Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 12
11 - Trilhas de Fogo




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A noite estava calma, mesmo com a vigilância constante e as rondas que os mercenários faziam pela cidade à procura do grupo que causara rebuliço naquela tarde. A livreira olhou novamente pela janela de sua loja e suspirou pesarosa, imaginando que seu contato teria problemas para encontrá-la naquela noite e nas próximas que viriam.

Recolheu os livros que tinha sobre o balcão e levou-os para os fundos, apagando as luzes da frente no processo. Um pequeno barulho na porta de entrada atraiu sua atenção e uma sombra se ergueu diante da luz projetada da rua. Tinha o rosto encoberto pelas sombras, mas não precisava de esforço para saber que tal figura não era inimiga. Sua cópia a tinha visitado algumas semanas antes, lhe prevenindo de que aquele dia chegaria.

Mas havia alguns dias que achava que algo estava errado. Antes, mesmo que soubesse que sua própria aparência não lhe pertencia, tinha o consolo de saber que por baixo daquela camada estranha havia seu verdadeiro eu, a imagem que reconhecia no espelho. Mas desde que sentira seu coração parar na última semana, a imagem que via no espelho não era mais a sua.

Agora era só mais uma das Sombras da Princesa.

– Milady. – cumprimentou com cortesia, pousando a mão no coração. – Que bom que veio.

– Como está? – Kira respondeu, retribuindo o gesto.

– Bem, obrigada. Mas acredito que a senhora não esteja. Longe de mim duvidar de sua integridade, mas sua aparência... Nossa aparência... Aconteceu alguma coisa?

– Fui ferida e acho que perdi minha magia. Nada demais. – Kira se encostou ao balcão e suspirou, sentindo o flanco doer. – Desculpe aparecer assim, mas... Já sabe por que vim.

– Sim, e a aguardava ansiosamente. – a mulher se aproximou e se ajoelhou. – Minha princesa, eu devolvo-lhe a centelha que me fora dada. Espero que com ela possa se restaurar e voltar à beleza e vivacidade de que sempre gozara.

– Eu a aceito, minha cara. – Kira se curvou e tocou o alto da cabeça de sua serva, esperando receber a energia que tanto precisava.

Mas... Nada aconteceu.

– Milady? – a mulher perguntou confusa, ousando levantar a cabeça. – N-não aconteceu nada?

– Não entendo... Taiga me ensinou o que fazer... – murmurou enquanto olhava as mãos, se lembrando das lições que Taiga ministrara antes de deixá-la.

– A... A senhora não acha que...

– Algo mudou semana passada. – Kira balbuciou. – Ah, droga! O preço não foi minha magia. O quê você sentiu, aquele dia?

– Eu... Eu senti que minha vida se esvaía, fiquei fria, desmaiei por horas... Quando voltei a mim, não era mais meu reflexo no espelho, era o seu.

– Entendo... – Kira murmurou, concebendo a macabra solução para aquele problema. – Esse é o preço...

– Milady? – a serva perguntou confusa.

Por alguma razão sentia que aquilo não ia acabar bem... Para ela.

–-**--

Leo estava no escritório de Mikhil, procurando por todos os lados a tal peça que o médico pedira para ele encontrar e montar, para que pudessem usá-la quando ele voltasse da cidade. Puxou uma mesa pequena de um canto e posicionou-a no meio do cômodo, acompanhando-a de duas cadeiras e um pequeno relógio. A caixa em que achara o jogo estava enterrada sob uma montanha de livros velhos, tão bem camuflada que seria impossível vê-la sem o olhar de busca. Abriu-a com cuidado e se deleitou com as pesadas peças de mármore.

Fazia tanto tempo que não jogava xadrez que temia estar enferrujado.

Na verdade estava fazendo aquilo para não ter que acompanhar o treino das meninas. Desde que recobrara o controle dos tais bolsos dimensionais, Kira estivera um tanto insuportável. Estava tensa, mandona e mal-humorada, mal dormia por causa dos pesadelos, por vezes acordando gritando e chorando. Não tinha muita certeza do que acontecia, até porque Lissa não estava permitida a falar; mas sabia que era algo grande.

Por a casa ser pequena, a disposição dos cômodos não permitia muitos luxos. Kira e Mikhil (que tinha valores um pouco diferentes dos dela), depois de muito discutir, decidiram que deviam dormir separados. As duas estavam juntas no quarto de cima, ele ficara com a sala (aquele sofá era mesmo divino!) enquanto Mikhil se contentava com o divã em seu escritório. Não tinha muita certeza se aquele móvel era confortável, mas o médico garantira que passava mais tempo dormindo nele do que no quarto. A princípio, achara que Kira era da antiga opinião de que homens e mulheres não deviam dormir juntos antes do casamento e tal, mas estava errado. O plano da prima não era se preservar e sim constituir uma defesa contra o médico. E precisava admitir: era um bom plano, já que admitira que tinha o sono leve.

Sorte que havia um banheiro no andar de baixo.

Enquanto arrumava as peças meticulosamente, viu Lissa entrar no cômodo com um suspiro cansado. Kira seguiu a prima, parou um momento à porta e saiu novamente. Aquele comportamento era irritante. Ela parecia um tigre enjaulado desde que permitiu que Mikhil os acompanhasse, e isso já tinha uma semana. Sete dias de andanças e acuamento. Na verdade, ela ficava menos tensa quando estavam na estrada que nas horas que acampavam.

Naquele momento, por exemplo, podiam ouvi-la zanzando pela casa, entrando nos cômodos, abrindo portas e arrastando móveis. Parecia que procurava alguma coisa e se não fosse por seus episódios de introspecção, pensariam que ela buscava o ponto fraco de Mikhil. Mas se tratando dela, era óbvio que sim.

– Boa tarde. – Mikhil exclamou ao entrar no escritório pela porta externa. – Às vezes, ser médico, meus amigos, é cansativo demais.

– Bom trabalho. Deu tudo certo?

– Sim. Uma pequena fratura exposta. O que demorou foi tentar acalmar o garoto. – ele suspirou, jogando-se na cadeira em frente a Leo. – O que temos para hoje?

– Kira fez o jantar, eu aprendi outro feitiço e Dgrov esperou a tarde inteira para voltar a jogar xadrez. – Lissa contou em deboche. – Espero que seja bom, pois nem eu consigo ganhar dele.

– Temo não ser tão bom assim, então. – ele riu, retirando o casaco. – Pode fazer o primeiro movimento, meu amigo.

– Não quer descansar primeiro?

– Depois de todas aquelas horas na cirurgia? Não, isso é meu descanso. – Mikki respondeu convicto, movendo sua peça depois que Leo fez seu movimento. – Parece que vamos voltar para a estrada logo.

– Isso não te incomoda? – Lissa perguntou. – Ficar indo de lugar em lugar?

– Não estamos fazendo nada do que eu já não fizesse. Sou um nômade por natureza.

– Mas andar tanto cansa, às vezes. Nunca pensou em se instalar num lugar e formar uma família? Creio que sua idade já te obriga a pensar nessas coisas.

– Não sou tão velho assim. – ele riu, movendo a torre. – Só tenho trinta e dois.

– E não pensa em ter uma família? – ela insistiu ao se aproximar. – Ahn... D...

– Já vi. – Leo respondeu surpreso. – Será xeque em três movimentos? Como fez isso?

– Ainda há escapatória. – ele sorriu e Kira entrou novamente no cômodo. – Se está procurando os selos que têm meu poder sobre a casa, tem um atrás dessa estante ao seu lado, um sob a cama, um atrás do quadro, dentro da lareira, no porão, no sótão e na cozinha.

– Obrigada pela informação, mas queria apenas um mapa completo. – ela retrucou, resistindo à vontade de conferir a veracidade de suas palavras. – Tem algum nessa casa ou terei que comprar?

– Emoldurado em cima da mesa. – ele informou, fazendo seu movimento final. – Xeque-mate. Foi mal, cara.

– Essa foi boa! – Leo exclamou empolgado, estendendo a mão para o adversário. – Outra?

– Claro. – Mikhil aceitou, voltando seu olhar para Kira. – Joga Xadrez, Kira?

– Só contra quem pode vencer. – ela respondeu, desenterrando o mapa da pilha de livros.

– Aceita uma partida?

– Não. – ela replicou, trazendo nos braços a pesada moldura. – Licença.

Leo obedeceu rapidamente e quando viu a mesa livre, Kira pousou a moldura e se pôs a observar a superfície lisa do vidro que protegia o antigo papel. Aquele mapa era uma raridade e merecia estar num museu... E era esse tipo de artefato que a ajudaria em seu encanto. Sem pedir permissão, retirou a proteção e alisou o papel com cuidado, observando cada cidade marcada. Precisava de um jeito de não estragar aquela raridade, mas não teria muito jeito.

– Vou estragá-lo um pouco. – anunciou para o dono, sem ao menos olhá-lo.

– Contanto que não rasgue. – Mikhil consentiu, se postando ao lado dela. – O que vai fazer?

Kira não respondeu, levou um dedo a boca e o mordeu fortemente, fazendo-o sangrar. Sem dizer nada, ela flutuou o machucado sobre o papel, deixando que as gotas de seu sangue pousassem exatamente sobre as cidades que passariam no futuro, naquele grande leque de opções. Eram muitos lugares para ir, praticamente três quartos do império.

– Passaremos por todas elas? – Leo perguntou.

– Não. – Kira respondeu, concentrando-se no encanto que queria fazer. Ao seu comando, algumas gotas de sangue se cristalizaram e se agruparam em duas pedras maiores em lados opostos do mapa. Uma bem ao norte, quase depois dos pântanos e outra exatamente na região onde o grupo estava acampado, perto da Floresta de Pedra. – Bem, podemos seguir sem parar até os pântanos, não tenho negócios a tratar nessas cidades. Objeções?

– Tenho consultas para fazer em boa parte delas, se não se importar. – Mikhil revelou, ao indicar aquelas em que teria trabalho. – Tudo bem para vocês?

– A vida é sua, só não atrapalhe a nossa. – Kira retrucou, voltando a parafusar o vidro no quadro. – Precisamos decidir um meio de contornar a Floresta de Pedra sem sermos vistos.

– Para quê? – Mikhil perguntou indignado. – Vai demorar mais se a contornarmos. Pegando a trilha que a corta, atravessaremos a área em meio dia ou menos.

– Mas algumas horas a mais para evitar empecilhos indesejados não matam.

– Não há nada lá, minha cara. Sempre usei aquele caminho e perdi a conta das vezes que acampei naquela mata. Nunca encontrei nada.

– Você não estava procurando e nem sendo procurado. – Kira retrucou seriamente. – E definitivamente não estava em nossa companhia. Não compare circunstâncias tão discrepantes.

– Vamos votar então. – Mikhil propôs aos outros dois. – O que acham?

– Concordo com a Kira. – Leo se pronunciou.

– Mikki. – Lissa falou – Empatamos.

– Não é certo. Podemos nos dar mal. – Kira bufou pensativa.

– Kira, já disse que não há mais nada naquela floresta. Nunca houve. – ele suspirou vendo-a balançar a cabeça, irredutível. – Então, vamos decidir agora com uma partida ou quer decidir na porta da floresta?

– Monte o tabuleiro. – ela cedeu, enquanto procurava um lugar para pendurar o mapa, que já tinha uma gota a menos e uma joia grande a mais.

–-**--

Os olhos dourados encaravam a entrada da floresta com um toque de aflição. Os outros se aproximavam devagar (já que tinha se adiantado para checar o caminho), rindo e conversando animadamente. Podia contribuir para a conversa? Sim, podia, mas não queria. Porque, um: queria distância de Mikhil (ainda mais depois da humilhante derrota em três movimentos); dois: precisava organizar melhor suas táticas; e três: tinha que se certificar de que as lendas que ouvira sobre aquele lugar não eram nada mais que histórias.

– Pronta para pagar a prenda? – Mikhil perguntou ao parar ao seu lado, com um sorriso no rosto. – As duas na verdade.

– Vai jogar na cara mesmo?

– Foi a aposta feita. – ele apontou divertido. – Agora diga alto o que te assusta nesse lugar.

– As lendas me preocupam. Só isso. – ela respondeu a contragosto. – A lenda me preocupa.

– Acredita mesmo nela? – ele sorriu jocoso, pousando a mão no ombro dela. – Sério?

– Seria tola se não considerasse a possibilidade. – ela respondeu antes de arriscar um olhar para aquele rosto, sacudindo o ombro para se livrar do toque dele. Os olhos dele brilhavam, e não achava que era por um bom motivo.

– O que há aí que causa tanta comoção entre vocês dois? – Leo perguntou preocupado.

– Dragões. – Lissa respondeu enfadada. – Li sobre isso num livro. Parece que aqui pode estar escondido um dos últimos dragões dessa terra. Um ladrão de tesouros, pelo que entendi.

– Sim, um dragão. – Mikhil falou, exagerando na voz de assombro e nos dedos em forma de garras. – Um lagarto monstruoso com garras e asas, que cospe fogo. Um guardião de tesouros, um predador temido e um possível mestre da magia. Diz a lenda que um desses se esconde nessa floresta, deitado em seu leito de ouro, só esperando que valiosos tesouros e donzelas de coração puro apareçam para que possa aumentar seu espólio.

– Está brincando?

– Em parte, mas a lenda que corre é essa. – ele deu de ombros. – Dragões buscam tesouros, independente do que seja se achar que é valioso, ele irá pegar. E raramente se enganam. Reinos se formaram por intermédio deles e caíram da mesma forma. Na maioria dos mitos, sempre teve uma donzela presa no alto da torre guardada pelo dragão para ser salva por um herói valoroso. Como eram chamadas mesmo? Joias ou Rosas do Reino? Não me lembro. Você sabe, Kira?

– O que importa é que teremos problemas se o encontrarmos. Seja ele bom ou não. – ela cortou o deboche do médico.

– Não se preocupe, Kira. – Leo sorriu tranquilo, pousando a mão em seu ombro estreito. – Vai ficar tudo bem.

– Você não tem ideia do que isso significa para você, não é? – ela perguntou baixo e ele respondeu com um dar de ombros. – Teremos problemas, D, muitos problemas.

– Não se preocupe, Kira. Se você for pega, pode ter certeza de que vou te buscar, não importa onde esteja. – a voz aveludada de Mikhil atingiu os ouvidos de Kira, provocando uma onda de calor em seu corpo. – Não vou perder você de vista.

– Agradeceria se falasse sério. – ela bufou incomodada, escondendo rapidamente o rubor que ameaçou subir às suas faces. – Rany, fique perto deles; D, preste atenção em volta e você, - ela apontou para Mikki – seu médico depravado, andando.

– Para te proteger dos dragões? – ele riu, recebendo um soco dela.

– Para levar a primeira baforada, idiota. – ela ralhou, apontando para a trilha. – Anda.

– Ok, Ok. – ele riu, se adiantando na trilha, para se certificar de que era seguro.

– Lys, um minuto. – Kira pediu, agarrando a prima pelo braço antes de ela seguir o médico. – Se proteja primeiro. Se tiver algum encanto para te ocultar, faça. Não fale alto e nem se deixe notar.

– Tem tanto medo assim de algo que não existe? – ela perguntou descrente. – Mikki disse...

– Ele não é como nós. – Kira retrucou séria, antes de seguir pela trilha.

Até o momento, não havia nada na paisagem que justificasse o nome que o lugar levava. As árvores eram verdejantes, havia ervas, matos e arbustos em toda parte, assim como rameiras, trepadeiras e outros tipos de vegetações. De pequenas flores solitárias a buquês naturais coloriam partes do verde que pintava a paisagem, assim como pássaros e insetos coloridos. Hora ou outra, algum animal se fazia notar em sua fuga. E os cheiros? Os magníficos cheiros das flores e das folhas impregnavam o nariz e faziam a alma querer dançar.

Era um lugar tão pacificamente belo...

– Por que o nome Floresta de Pedra?

– Se você danificar uma, todas as outras árvores petrificam. Podem ficar assim por anos a fio. Os filhos dos seus filhos podem não ter a oportunidade de ver esse lugar assim, como está agora. Poucos animais se arriscam a viver aqui.

– Como os Dragões? – Mikhil debochou, virando-se para olhá-la. – Salamandras? Fênix? Já sei! Anões gostam de pedras, não é?

– Pare. – Kira pediu passando a frente.

– Ok. – ele riu sob o fôlego. – Mas não entendo o porquê de tanto medo. Pelo que sei, dragões só raptam donzelas de valor, não guerreiras. Você e Rany estão seguras. A menos que fossem da realeza, aí seria um problema caso ele existisse.

– Acho melhor parar, Cara. – Leo pediu preocupado, intensificando a escolta.

– Só estou tentando entender sua companheira, Meu amigo. Vocês são muito misteriosos. – Mikhil se virou para ele e Leo se arrepiou ao ver o brilho sombrio daqueles olhos. – Kira é sempre assim tão fechada? Ou piorou depois que me juntei a vocês?

– Mikki, seu olho... – Lissa falou temerosa, apontando para o rosto do médico.

– Não se preocupe. – ele riu, voltando sua atenção para Kira que analisava o caminho mais à frente. – Então, Kira? Vai dizer o que tanto te preocupa em algo que não existe?

– Quieto. – ela replicou, desviando o olhar do dele. – Dê um jeito nesse olho. Está te deixando mais insuportável.

– Diga-me, Kira. Diga-me o que te preocupa. – ele sussurrou em seu ouvido, provocando arrepios em sua pele. – Diga-me, Princesa...

O soco que recebeu dela o pegou desprevenido, jogando-o ao chão quase instantaneamente. A corrente de dor que correu por seu rosto, partindo logo abaixo daquele olho maldito, o ajudou a clarear a mente e notar as besteiras que estava falando. Deixara que a sombra o tomasse por meio da curiosidade crescente na preocupação de Kira pela Floresta do Dragão e isso era algo que não podia voltar a acontecer. Tampou o olho vermelho com a mão e se obrigou a voltar ao controle, enquanto observava Kira respirar funda e longamente, encarando-o vazia e tremulante.

– Desculpe. – pediu envergonhado, levantando-se com o olhar baixo. – Passei do limite e não me controlei. Me desculpem, os três.

– Que não se repita. – Kira sentenciou, voltando a caminhar.

– Podemos parar um pouco? Estou ficando com fome. – Lissa pediu cansada.

– Podemos procurar uma clareira para acessar a casa. – Mikhil sugeriu. – Tudo bem, Kira?

Kira deu de ombros e Lissa teve permissão para usar magia para achar um local seguro. A sorte é que não estava muito longe, o difícil era que teriam que sair muito da trilha. Em fila indiana, encabeçada por Leo e Mikki, os quatro se embrenharam dentre árvores e arbustos indo em busca da clareira onde acessariam a casa.

O silêncio só era quebrado pelos passos do quarteto, esmagando pedras, galhos e folhas secas no chão da floresta. O cheiro de verde ainda era predominante e Kira teve que se controlar para não parar e começar a colher flores (hábito que desenvolvera no castelo) como Korè antes de ser raptada por Hades. Céus! Se não ficasse tão tensa na presença de Mikhil, provavelmente já estaria com um buquê perfumado nas mãos.

– Rany? – Leo chamou ao se virar, quando deu por falta das incessantes curiosidades que a garota soltava, toda vez que passavam por algo presente em seus livros. – Lys?

Ela não respondeu. Estava parada no meio da trilha, voltada para a esquerda, encarando as árvores com olhos baixos e parados. Só... Respirava. Ela não respondeu nem mesmo quando Kira se aproximou e falou com ela, tocou em seu ombro e estalou os dedos em frente aos seus olhos. Nem mesmo Leo ou Mikhil conseguiram acordá-la daquele transe.

– Ah, não... – Kira balbuciou, engolindo a seco e pousando as mãos sobre os ouvidos, voltando sua atenção para a direção em que a garota se concentrava. – Não, não, não...

Antes que pudessem fazer algo, Lissa correu pelo mato, embrenhando-se mais e mais na paisagem verde, sem ter a reles consciência de que se afastava demais da trilha em que estavam. A perseguição à menina foi acirrada, já que ela estava se valendo de magia para ficar mais rápida. E foi somente quando a ruína de um arco de pedra se pontou no caminho que Leo conseguiu alcança-la e agarrá-la pela cintura, elevando-a do chão e impedindo-a de se aproximar mais daquela coisa.

– Lissa! Pelo amor de Deus! – ele chamou entrecortado, tentando conter a luta dela. – O que há contigo?

– Ela não vai responder. – Mikki revelou, golpeando o pescoço da menina com os dedos, pondo-a inconsciente instantaneamente. – Algo a pôs num transe poderoso. Desculpe, mas era o único jeito...

– Temos que sair daqui! – Kira pediu alarmada, mal suportando o zumbido em sua cabeça.

Um estrondo alto, seguido de um rugido ameaçador estremeceu as bases da floresta. Do alto da copa das árvores, um grande e pesado tronco caiu sobre eles, e tudo o que puderam fazer foi se jogarem para os lados. Leo caiu ainda com Lissa nos braços enquanto Kira se viu pousando sobre o peito de Mikhil que, ainda por cima, encontrara a chance de enlaçá-la com os braços e rolar sobre ela, protegendo-a das pedras que voaram quando o tronco atingiu a terra.

– Corram vocês dois! – Leo gritou do outro lado, se afastando rápido com Lissa inconsciente nos braços. – Está vindo!

Kira e Mikhil não tiveram muito tempo para racionalizar. Num salto, ele se pôs de pé e arrastou a moça para cima, agarrando sua mão e puxando-a pela mata, numa tentativa de se afastar da ameaça que vinha ligeira. Pedras em formato de folhas e galhos caíam do alto e atingiam o caminho dos fugitivos, obrigando-os a mudar de direção diversas vezes quando eram grandes o suficiente para matar. Leo e Lissa não estavam à vista, mas dada a atenção que estavam recebendo, Kira tinha certeza de que eles estavam fora de perigo por hora.

– Não pare de correr. – Mikhil pediu, ainda segurando sua mão.

Mas as pernas de Kira já não respondiam mais tão eficientemente. O zumbido que a atormentava se transformou numa voz cálida e gentil, que seduzia sua mente pouco a pouco, chamando-a para os braços de alguém que não iria machucá-la. E o pior era que confiava plenamente naquela promessa. Sabia que não seria ferida se aceitasse aquele cortejo, mas não podia perder tempo, muito menos arriscar a vida deles. Leo ainda não estava forte para abraçar seu legado e Mikhil...

Mikhil não era o tipo cavaleiro de armadura reluzente de coração tão puro e honrado. Na verdade ele podia até ser, contudo aquela sombra presa em seu olho manchava seu caráter. Não tão obscuramente como se esperava, mas o mínimo de vazão que ele lhe dava o enegrecia. E para esse tipo de coisa, manchas escuras não eram permitidas.

Uma imensa cauda escamosa chicoteou o caminho afrente deles, disparando projeteis de pedras e fiapos petrificados. Mikhil agiu rápido ao puxá-la para seus braços e desviar, se dirigindo para a luz do sol que se projetava em um caminho livre. Se conseguissem chegar a uma clareira e acessar a casa...

– Kira...? – ele balbuciou temeroso, parando de repente.

Ela não queria ver o que o fizera parar, na verdade já tinha uma boa ideia da visão que teria se desenterrasse o rosto do arco do pescoço dele e das consequências se o fizesse. Mas, mesmo assim arriscou-se a olhar.

A figura que se erguia no meio da clareira era alta e misteriosa. Seu robe vermelho e dourado tinha longas mangas bordadas e um capuz vermelho encobrindo seu rosto. Seu cheiro forte de fogo e lava era perceptível mesmo de longe, e sua respiração ruidosa fazia coro com o vento. Ela tremeu nos braços do médico ante aquela visão e se obrigou a resistir ao cortejo em sua mente.

Mikhil se colocou em guarda, cuidando da moça sem se descuidar da figura.

– O que você quer? – perguntou cauteloso, protegendo uma Kira tremulante em seus braços, que estava firmemente agarrada em seu pescoço.

A figura não se mexeu por alguns longos instantes. Quando Mikhil começou a pensar em se afastar, viu-o levantar o braço e apontar com uma garra de sua mão escamosa para a moça em seu colo. Com um sibilo e um movimento dos braços, uma nuvem de fogo e fumaça o envolveu, modificando seu corpo e inundando o local com um cheiro acre, como se tivessem caído num vulcão ativo e não perceberam até o momento. O robe que ele vestia se dissipou por mágica e seu corpo se alongou, ganhando novo formato e mais cores em suas escamas, ganhando brilhantes tons terrosos e avermelhados. Quatro patas poderosas se fincaram na terra, formando sulcos com as garras mortais, asas colossais se abriram para o céu e a cabeçorra de lagarto, cheia de protuberâncias e escamas, foi jogada para trás, jorrando do fundo da longa garganta um rugido estrondoso, seguido de uma baforada de fogo laranja.

– Dragão... – ele balbuciou em choque.

A visão do animal encarando-o, com aqueles grandes olhos cor de âmbar de íris alongadas, destruiu todas as crenças que ele concebera com o passar dos anos. Todas as coisas que pensara que estavam extintas ou acabadas, todas as causas e lendas... Pelos Deuses! Kira estava certa! O último dragão estava ali na frente deles: vivo, respirando e se preparando para tirar a moça de seus braços!

Estava tão arrependido de não ter lhe dado ouvidos, de tê-la zombado por sua preocupação... Vendo aquele ser místico com seus próprios olhos adicionou outra concepção em sua mente e um aviso permanente: nunca mais duvidar dela.

O brilho que se formou na bocarra cheia de dentes do dragão tirou Mikhil de seus devaneios. Antes que a lufada de fogo se formasse completamente e os atingisse, ele correu de volta para as árvores e se abrigou, envolvendo Kira com seus fios de prata, num casulo protetor. O fogo veio ligeiro, lambendo tudo pelo caminho e se dividindo quando atingiu a árvore petrificada. Abraçou Kira o melhor que pôde e suportou o calor que viajava pelos fios e queimava suas mãos.

– Mikhil! – Kira chamou preocupada, quando as chamas se extinguiram por hora. – Ah, meu...

– Não se preocupe comigo. – ele ofegou, tentando engolir a dor que sentia. Seus fios podiam protegê-la, mas transferiam para ele quase todo o dano. Afinal, não eram objetos para proteger. – O manterei ocupado.

– Não. – ela grunhiu, apertando as mãos em torno dos pulsos dele. – Você não tem chance...

– Não tem nada mais broxante que ouvir isso da boca de uma moça, sabia? – ele riu por baixo do fôlego, atento aos movimentos serpenteantes que se aproximavam. – Mas estou feliz que se preocupe comigo. Mesmo que só um pouco.

E roubando um rápido beijo dela, Mikhil se lançou para a luta inevitável contra a criatura.

Kira admirou aquela dupla coragem que ele demonstrara frente ao perigo (beijá-la novamente sem permissão? Que audácia!). Mesmo sabendo que aqueles fios não fossem páreos contra a carapaça escamosa do dragão, ele se empenhava em infligir algum tipo de dano. E tentava e tentava e tentava! Ela não podia deixar de admirar suas tentativas, de observar o jeito que seus pés se moviam para levá-lo para longe do alcance das chicoteadas do rabo... Como seus músculos trabalhavam para mover seu corpo em esquivas e investidas certeiras... Da força que ele demonstrava nas mãos machucadas quando tentava subjugar o dragão, enlaçando seus fios no imenso pescoço e puxando-o para baixo...

Pelos Deuses! Se ele continuasse assim seria gloriosamente esmagado, tostado e comido como uma torrada! Por mais que admirasse sua força e destreza, sabia que em pouco tempo ele seria derrotado. Muito pouco tempo.

Precisava ajudá-lo de alguma maneira, mas não havia meios de se envolver sem ficar exposta. Estar tão perto daquela criatura a debilitava e se pusesse os olhos naquelas orbes em fendas... Estar em transe era a última coisa que poderia acontecer naquela situação.

– Cuidado! – ela gritou quando, num amplo movimento do pescoço, Mikhil foi suspenso e arremessado contra as árvores de pedra. – Mikhil!

– Corra! – ele gritou de volta, se erguendo cambaleante dos destroços.

O Dragão girou em seu eixo e chicoteou-o com o rabo, mandando-o para longe novamente, de encontro com as árvores do outro lado. Kira assistiu aquelas escamas pontiagudas se eriçarem e desprenderem do torço do dragão, como pequenos mísseis disparados por uma arma, e viajarem rápidos pelo ar, atingindo Mikhil como uma chuva de dardos. E foi quando o brilho do fogo ameaçou brilhar naquela bocara, que o coração de Kira afundou. Ele não teria chances...

– Pare! – ela pediu alarmada, se obrigando a sair do esconderijo e se pôr na zona de perigo. – Por favor, pare com isso!

O dragão interrompeu sua preparação e se virou para ela, lançando seu olhar fendado em seus olhos, capturando-a sem mais distrações. Kira caiu sobre os joelhos e ficou ali, parada, presa nos olhos âmbares do réptil sem ter chances de se libertar. Estava domada e ele iria reclamá-la.

– Saia de perto dela! – Mikhil gritou, se pondo de pé e lançando seus fios sobre o lagarto, recebendo com isso toda a atenção do olhar hipnotizante do dragão.

O fogo veio rápido e infernalmente inesperado. Mikhil não teve tempo de se proteger, muito menos sair do caminho. Tudo o que pôde fazer foi um escudo com seus fios e rezou para que não ficasse queimado o bastante para se declarar nocauteado. Mas antes que as chamas o atingissem com força total, um pequeno corpo se chocou contra ele com tanta força que foram arremessados alguns metros adiante, longe o bastante das chamas. Por um momento ele não soube decifrar o que ocorrera, pois a dor em suas pernas queimadas nublou sua compreensão. Mas nada mais podia roubar sua atenção quando notou os braços dela enlaçando-o pela cintura e seu rosto (ainda em transe) contra seu peito. Kira... Kira o salvara de novo.

– Acorde, Kira... – ele pediu ao se sentar, afagando as costas dela com uma mão e arrastando ambos com a outra. – Acorda, anda...

O chicotear da cauda do dragão os atingiu com violência e os separou novamente. Mikhil foi arremessado contra outra árvore de pedra enquanto que Kira rolou pela terra e parou como uma boneca de trapo, com os braços e pernas sobrepostos e a cabeça voltada para ele. As forças se esvaíam à medida que tentava se levantar, alternando o olhar entre o grande lagarto que se aproximava e a moça caída não muito longe. O olhar dela estava tão errado... Tão... Vazio...

O dragão bufou uma vez, lançando nele uma nuvem de enxofre e voltou-se para Kira, como se desse a luta encerrada e fosse reclamar seu prêmio. Apoiando-se em três patas, ele a remexeu com as garras e a agarrou delicadamente pelo tronco - como uma pequena boneca de porcelana -, estendendo as grandes asas em seguida. Ele estava partindo... O maldito estava partindo e ia levá-la consigo.

– Não... – grunhiu do chão, estendendo o único fio que podia produzir, enrolando-o no pulso dela. – Não a leve...

O dragão parou por um momento e encarou os dois em sua singela ligação. Podia ver as lágrimas brilharem nos olhos vazios da moça e seus pequenos movimentos da mão que tentava apanhar o fio que a enlaçava. E o rapaz... Admirara sua força e determinação, mas já era hora de parar e extirpar aquela força do mal que residia dentro dele. E sem mais tempo a ser perdido, abriu a boca, evocou seu fogo do fundo da garganta e cuspiu no homem.

E suas chamas foram quentes o suficiente para varrer aquele local inteiro e transformar aquele homem em cinzas.


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Notas finais do capítulo

Editado em 25/04



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