As flores que eu te dei... escrita por MSDuanca


Capítulo 6
Cravinas despedaçadas




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Os primeiros raios de sol despontavam no horizonte, no instante em que o som estridente do despertador tomou conta do quarto escuro no qual Duca dormia. O sono ainda o dominava, o lutador mal conseguia abrir os olhos, seu corpo estava todo enrolado num emaranhado de lençóis, resultado da noite inquieta que tivera, o seu único membro livre era o braço esquerdo que tateava o criado-mudo a procura do celular, que continuava emitindo aquele barulho insuportável.

“Boomp!!!”

Quando seus dedos finalmente alcançaram o aparelho, em vez de desligá-lo, o que ele conseguiu fazer mesmo foi derrubar o telefone no chão.

– Droga – ele balbuciou com voz sonolenta e continuou reclamando em voz alta: - Por que essa porcaria tá tocando de madrugada?

Ao abrir um pouco mais os olhos sua pergunta foi imediatamente respondida: a pasta cinza de Bianca ainda estava com ele. Na noite anterior, ele mesmo decidira acordar mais cedo para deixá-la na academia antes de sua primeira aula na Aquazen.

Sem alternativa, ele se viu obrigado a levantar e foi direto para o banho, pois não queria se atrasar. Depois de uma chuveirada rápida para acordar e de um café da manhã reforçado, Duca pegou sua mochila, a pasta da ex e encaminhou-se para a academia.

Passava um pouco das sete e meia, quando o lutador preferido do Mestre Gael entrou no escritório da academia e encontrou o ex-sogro fazendo contas e mais contas em uma calculadora já surrada pelo tempo.

– Bom dia, Mestre! – cumprimentou-o Duca ao adentrar no escritório.

Largando as faturas em cima da mesa, o Mestre voltou sua atenção para o recém-chegado:

– Bom dia, Duca! Ué? O que você tá fazendo aqui uma hora dessas? Não me diga que tá precisando de dinheiro e veio pedir um adiantamento, porque eu nem sei qual dessas contas pagar primeiro. Essa academia já deu lucro, mas hoje em dia só dá despesas – Gael nem esperou seu pupilo dizer o que queria, foi logo fazendo uma série de suposições e explanações para o jovem lutador.

– Não, não. Relaxa, Mestre. Ainda não é isso – Duca disse rindo e continuou - só vim trazer essa pasta da Bianca.

– Da Bianca??? Achei que vocês nem estavam mais se falando?! - Gael arregalou os olhos surpreso com a possibilidade dos dois terem finalmente deixado a birra de lado e se tornado amigos de verdade.

– E não estamos mesmo, mas por acaso essa pasta ficou comigo - Duca respondeu sem entrar em detalhes do que realmente tinha acontecido no sábado.

– Ah! - o Mestre exclamou decepcionado.

– Vou deixar aqui, depois o senhor entrega pra ela, tenho que ir pra Aquazen – disse o lutador, deixando a pasta cinza em cima da mesa.

– Tudo bem, bom trabalho! – ele assentiu.

– Obrigado. Tchau, Mestre.

Apesar da academia já estar começando a ficar movimentada, Duca não parou para conversar com nenhum dos alunos que estavam se equipando para a primeira aula do dia. No entanto, quando ia atravessar a porta de saída deu de cara com Bianca, que vinha chegando.

Os dois pararam, um na frente do outro, a pouco mais de um metro de distância e num impulso, quando Bianca fez menção de desviar dele para entrar, Duca estendeu o braço retendo-a.

– Bom dia! Acho que eu não virei um fantasma ainda, não é?! - brincou o neto de Dona Dalva.

– Se não virou, tá quase – ela respondeu séria.

Duca não tinha acordado com a intenção de ter uma discussão com a ex, mas a forma com que ela lhe respondera o deixou estarrecido e ele não conteve a sua indignação:

– Nossa, Bianca, achei que pelo menos nós fôssemos nos tratar com educação – ele falou demonstrando que havia ficado chateado.

– Jura que você tá me cobrando educação, sendo que outro dia estava me agarrando a força por aí – ela criticou, esclarecendo o motivo do tratamento ríspido.

– Para, Bi. Nem foi tão a força assim vai - Duca continuou fazendo uma carinha de carente e exibindo um sorriso de canto de boca.

– Tá vendo porque eu prefiro ignorar você? Você nunca leva as coisas a sério, sempre acha que um beijo ou uma noite ao seu lado vão me fazer esquecer as coisas que aconteceram. Além do mais, eu estou farta dessas suas investidas, pra que ficar me agarrando pra terminar tudo no outro dia ou na outra semana. Eu não vou ficar a vida inteira a sua disposição, pra matar os seus desejos e depois fingir que nada aconteceu.

– Quem disse que ia ser só por uma noite?

– Ninguém precisa dizer, Carlos Eduardo, o seu histórico diz por si só.

– Você sabe que as coisas não são assim como você está falando, a gente não ficou junto da última vez porque eu quis te proteger e não porque eu não te amava mais ou tinha cansado da nossa relação. Você nem tem ideia do quanto foi difícil terminar com você mais de uma vez, no fundo nunca foi o que eu quis. Eu queria estar contigo durante todos esses meses - ele começou a desabafar e a emoção foi embargando sua voz aos poucos.

– Não consigo acreditar nisso, se você ainda gostasse de mim não teria mentido, não teria ficado com todas as garotas da Ribalta.

– Você vindo falar de mentiras pra mim? Se esqueceu de quantas vezes já me enganou por causa das suas armações? - o lutador revidou as críticas da ex.

– Tudo o que eu fiz foi com a intenção de ver as pessoas felizes, ao contrário de você – ela falou fechando a cara.

Percebendo que a discussão não ajudaria em nada, Duca resolveu mudar a abordagem:

– Chega, chega. Já discutimos essas coisas mais de uma vez e não conseguimos entrar em um consenso. Eu só sei que queria voltar ao início do nosso namoro, lembra? Mesmo quando a gente achava que tinha inúmeros empecilhos no caminho: teu pai, a Ka; a gente sempre dava o nosso jeitinho de se encontrar, de ficar juntos... - ele disse na tentativa de amolecer o coração da atriz.

– É, mas não somos mais os mesmos do começo. Tá na hora da gente aceitar que não consegue mais se entender. Eu quero alguém que me faça bem, não alguém com quem eu brigue dia sim, dia não. Eu quero seguir adiante com a minha vida, com a minha carreira. E não existe mais espaço para “nós dois” nessa nova fase da minha vida - ela permaneceu irredutível, com a voz firme, sem sequer titubear diante do ex.

– Tem certeza disso? - ele perguntou perplexo com o discurso da garota.

Bianca se limitou a balançar a cabeça em sinal de afirmação.

– Você tá dizendo isso por causa daquele magrelo, não é?

– Não, e se fosse também você não tem nada a ver com isso – a atriz retrucou indignada com a cobrança do ex.

– Não acredito... - o lutador balançava a cabeça inconformado com o que ouvia.

– Posso ir? - ela perguntou impaciente com a situação, pois sabia que não ia conseguir disfarçar a sua indiferença por muito tempo.

– Então, é isso??? Acabou??? - Duca insistiu incrédulo.

A filha mais velha de Gael balançou novamente a cabeça para cima e para baixo, respondendo, em silêncio, que sim, este era o fim da história dos dois.

Ainda que ele achasse que seus olhos estavam dizendo outra coisa e que ela não ousou responder verbalmente para não trair a si mesma, esse simples gesto fez com que Duca tirasse o braço, que estava apoiado na porta desde o início da conversa, do caminho dela, baixasse a cabeça e saíssem sem dizer mais nenhuma palavra.

Bianca nem olhou o ex se afastando, pois não queria ferir mais os seus sentimentos, já tinha sido duro demais ter que encarar Duca e lhe falar tudo que ela havia dito, porque apesar de querer que suas palavras fossem verdade, ela tinha consciência de que ainda não havia se desprendido dele da maneira como dissera.

– Droga, droga, por que eu sou esse idiota emotivo – Duca reclamava de si mesmo, enquanto enxugava os olhos levemente marejados e respirava fundo tentando conter a emoção.

O lutador não queria acreditar que o que Bianca dissera era verdade, ele até concordava que ambos podiam ter mudado, mas não a ponto de não poderem mais se acertar. Não, não depois daquele beijo de sábado, no qual ele a sentiu totalmente entregue em seus braços, desfrutando daquele momento tanto quanto ele. Não podia ser verdade que não existia mais um espaço para os dois na vida dela. Com a cabeça perturbada por causa da discussão, o lutador caminhava o mais rápido que podia para se afastar da academia, daquela situação constrangedora que acabara de viver, ele completamente “entregue”, disposto a encontrar uma forma de recomeçar e ela o tratando com frieza e pouca vontade.

Duca estava tão transtornado que não enxergava nada direito a sua frente, ao atravessar a rua repentinamente sentiu o seu ombro colidir com o corpo de outra pessoa. Em seguida, ouviu-se o barulho de um recipiente de vidro espatifando-se no chão. Duca tinha ido de encontro a um franzino entregador de flores do bairro.

– Ei, cara, você não olha por onde anda? - o menino questionou-o indignado ao ver o arranjo de belas cravinas totalmente destruído, as pétalas de cores rosa e vermelho espalhadas pelo asfalto, muitas esmagadas pelos cacos de vidro que se formaram com o choque. Um arranjo lindo que deveria ser entregue com urgência, agora não passava de um amontoado de lixo.

– Desculpe – o neto de Dona Dalva disse enquanto continuava o seu caminho.

– Hey! E o prejuízo, como fica? - o garoto gritou ao ver ele se afastando.

Duca parou, procurou um trocado no bolso e entregou o que tinha à mão para o rapaz. O entregador fitou os vinte reais com desânimo, pois não seria o suficiente para cobrir totalmente a despesa, ele infelizmente também teria que tirar dinheiro do seu próprio salário para completar o valor correspondente ao pedido que havia sido aniquilado em menos de dez segundos.

O barulho das crianças na piscina e a distração de Duca fizeram com que ele nem ouvisse a chefe o cumprimentar quando ele entrou na Aquazen. O lutador passou direto por Roberta, pelos alunos e foi para o vestiário largar seus pertences e tentar reestabelecer o ânimo para dar as inúmeras aulas que ele ainda tinha pela frente naquela segunda-feira.

...

– Cinco, seis, sete e oito... Um, dois, três, quatro...

A voz firme de Lucrécia comandava os passos e a marcação dos alunos na ampla sala espelhada da Ribalta. Bianca se concentrava ao máximo nos seus movimentos. Apesar da dança não ser o seu forte, ela gostava de imaginar que estava representando um papel e era uma dançarina dedicada e talentosa, além de gostar muito de sentir o seu corpo em movimento, levado pelo ritmo da música. Nem os gritos da professora faziam com que ela se desconcentrasse do acordes suaves da canção que embalava a penúltima aula da tarde.

– Agora vamos repetir os movimentos em linhas de três em três, quero ver a sincronicidade dos trios, vamos lá: Jeff, Sol, João, depois Bárbara, Jade, Bianca, em seguida Maria Flor, Tainá e Ana, assim por diante. Depois de executarem os movimentos, retornem para o final da fila. Vamos repetir a sequência pelo menos uma vez. É pra hoje, gente – ordenou a professora.

Enquanto o primeiro trio já executava os passos, Bárbara, Jade e Bianca esperavam uma do lado da outra.

–Você vai ter que se esforçar muito, Bianca. Dançar no meio dos outros é fácil, quero ver do meu lado, seus erros vão ficar muito mais evidentes – provocou Jade.

– Errada é você que pensa que herdou o talento da sua mãe, mas não passa de uma dançarina mediana, que qualquer uma consegue acompanhar facilmente - revidou Bianca.

– Ei, agora não é hora! Vamos prestar atenção que daqui a pouco é a gente, me deixa ficar no meio – interveio a ruiva tentando amenizar o clima pesado que sempre se instalava quando as duas eram obrigadas a trabalhar juntas. Bárbara já foi se colocando entre as duas, mas esse gesto, que para ela visava evitar um conflito maior entre as suas colegas, acabou despertando ainda mais a ira de Jade:

– Não, nem pensar, o lugar de destaque é meu – a filha de Lucrécia falou, empurrando a ruiva para a sua direita novamente.

– Os próximos, vamos... - orientou a professora impaciente.

Nas pontas dos pés, com o braço direito alongado na horizontal e o esquerdo em arco, na vertical, ao ouvir o comando da professora as três abaixaram lentamente o braço esquerdo e arquearam o direito até as suas mãos estarem na altura da cintura formando um círculo. Então, fizeram um giro completo sobre o seu próprio eixo e com pequenos saltos se deslocaram para o centro da sala. Jade que estava no centro e queria se destacar das demais aproveitou este avanço da coreografia para se adiantar em relação às suas companheiras e começar a executar os movimentos primeiro, antes mesmo que as outras duas tivessem assumido as suas posições.

Quando Jade executava o próximo movimento, seu braço esquerdo se chocou com o braço direito de Bianca que ainda estava finalizando o passo anterior. As duas trocaram um olhar desafiador e tiveram vontade de se engalfinhar ali mesmo, no meio da aula, mas mantivera a compostura e continuaram executando os movimentos seguintes, pois sabiam que se arrumassem confusão na aula de dança seriam suspensas por, no mínimo, uma semana.

Lucrécia percebeu a confusão na coreografia e os olhares trocados pelas alunas, porém continuou apenas observando-as com a testa franzida e balançando constantemente a cabeça em sinal de reprovação. Ao final do primeiro ciclo de apresentações dos alunos, a exigente professora interrompeu a música e repreendeu os jovens:

– Parem! Que show de horrores foi esse? Vocês tem que melhorar muito se algum dia quiserem ser artistas. Trabalhar em grupo e com sincronia é fundamental para que o espetáculo seja limpo, agradável aos olhos.

Os alunos tiveram que repetir mais três vezes a sequência proposta pela professora, no fim da aula a maioria dos jovens estava ofegante.

– Cansou, Bianquinha? – perguntou Jade, com a intenção de diminuir a colega.

– Cansei, cansei de você querendo aparecer mais que todo mundo e estragar a coreografia, fazer a gente levar esporro da sua mãe. Com certeza, eu cansei disso – revidou Bianca e saiu virando a cara para sua arquirrival.

A turma que continuava animada, apesar das broncas que tinha escutado a pouco, seguiu para o anfiteatro para a próxima aula. Bianca continuava indignada e conversava com a ruiva sobre o comportamento da filha de Lucrécia, quando teve o seu papo interrompido pelo chamado do celular. Acabara de chegar uma mensagem: “Cinema hoje à noite?”

Ruiva esticou o pescoço para ler junto com a amiga:

– Hum... Tá rendendo essa história com o paulista, hein?!

Bianca só riu do comentário de Bárbara, de certa forma concordando com a afirmação da amiga, enquanto respondia ao convite: “Claro, vou ficar te esperando depois da Ribalta”.

...

E hoje mesmo separados sinto que o seu corpo ainda é meu,
Às vezes, me escondo e faço de tudo pra ninguém notar que eu
Vivo e morro por ti, tem semanas que às vezes sofro e vêm as recaídas...”
1

A voz desafinada de Marcão ecoava no vestiário, superando o som produzido pelos chuveiros em que se banhavam os lutadores, depois de mais um dia de treino exaustivo.

– Marcão, como cantor, você é um ótimo lutador - Duca zoou o amigo.

– É, Marcão, já conhecemos os seus dotes artísticos, pode parar já - pediu Zé.

Marcão ignorou as críticas dos amigos e continuou cantando, cada vez mais alto, forçado os agudos e desafinando como só ele conseguia fazer.

Duca se apressou para livrar-se dessa tortura o mais rápido possível, enquanto os companheiros ainda se enxaguavam, ele já estava terminando de se vestir.

– Tô indo, rapaziada. Vocês são muito “mulherzinha”, demoram pra caramba! Tchau – Duca se despediu, já com a mochila nas costas e abrindo a porta.

O lutador ia saindo da academia, quando parou abruptamente ao ver do outro lado da rua a sua ex-namorada de mãos dadas com aquele magricelo metido. O sentimento de apatia com que ele estava andando até a pouco foi substituído de repente por uma fúria sobrepujante, Duca deu meia volta e retornou com passos largos para a academia. Ele foi direto para o seu armário e ao abrir a porta do mesmo, a caixa de bombons com um belo laço de fita vermelha caiu sobre os seus pés.

– Essa porcaria ainda está aqui?! - ele falou baixinho enquanto posicionava o pé direito para dar um chute e jogar a caixa longe. O embrulho rodopiou algumas vezes no ar até se chocar contra o peito de Marcão que ia passando no corredor junto com Zé, ambos recém haviam saído do vestiário.

– Ai!!! – Marcão gritou quando o objeto, para ele desconhecido, o atingiu: - Eita, o que é isso Duca??? Um presente pra mim, desse jeito eu gamo... – ele brincou se abaixando para pegar a caixa.

– Hum... Tá dispensado chocolate, ganhado ainda por cima, Duca? - questionou Zé analisando a caixa que estava nas mãos de Marcão.

– Não foi ganhado... Ah, deixa pra lá, pode levar - Duca ia se explicar, mas resolveu encurtar o assunto.

– Ainda bem que a gente te encontrou ainda aqui, estávamos pensando em dar um rolê hoje à noite - falou Zé, que observava o seu amigo estabanado desembrulhando a embalagem da caixa de bombons.

– É, Duca. Vamos pra um bar, pegar umas gatinhas? - complementou Marcão enquanto enchia a boca com os doces.

– Então, vamos?! - insistiu Zé.

– Não, eu vou ficar um pouco mais – ele respondeu e já foi colocando as ataduras nas mãos, preparando-se para voltar a treinar.

– Ficar? A gente treinou pesado a tarde inteira, irmão - questionou Zé, surpreso com a resposta do amigo.

– É, podem ir vocês. Tchau - Duca se despediu de novo, virou as costas e dirigiu-se para a área de treino sem dar atenção aos colegas, pois não queria ter que contar o que acontecera há pouco.

Os dois se olharam sem entender nada, deram de ombros e foram embora. Duca terminou de se equipar no curto trajeto e ao se aproximar do tatame encontrou Wallace organizando os pesos e demais acessórios da academia.

Wallace estranhou ver o seu professor, todo paramentado, pronto para treinar novamente:

– Ué, vai treinar de novo, referência?

– É, resolvi ficar um pouco mais, o campeonato está chegando quero estar bem preparado. Pode ir, depois eu fecho a academia.

– O que é isso? Ritmo doido, hein? Tem certeza que posso ir?

– Tenho, sim.

– Valeu, até amanha, então.

Apesar de o dia ter sido cansativo, aquela cena desagradável havia despertado os seus instintos mais primitivos. Quando finalmente ficou sozinho na academia, ele desferiu golpes violentos contra o saco e o boneco de treino. Seus movimentos eram fortes, pesados, não eram como em um treino normal, ele não estava preocupado com a posição dos cotovelos ou das pernas, não lhe importava se os golpes estavam sendo bem executados. O lutador só queria descarregar essa tensão que se apoderara do seu corpo.

A raiva de Duca nem era especificamente contra o famigerado paulista. Com certeza, o neto de Dona Dalva não ia com a cara do rapaz, mas a culpa do afastamento dele e de Bianca não era somente do projeto de advogado. Depois da conversa que tivera com ela mais cedo, Duca tinha percebido que eles não estariam juntos mesmo se esse novo pretendente não tivesse aparecido. Entretanto, para o lutador também era impossível não sentir um pouco de ódio do rapaz por ele estar no seu lugar, para ele ainda não era aceitável ver a sua namorada com outro sujeito.

A cada golpe, o lutador sentia como se ele estivesse sofrendo as pancadas na sua própria alma e de forma tão dura quanto havia sido presenciar a sua garota de mãos dadas com outro e num grau de intimidade que o machucava tanto. Sem se importar com o horário, com o fato de sua avó provavelmente estar preocupada com a sua ausência, Duca continuou ali lutando contra um adversário invisível.

...

A bilheteria do cinema estava praticamente vazia, algo extremamente normal para uma segunda à noite. Escolher o filme também não foi uma tarefa difícil, haviam poucas opções disponíveis: um de terror, um sobre vampiros e uma comédia romântica. Antes mesmo de ver os filmes que estavam em cartaz, Bianca já havia optado por um romance independentemente da sinopse da história, sem dúvidas era o seu gênero preferido, e Henrique não se opôs à escolha dela, muito pelo contrário, concordou prontamente quando a atriz manifestou a sua preferência.

Embora não fizesse muita diferença, visto que a sala estava quase deserta, os dois escolheram sentar-se nas poltronas mais do fundo. Ainda faltava uns vinte minutos para o início da sessão e ambos permaneciam em silêncio, aquele silêncio meio constrangedor, muito comum em inícios de relacionamento, quando ambos já se conhecem um pouco, mas não o suficiente para falar naturalmente sobre qualquer assunto seja ele importante ou banal, ou simplesmente para ficar em silêncio mesmo, porém um silêncio acolhedor.

Henrique que encontrava-se inquieto, quebrou o silêncio:

– Vamos pegar uma pipoca?

– Aham, pode ser salgada pra mim – Bianca concordou.

– Tá. Então, eu já volto – o rapaz disse enquanto se levantava.

Bianca permaneceu ali observando a movimentação das pessoas na sala até que o primeiro trailer começou a ser exibido e Henrique apareceu carregando dois potes de pipocas e um saquinhos de guloseimas com balas, chocolates e tudo o mais que ele encontrara para comprar.

– Obrigada – a atriz agradeceu sorrindo ao pegar o seu pote de pipoca.

O filme iniciou logo em seguida e os dois se mantiveram entretidos com a história, com a pipoca, trocaram alguns poucos comentários sobre o desenvolvimento do enredo e a atuação dos atores. Henrique sentiu que a sua acompanhante não estava muito a vontade, mas não quis questioná-la, simplesmente respeitou o seu comportamento. Assim que a sessão terminou, os dois foram direto para o Catete.

Ao chegar em frente à residência do Mestre Gael, Henrique saltou do veículo rapidamente para a abrir a porta para Bianca, que agradeceu novamente o rapaz pela gentileza, pelo convite e pela noite:

– Obrigada, eu estava precisando me distrair um pouco mesmo, o final de semana foi de muito estudo e a segunda já começou pesada, você é sempre um príncipe comigo.

– Eu que agradeço pela companhia maravilhosa. Só o fato de poder te ver já faz o meu dia se tornar especial – o rapaz disse todo derretido diante da sua pretendente.

Os dois trocaram alguns beijos suaves e em seguida, Bianca se despediu, antes que o seu pai aparecesse outra vez e estragasse o momento de fofura do quase casal mais uma vez.

Henrique havia acabado de deixar o Catete, quando Duca completamente exausto e encharcado de suor atravessou a rua rumo a sua casa. O lutador chegou batendo a porta e subiu as escadas sem nem cumprimentar a avó que cobrou explicações assim que o neto pisou dentro de casa:

– Duca, por onde você andava? Duca!!! Volte aqui agora!!! - a preocupação da avó foi em vão, o rapaz nem lhe deu ouvidos. Após chamar pelo neto mais uma ou duas vezes, Dona Dalva cansou e resolveu deixar o sermão para o dia seguinte, pois imaginou que o neto iria direto para a cama.

O choque térmico que o lutador sofreu ao entrar no chuveiro o despertou ainda mais, todo o suor e toda a energia gasta tinham amenizado parcialmente a tensão do seu corpo, mas a sua mente continuava perturbada por um turbilhão de pensamentos. As imagens da discussão que tivera com a ex e dela acompanhada daquele paulista não saiam da sua cabeça.

Após sair do banho, o neto de Dona Dalva decidiu que não iria ficar em casa se debatendo a noite inteira, tentando dormir em meio a confusão que o dominava, o melhor que tinha a fazer era mesmo sair com os amigos. Aproveitar a vida, afinal de contas não era isso que Bianca estava fazendo ao se envolver com aquele moleque. Pois bem, ele também tinha que deixar o passado para trás e começar a desfrutar do presente.

Menos de uma hora depois do horário que tinha chegado em casa, Duca atravessava novamente a porta da rua, agora rumo à liberdade e às inúmeras possibilidades que se abririam para ele naquela noite.

1 Música “Recaídas” de Henrique e Juliano.


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