudoso. Tinha que segui-la, seguir aquele aconchego e chegar até os braços de sua amada.

Aqui. – ouviu em sua cabeça quando alcançou três grandes portas redondas do mais grosso ferro, no corredor mais fundo e escuro do lugar. Não tinha como abrir, nem como atravessar. Estavam impenetráveis até mesmo para ela, que fora tão poderosa.

Ana... – sussurrou mentalmente, procurando a mente dela.

Ouça... – ela soou em sua mente, muito diferente do que se lembrava. O que fizeram com sua esposa? – Por tudo que amamos... Complete o plano... Me complete... Pegue-os antes que seja...

Deixe-me salvá-la! – ele implorou. – Por favor! Permita!

Eu te amo, meu céu estrelado. – ela riu suavemente. – Vá e não me perca. Estou com você.

Te amo, minha pequena. – uma lágrima rolou pelas faces alvas do homem. – Me espere.

Sempre. – e ela se calou, talvez para sempre.

Não havia mais o que fazer ali, se o destino não queria que salvasse sua esposa, então precisava seguir o plano traçado. Saiu em disparada pelos corredores, enfrentando todos que se colocaram em seu caminho, e finalmente saiu da fortaleza, dando vida à sua fera interior. Precisava chegar a tempo. Tinha que encontrar as crianças. Só elas podiam salvar o destino e somente elas tinham a essência de sua amada.

Ana, me espere. Não vou falhar. Por você, não vou falhar.

–-**--

Ela acordou com um susto quando sua cabeça pendeu em direção à mesa em que trabalhava. Seu mentor ainda falava com os olhos fixos no livro que segurava, e, pelo o que via no relógio na parede ao fundo, a aula estava prestes a acabar. Graças aos deuses!

Encarou o desenho sob seus dedos e suspirou enquanto decifrava a cena. Era a milionésima vez que entrava em transe enquanto retratava uma dessas visões. Sempre os mesmos sonhos, sempre os mesmos personagens e sempre o mesmo destino. Era como se não houvesse mais nada, a não ser aquilo. Contudo, aquela vez fora diferente. Antes, o que a assombrava era a vaga e reprimida lembrança do ataque. O sangue e o medo que escorriam pelas paredes impregnaram sua cabeça com lembranças atordoantes e enevoadas. A luta que Damon travara contra as sombras, o zunir da espada de Bhirn, o ultimo abraço de Anami e o frio do corpo sem vida de Xhab... Mas nada se comparava à visão do inimigo levando a todos. Mesmo que doze anos astrais tivessem se passado, aquelas cenas ainda estavam vivas em sua cabeça.

Mas sabia que aquele novo sonho não era aleatório. Retratar uma cena de fuga de uma fera majestosa de uma fortaleza fortemente guardada despertou algo em seu coração e um arrepio de excitação subiu por sua espinha. Algo grande ia acontecer e era hora de mostrar que nem as restrições que seu avô lhe impusera a detiveram. Tinha que se preparar, pois a morte estava à espreita.

Entretanto, morrer não estava no plano.

–-**--

– Bom dia! – a menina anunciou ao entrar na cozinha. – Não demore, Leo. Não posso me atrasar hoje.

– Que animação! Onde é a festa? – o homem riu, servindo-se de café.

– É a seleção das titulares do time de vôlei. – Leo informou com um sorriso, bagunçando os cabelos alaranjados da garota. – Nossa nerd quer virar atleta.

– Que bom! Boa sorte, Querida! – a mulher sorriu e beijou-lhe o topo da cabeça. – Só não fique triste se não for escolhida.

– Pode deixar! – ela sorriu, ocultando seu pesar.

Lissa estava na idade de se preocupar com o futuro e mal esperava para se formar logo para finalmente entrar na universidade de seus sonhos. Entretanto, ultimamente as coisas não andavam certas para ela, tendo o início da onda de azar no começo do ano, com a partida de sua melhor amiga, Melissa, por causa de um acidente imprudente. Seu declínio social foi tamanho que reduziu-a de Gênio Social para esquisita excluída. Mas isso não foi o pior do caso. Não ter mais o apoio dos professores e ser rejeitada pelo MIT foi o golpe fatal em sua vida. Somente o time de vôlei (totalmente independente da escola) é que a salvou da depressão. Porém se falhasse nesse teste também, não saberia o que fazer mais.

Mas nunca deixara seus amados verem sua queda.

– Bem, agora teremos mais prêmios para decorar a estante. Os acadêmicos pararam de se multiplicar.

– Lupe! – a mulher replicou.

– É verdade, Ceci. Mas não quer dizer que não tenho orgulho dela! – ele se defendeu. – Quantos pais têm uma pequena gênio e um mestre marcial em casa?

– Você não tem jeito... – Ceci suspirou, ouvindo o coro de risos. – E vocês? Não estão atrasados?

– Muito! – a menina saltou da cadeira e rumou para fora, depois de beijar os pais em despedida. – Vamos, Leo!

– Já vou, já vou. – ele suspirou, tomando o último gole de café antes de parar à porta. – Acho que está na hora. Já estou preparado.

– Nós sabemos. – Ceci concordou, vendo o filho sair. – E agora, querido?

– O feitiço vai ser iniciado em breve. – Lupe dobrou o jornal em suas mãos e pousou-o sobre a mesa, voltando o olhar dourado para a mulher. – Logo as barreiras irão ruir e teremos que agir.

– Virão buscar... Temo que não estejam prontos...

– Se estão ou não, não importa. É o destino deles, Ceci... – ele suspirou, tomando a mão da aliança de sua mulher e levando-a aos lábios. – E tenho certeza de que, onde quer que estejam, nenhum deles está bem.

–-**--

O corpo do vigia caíra a seus pés, contorcendo-se em espasmos antes de imobilizar-se naquela morte violenta. O jovem olhava o corpo com repugnância assassina. Não perdoava falhas ou subalternos falhos. Para ele, tudo não podia ser menos que perfeito e agora, tão perto de completar seus objetivos, aqueles trastes falharam em manter Damon preso. Fracassar não era uma opção.

Acessou o painel ao centro e abriu a porta do meio. Caminhou sem medo pela escuridão e parou em frente ao poço vermelho pútrido onde sua prisioneira ainda residia. Viva, mas completamente imóvel.

– Parece que seu marido fugiu sozinho. Deve ter pensado que não valia a pena te salvar, Anami. – ele provocou com um sorriso maléfico. – Bom, pelo menos poderei continuar com minha diversão. Ou devo liderar uma caçada ao Grande Lobo e sua princesinha?

Um grande silêncio se seguiu. Normalmente Anami se manifestaria espiritualmente àquela provocação, aproveitando os momentos de raiva para tentar matá-lo. Mas naquele momento nada aconteceu e a sensação de vazio dominou a sala. E se tratando daquela bruxa, aquilo se tornaria seu pior pesadelo.

– Achem Damon imediatamente! – ordenou saindo do lugar. – Nunca pensei que ainda tivesse tanto poder, Anami. É a ultima vez que te subestimei. Pegarei sua alma de volta e destruirei tudo que você ama! Não vai escondê-la para sempre, ela é minha!

–-**--

– O que achou, Leo? – Lissa perguntou melancólica. – Por que ele não me escolheu?

Ele demorou um pouco para responder. Tinham saído cedo do treino da menina e permaneceram em silêncio até chegarem perto da casa. Lissa ficara ansiosa a semana inteira, divagando como seria estar no time da cidade, como uma das titulares. Ela era boa, realmente boa, mas não ter sido escalada afetara sua estima profundamente. Então, para não magoar ainda mais a garota, ele precisava ser cuidadoso com as palavras.

– Vai ver não era para ser. – ele falou por fim, estacionando o carro em frente a casa. – Talvez a vida ache que você será muito boa em outras coisas.

– Por exemplo?

– Sei lá. Você pode encontrar a cura do câncer. – ele riu, bagunçando a cabeleira laranja. – Vamos entrar, temos visitas.

– Você está muito misterioso hoje! – ela acusou birrenta. – O que está escondendo?

– Você acha? – ele riu, parando de andar quando um homem maltrapilho interpôs-se em seu caminho. – Boa tarde.

– Leo, certo? – o homem perguntou, medindo os jovens com os olhos dourados. – E essa é Lissa.

– E o senhor é? – ela perguntou amedrontada, agarrando-se ao braço do rapaz com força.

– Diga que seus pais estão em casa, garoto. Não tenho tempo para esperá-los.

– Acho que o senhor tem sorte, Tio. Hoje estão em casa. – Leo sorriu estendendo-lhe a mão. – É bom revê-lo depois de tanto tempo.

– Digo o mesmo. – ele aceitou a mão do sobrinho, mas sua face séria não se desmanchou com a comoção do reencontro. – Não temos muito tempo. Convide-me para entrar e proteja a menina. A situação é bem crítica.

– Sim, senhor. – o rapaz assentiu, abrigando a menina sob seu abraço. – Seja bem vindo, Tio Damon. Entre, por favor.

– Quem é ele, Leo? – Lissa sussurrou assustada, enquanto adentravam a grande casa.

– Ele é o irmão do meu pai. – Leo explicou, vendo o homem esquadrinhar o perímetro com um olhar afiadíssimo. – E nosso tio, para todos os efeitos.

– Meio-irmão, garoto. – Damon retrucou mal-humorado, banindo da mente as lembranças felizes que aquela casa despertava. – Lupe! Ceci! Apareçam! Não tenho o dia todo!

– Pacas dos infernos! De onde você saiu? – O homem apareceu da antessala, sem acreditar que o irmão estava ali na sua frente. – Está horrível.

– Você sempre teve essa cara de vira-lata e nunca reclamei. – Damon sorriu zombeteiro, apertando a mão do Irmão, antes de puxá-lo para um abraço apertado. Quem imaginaria que um dia pudesse fazer tal coisa espontaneamente? – Nunca pensei que me sentiria bem com isso...

– Não se acostume. – Lupe riu, tapando o nariz e se afastando. – Um banho de vez em quando é bom, sabia? Te acharão só pelo cheiro.

– Não temos tempo. Tenho que levá-los imediatamente.

– Para onde? – Lissa perguntou alarmada. – O que, diabos, está acontecendo?

Os homens se olharam por um momento, antes de encararem a garota. Algo estava errado com aquela parte do plano. Muito errado. Se Lissa deveria saber o que a aguardava, por que ela se portava como leiga?

– Esse, Lissa, é meu meio-irmão Damon. Seu tio, para todos os efeitos. – Lupe explicou, olhando-a nos olhos. – Já lhe contamos isso. Contamos que ele viria te buscar um dia.

– Não! Vocês disseram que meus pais me deixaram e sumiram. Que provavelmente estavam mortos em algum lugar do mundo. Como ele é meu pai? E não acredito que o deixarão me levar assim! Só podem estar loucos!

– Por favor, Lissa, se acalme! – Ceci apareceu na sala, tentando cercar a menina, que se agarrava fortemente a Leo. – Não nos culpe por ter entendido errado, mas sim, temos que deixar...

– Ai, meu... Isso é loucura! – Lissa gritou. – Ele não pode ser meu pai!

– Você está reagindo assim por causa de nossa não semelhança, da minha aparência, do fato de que por doze anos nunca termos nos visto ou de algo que está em sua cabeça, como uma voz que está tentando te contar algo? – Damon se aproximou de Lissa num átimo, segurando-lhe os ombros e mergulhando em seus olhos cinzentos. – Não a culpo por isso e o fato é que também não estou certo. Minha menina foi separada de mim ainda pequena. Nova demais para ter suas próprias cores ainda, e lamento cada dia que passei longe dela. Mas de um jeito ou de outro, nós somos uma família e precisamos de você para reuni-la novamente.

Fazia algum tempo que Lissa sabia que Lupe e Ceci eram apenas seus tios e que Leo um primo sem grau de parentesco direto. Mas os amava como se tivesse sido gerada no ventre da mulher, acolhida pela primeira vez nos braços daquele homem e velada pelos olhos escuros de seu irmão de coração... Por causa do amor que sentia por aqueles que a acolheram, desistira de esperar que alguém fosse buscá-la, desejando intimamente que nunca viesse.

Mas a hora havia chegado, não?

Quando Damon se endireitou, Lissa o encarava com pesar e um traço de admiração. Só ouvira verdades daquela boca e de alguma forma se sentia impelida a acompanhá-lo naquela missão que ele considerava tão importante. Talvez a chave de seu passado estivesse só esperando para ser encontrada. Seria a chance de saber por que não pudera ficar com seus pais biológicos.

– Acredito que nos daremos bem de agora em diante. – Damon falou com um aceno, antes de virar-se para os adultos. – Precisamos seguir o plano à risca. Não podemos deixar que essa falha com Lissa nos atrapalhe.

– Falha? – os jovens exclamaram surpresos.

– Era para os dois terem alguma habilidade, principalmente ela. – Lupe revelou culpado. – Erramos nessa parte e agora podemos ter perdido tempo demais.

– Damon, diga que Anami não está morta. – Ceci pediu temerosa. – Diga que ainda temos tempo para fazer tudo.

– Felizmente, o plano está em curso, agora nada impede que as profecias sejam cumpridas. A menos que um dos três morra. O que com certeza vai ser o objetivo do inimigo. – o homem revelou com seriedade. – Precisamos cumprir as etapas e levá-los até a terceira o mais rápido possível.

– Não quero perdê-los, Damon! São meus bebês!

– Tem certeza de que quer discutir isso comigo? – a expressão que se seguiu foi triste e amarga. – Não comece. Por favor.

– Perdão... – ela balbuciou culpada, voltando o olhar para os jovens. – Vão para cima, preparem uma mala básica e descansem. Chamaremos assim que terminarmos aqui em baixo.

– Preciso de mais informações que isso. – Lissa argumentou, ainda segura na mão de Leo. – Vocês precisam nos explicar o que está havendo antes.

– Vamos contar, menina. Vamos contar... – Damon murmurou, deixando-se cair exausto no sofá ao lado. Extremamente exausto. – Mas antes, deixe-me descansar. Sugiro que façam o mesmo, pois sairemos às pressas.

– Como no dia em que Tia Anami veio com Lissa. – Leo comentou, levando a menina pela mão, até o andar de cima.

– Garoto. – Leo se virou quando Damon o chamou. – Quero que conte o que houve naquele dia em que Anami veio aqui. É importante.

– Ok. – e ele subiu com a prima.

– Você também, D. Suba e descanse um pouco. – Lupe sugeriu, apontando para as escadas com o polegar. – Nossos pais ainda deixaram algumas roupas aqui, creio que estejam naquele quarto. Tome um banho e se troque. Seu cheiro está impregnando minha casa.

– Como comediante, você é um ótimo idiota. – Damon riu ao se levantar. – Obrigado.

– Vá logo, antes que meu nariz pife.

Damon subiu para o segundo andar e entrou no antigo quarto de seus pais. Aquele lugar lhe despertava lembranças dos tempos felizes de sua juventude. Na verdade, a casa inteira. Menos talvez pelo ano em que entrara em depressão por... Bem, não vinha ao caso.

Separou uma roupa do armário, muniu-se de uma toalha e dirigiu-se ao banheiro da suíte. Fazia quanto tempo? Onze doze anos? Francamente! Mais de uma década preso numa Cela Branca, forçado a reviver incessantemente seus piores pesadelos, acabaria com a mente mesmo do mais forte entre as criaturas. E por mais que se gabasse de sua força e do controle que tinha sobre si mesmo, precisava admitir que não saíra ileso de tal experiência. Aquelas lembranças o atormentavam, e desconfiava que nunca mais se livraria delas. Mas não podia se deixar abater.

Precisava ser forte por elas.

Saiu do banho, se enrolou numa toalha e se dirigiu para o quarto. Vestiu-se com as velhas roupas de seu pai (já que as do irmão eram pequenas para ele), deitou-se na cama e tentou relaxar. Mesmo que ficasse em alerta total, mesmo que não conseguisse parar de pensar, mesmo que os pesadelos o consumissem, faria uma coisa que não fazia há anos: dormir.

–-**--

Os quatro estavam na sala, divididos em pares enquanto esperavam que Damon acordasse. Lissa e Leo estavam no sofá maior, com ela agarrada ao braço dele como se fosse a última boia num naufrágio; claro que era assim que ela se sentia em relação à sua sanidade e à loucura em que estaria prestes a se meter. Lupe e Ceci falavam baixo um com o outro ao lado da lareira, dando-se as mãos e beijando-se, como se fossem se despedir em breve.

Enquanto Damon recuperava as energias, o casal se ocupou em preparar os jovens para a aventura que seguiria. Os dois iriam com o tio pelo último dos portais mágicos até ‘O Outro Lado’ a fim de aprenderem habilidades especiais para resgatar Anami e todos os outros cativos de um tirano homicida em ascensão antes que o caos dominasse tudo, até o nada. E claro que, depois da explicação maravilhosa que recebera, Lissa sentia que precisava urgentemente repassar toda a conversa e filtrar as partes absurdas que havia ouvido.

Dimensões mágicas? Portais? Habilidades especiais? Por Deus! Quando fora que caíra de cabeça numa fanfic? Aquilo era surreal demais para uma futura cientista se apegar. A não ser a parte de resgatar sua possível família do Tirano malvado, aí achava que estava num dos filmes do Bond, James Bond.

– Quanto tempo ele vai continuar a dormir? – ela perguntou enfadada.

– Dê um tempo para ele. Damon passou por maus bocados nos últimos anos, precisa se recuperar... – Ceci interrompeu, ponderando aquela verdade terrível.

– Se quiserem sobreviver. – ele falou de repente da escada, descendo-a devagar, trajado de roupas sociais. Ele podia estar limpo e bem arrumado, mas as olheiras e a pele funda desfiguravam seu rosto. Droga, ele estava quase catatônico! Como protegeria os jovens se a qualquer momento ele se desfarelaria? – Por quanto tempo dormi?

– Um dia e meio. – Lupe informou, disfarçando sua preocupação com o meio-irmão. – Tirou quantos sonos de beleza? Posso ver seu cabelo mais brilhoso.

– Experimente ficar preso por doze anos numa Cela Branca, que vai notar que o brilho do cabelo será o menor dos seus problemas. – ele retrucou, sentando-se pesadamente na melhor poltrona do cômodo. – Se importa?

– Sim, você está no meu lugar. – Lupe soltou antes de receber um cutucão dolorido da esposa. – Ok, ok! Vou relevar! Vamos logo ao assunto, D. Estamos ficando sem tempo.

– Já contamos para eles o objetivo. – Ceci emendou. – Te esperávamos para completar o resto da história.

– Querem mesmo que eu acredite que existe mesmo esse lance de bibd-bobd-boo? – Lissa perguntou, controlando-se ao máximo para não ser desrespeitosa. – Por favor, não tenho mais sete anos.

– Não vou refutar essa sua descrença, menina, mas quero que abra bem esses ouvidos para o que vou te contar. – Damon se projetou para frente, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e encarando os olhos cinzentos da menina com intensidade. – Sabe as crenças religiosas que este mundo prega, sobre o local de descanso da alma e afins? Sobre dimensões onde seres mágicos habitam: como Neverland, Nárnia e todos esses universos paralelos que se vê em livros e mídia popular? Pois bem, esses lugares existem e nós apelidamos de O Outro Lado, pois literalmente fica do outro lado dessa realidade. Triângulo das Bermudas, Círculo Ártico, buraco de coelho, portas secretas... Todos esses podem ser portais para essa dimensão, onde uma ruptura qualquer pode te fazer atravessar os planos como numa janela com cortina.

– E o que há nesse ‘Outro Lado’? Uma realidade distorcida desse plano?

– Vida. E morte. É um local onde se pode encontrar de tudo, ver de tudo e infelizmente passar por tudo. – ele parou um momento, estendendo um pedaço de papel velho sobre o chão a seus pés, sinalizando para Ceci se aproximar. – Felizmente, há ordem nesse caos.

– Ordem? – Lissa perguntou, tentando esconder o interesse crescente que a consumia. – Como há ordem no caos?

– Essa ordem, por muito tempo, se chamou Dante.

E com a deixa, sob o leve toque da mulher, o papel se iluminou e se projetou no ar, desenhando contornos de linhas brilhantes e letras em relevo. Quando terminou de brilhar, mesmo que ainda estivesse projetado em pleno ar, Lissa pode perceber o que aquelas linhas significavam: um mapa. Era um mapa cartográfico de todas as cidades e províncias que O Outro Lado abrigava. A maioria tinha nomes e especificações, mas boa parte era apenas pontos escuros e imprecisos. Contudo, o que chamava mais atenção (além da grandiosa floresta, o mar divisório e a terrível parte escura depois deste), era a grande estrela sobre o maior dos territórios. Algo nela chamava a atenção da menina, como se quisesse despertar algo que provavelmente estaria enterrado até os ossos em sua memória.

– Como fizeram isso?

– Você está olhando para a Capital do Tempo. – Damon explicou, observando cada reação da menina. – O Vórtice das Eras se inicia ali, sob o castelo do imperador. É o poder de todo aquele mundo e está ameaçado de ficar sem controle logo.

– Por quê?

– Porque o Ódio está avançando. – Lupe respondeu, apontando para um dos pontos pretos. – Doze anos atrás, o Tirano atacou as Casas das Luas, onde a realeza estava festejando o laurear das duas Princesas. O Imperador e toda sua família estavam lá para a cerimônia de coroação e libertação das meninas. Bhirn e Xhab eram os próximos monarcas a reinar e sua filha seria dada como o Segundo Pilar, substituindo o pai. A Segunda Princesa Herdeira e o Marido coroariam a filha pequena e a dariam como o último dos Três Pilares. Foi quando o ataque aconteceu. Bhirn e o Marido da Herdeira foram capturados em batalha, enquanto Xhab foi morta protegendo uma das princesinhas. O Imperador foi obrigado a fugir de volta para o Tempo com uma das netas e algum tempo depois A Princesa Herdeira também foi capturada, mas a outra neta de Dante havia sumido daquela terra, posta a salvo com os primeiros pilares em outra dimensão por Anami.

– Espera... Está querendo dizer que... Não... – o choque no rosto da menina se solidificou em uma aura ao redor dela. – Impossível.

– O que é impossível, Lissa? – Leo perguntou magoado. – É impossível que eu seja o Primeiro Pilar, função herdada da Mamãe; que o Tio Damon seja o marido da herdeira, que é a Tia Anami; ou que você seja a neta perdida do Senhor do Tempo?

– M-mas... – ela se levantou em choque, tentando assimilar as coisas que lhe foram contadas. – Mas... Como?

– Antes mesmo de todos vocês nascerem, Anami havia previsto uma guerra sem precedentes, que nem mesmo ela poderia ganhar. Ela estudou a visão por anos e planejou o melhor ataque em longo prazo, visando o menor número de baixas possíveis. – Damon explicou. – Quando Leo nasceu, ela revelou o plano e começamos os preparativos. Infelizmente não pudemos prever o atentado à coroação, mas ela te pôs a salvo aqui, para que você pudesse voltar comigo e fazer o que o destino precisa que faça: lutar pela vida.

– Mas se a Tia Anami previu de antemão esse atentado, muitos anos antes, por que não fez nada para prevenir? – Leo perguntou.

– Porque não é assim que o destino funciona. – Ceci respondeu. – O destino é um caminho suntuoso e acidentado. Qualquer alteração nele pode causar reações catastróficas. Como a morte de Xhab, por exemplo. Algo saiu errado e ela foi morta na incursão. Não podemos perder vocês.

– Então a Anami planejou essa operação de guerra para acabar com esse cara, nos usando como arma? – Lissa perguntou abismada.

– Falando assim até parece ruim. – Lupe brincou. – Mas se tudo der certo, vocês não irão para o campo de batalha. Só sua presença naquele mundo já fará a diferença, mas terão que treinar duro, pois temos passos para seguir.

– E ninguém adquire habilidades vendo TV, sentado no sofá com copo de leite morno ao lado. – Damon retrucou.

– Mas por que a gente?

– Pergunte a Anami quando/se a virmos. – ele se levantou vacilante, pousando as mãos na cintura. – Eu acredito que é porque vocês três são o futuro de nós. Os três têm parte disso.

– A outra princesa também? – Leo perguntou surpreso.

– Passaremos lá para pegá-la. Enquanto isso pegue suas coisas e se aprontem. Partiremos antes que o Inimigo chegue.

– Em uma hora. – Lupe concordou, olhando pela janela. – Talvez menos.

– Não acredito que já chegaram. – Ceci resmungou antes de se dirigir para a cozinha. – Se preparem, queridos. As coisas vão ficar agitadas.

– Temos que ir mesmo? – Lissa perguntou pesarosa, observando aqueles que a criaram.

– Nos veremos logo, querida. – Lupe a abraçou uma vez, depois juntou Leo ao momento de carinho. – Cuidem bem um do outro.

– Amamos vocês... – Leo sussurrou.

– Também amamos vocês, queridos... – Ceci se juntou ao abraço, com lágrimas rolando. – Vamos reformar a casa quando voltarem. Quero que tragam algo para enfeitar o quarto de vocês, ok? Tragam algo, não se esqueçam.

– Tudo bem... – eles concordaram ao se afastar do casal. – Voltaremos logo.

– Acho bom, caso contrário colocarei os dois de castigo para o resto de suas vidas.

– Hora de ir, garotos. – Damon anunciou tristemente. – E vocês tratem de sobreviverem. Tentarei fazer o mesmo.

– Cuide bem deles, D. – Lupe pediu, apertado a mão do irmão. – Boa sorte.

–-**--

– Vô? – a moça chamou, antes de entrar pela porta do grande salão. – Está ocupado?

– Entre, querida. – o homem sorriu para ela, desviando os olhos cansados da janela por alguns instantes. – O que foi? Quer alguma coisa?

– Na verdade, sim. Queria sair um pouco e ir visitar meu primo. O senhor pode abrir a passagem para mim?

– Sinto muito, querida, mas não. Lá não é mais seguro. As tropas de nosso inimigo estão avançando e quero você protegida aqui.

– Não tem nenhuma oportunidade?

– Não. Sinto muito, querida. É minha ordem final. – ele voltou-se para a janela, fugindo da faceta triste da moça. – Me peça outra coisa.

– Tudo bem... Estarei lendo no Jardim Imperial então... – ela anunciou triste, virando-se para sair por onde entrara. – Te vejo no jantar, Vovô.

Sem receber uma resposta, ela saiu do salão, fechando a porta com pesar. Depois de um momento, ela ergueu a cabeça e seguiu pelos corredores do palácio, sendo olhada pelas pessoas dos quadros com um misto de reprovação e medo. Desceu a escadaria de mármore cinza, forrada com carpete ao centro e parou ao pé dela, decidindo por alguns momentos o que faria a seguir.

– Você sabe a resposta dele. – murmurou séria para a figura que se escondia nas sombras. – Vá e faça esse favor para mim. Estarei no Jardim quando chegar. Tenha cuidado, minha amiga.

– Você também, Kira. Boa sorte. – a sombra respondeu antes de desaparecer.

– Sim... Vamos precisar...


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Notas finais do capítulo

Edição feita em 25/04



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