As flores que eu te dei... escrita por MSDuanca


Capítulo 2
O espinho




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Ainda era cedo, 6:45 h marcava o relógio digital que ficava quase escondido no meio dos bibelôs, porta-joias, estojos de maquiagem, escovas de cabelos e tantos outros objetos multicoloridos que ornamentavam a penteadeira branca em estilo neoclássico. Mais uma noite havia passado e os pensamentos que povoavam a sua mente não a tinham deixado ter uma noite de sono plena e restauradora. Ao ver a sua imagem refletida no espelho, ela sabia que ia ter que adotar muitos truques de maquiagem para disfarçar as olheiras. O hidratante, o primer, o corretivo líquido, a base, o pó compacto e os pincéis já estavam espalhados na sua frente, porém ela continuava imóvel olhando fixamente para si mesma, tentando enxergar a sua própria alma através do espelho.

A ansiedade, que havia feito ela despertar inúmeras vezes durante a noite, ainda era o sentimento que a dominava naquela manhã de quinta-feira. Apesar das inúmeras horas de reflexão que tivera, não conseguira chegar a uma conclusão sobre como tudo havia mudado tanto e tão rápido... As lembranças dos momentos felizes, de carinho e cumplicidade ainda estavam tão vivas na sua memória... Se ela fechasse os olhos podia ver o seu sorriso provocante, sentir a voracidade do seu beijo e a força das suas mãos a puxando para si, os dois desafiando as leis da física e quase ocupando o mesmo lugar no espaço... Essas lembranças por si só eram capazes de tirá-la da realidade, fazê-la viajar no tempo e reviver momentos únicos e mágicos que a deixavam toda arrepiada ainda, mesmo após todos os acontecimentos trágicos que haviam contribuído para o término do seu relacionamento.

– Bianca, Bianca!!! Você está dormindo sentada??? Já não está atrasada para ir para a academia???

Os seus devaneios tinham sido interrompidos pela “delicadeza” de sua irmã mais nova, Karina.

– Ah, tanto faz, já estou indo, irmãzinha - respondeu Bianca, ainda em transe.

Ela olhou para o relógio e nem pôde acreditar que já eram 8:40 h. Como ela permanecera ali sentada durante quase duas horas, sem mover um músculo sequer, sem percebe que a irmã havia acordado, sem notar a claridade que invadia o seu quarto? Bianca não sabia definir esse sentimento que costumava invadir o seu corpo e a sua mente. Não tinha certeza se ainda era amor ou se era algum tipo de obsessão, só sabia que as memórias deles dois tinham o poder de mexer completamente com o seu psicológico.

Para despertar da apatia, ela se dirigiu ao banheiro e lavou o rosto várias vezes com água gelada. Depois, retornou para a sua penteadeira e fez rapidamente uma maquiagem, só para esconder os sinais mais evidentes da noite mal dormida. Apanhou sua bolsa marrom de franjas e foi para a academia do pai, pois não queria começar o dia levando uma bronca do Mestre Gael.

Ao longo desses três meses de separação, não houve um só dia em que ela tenha se sentido a vontade na academia do próprio pai. Circular pelo escritório, vestiários e demais recantos do local, sem pensar que cada centímetro fez parte da sua história com o Duca era impossível. Mesmo que eles se encontrassem tão pouco depois dele ter mudado os seus horários, o ambiente sempre trazia memórias e sensações que jamais seriam esquecidas. Os beijos roubados embaixo da escada, as risadas compartilhadas durantes os intervalos das aulas, os olhares apaixonados trocados através do aquário da academia... A única alternativa para ela era tentar conviver com essas lembranças de forma natural, coisa que ela ainda não tinha conseguido, apesar das conversas que eles tiveram, da decisão mútua de serem amigos... Nada mais seria simples e natural como antes.

Ela se entregara para ele como nunca havia feito anteriormente, pois na época acreditava que o sentimento entre eles era tão forte e verdadeiro que nada, nem ninguém poderia separá-los. O que ela não imaginava era que os ciuminhos, as metirinhas e os atos impensados de ambos acabariam afastando-os de forma tão cruel e definitiva. Bianca era muito jovem e não tinha noção de que a vida muitas vezes escapa do nosso controle, que as pessoas mudam constantemente e que, às vezes, nem todo sentimento do mundo é capaz de fazer com que as mágoas sejam esquecidas e os problemas superados.

Houve tantos acontecimentos desde o término. Ela mesma já havia conhecido um aspirante a advogado com pinta de príncipe encantado, que fizera o seu coração balançar. E o Duca... Ah, o Duca tinha mudado tanto, ela nem conseguia mais reconhecer nele aquele homem doce e ao mesmo tempo decidido que havia conquistado todo o seu amor. Agora ele andava arrogante, intempestivo, mal-humorado, desanimado até mesmo com o muay thai, parecia perdido, sem saber mais o que queria para si.

“Piii...Piii...” soou o apito do professor Duca, indicando que chegava ao fim mais uma de suas aulas da Aquazen, as quais ele ministrava quase de olhos fechados, visto que já tinha decorado a rotina dos alunos, tudo tão entediante e sem emoção.

“Para onde foi a emoção, o tesão pela vida, pelo esporte???”

Essa foi a pergunta que ficou martelando na cabeça do lutador durante os dez minutos de intervalo que ele dispunha entre uma turma e outra. O que tinha acontecido na sua vida para que ele tivesse perdido o interesse por coisas que outrora ele amava tanto!?!?

O baque da perda do irmão, talvez, mas ele não deveria se deixar abater. Muito tempo havia passado, ele não podia continuar se culpando pela morte do Alan. Depois de tantos meses, tanto sofrimento, ele precisava reagir, reencontrar a vontade de lutar pelos seus sonhos, readquirir a vitalidade que lhe era tão peculiar, enfim voltar a viver e a sorrir. Duca precisava se reerguer, porém lhe faltava motivação. A única coisa que ele havia feito nesse período pós-luto era trabalhar, trabalhar e trabalhar, a fim de evitar ao máximo os pensamentos desagradáveis que insistiam em lhe atormentar.

Depois de uma manhã corrida na Aquazen, mal lhe sobrava tempo para buscar sua avó na banca e desfrutar da sua companhia por alguns minutos durante o almoço. Em seguida, já tinha que ir correndo para os treinos e as aulas da academia do Mestre Gael. E assim ele fez, deu beijo na sua avó e saiu voando para o local da sua próxima jornada de trabalho.

Ao alcançar a soleira da porta de entrada da academia, Duca avistou a figura de uma bela moça subindo apressadamente as escadas da Ribalta e pôde sentir no ar o perfume delicado que ele conhecia tão bem.

“Ah, Bianca, quando foi que nós nos perdemos um do outro?!” – ele pensou consigo mesmo. Talvez fosse a hora de tentar recomeçar. Descobrir uma maneira de resgatar o sentimento que um dia os uniu e fez com que eles desfrutassem de inúmeros momentos de alegria juntos, uma felicidade tão plena que eles jamais haviam experimentado com outras pessoas.

Sim, ele entrou na academia decidido. Ao final da tarde, conversaria com ela e resolveria essa questão de uma vez por todas. Pediu permissão ao mestre para ficar treinando até mais tarde e na primeira oportunidade que teve deu uma fugidinha até a bombonière da esquina comprar uma caixa dos chocolates preferidos da Bianca.

– Boa tarde, Dona Catarina! – Duca cumprimentou sorridentemente a dona da lojinha do bairro.

– Boa tarde, em que posso ajudá-lo? – prontificou-se a simpática senhora de meia idade e cabelos levemente grisalhos.

– Vou querer uma caixa de trufas da Godiva– ele respondeu sem titubear, pois conhecia muito bem o gosto da sua ex-namorada.

– Pequena, média ou grande? – Dona Catarina questionou.

– Hum... Média, a caixa não pode ser muito grande, senão é capaz dela ficar brava comigo por achar que eu estou querendo engordá-la - ele falou em tom de brincadeira.

– Todas as mulheres têm receio de engordar, meu querido - ela afirmou.

– A senhoria poderia fazer um embrulho bem caprichado, por favor - Duca pediu, já que a intenção dele era realmente impressioná-la.

– Claro - ela consentiu sorrindo.

Enquanto esperava pacientemente a senhora terminar o embrulho, Duca percorreu com os olhos as prateleiras do local, já registrando em sua mente as opções de mimos que ele poderia vir a comprar no futuro, caso reatasse o relacionamento com a sua amada.

– Obrigado - ele agradeceu ao ver a linda embalagem que a dona da loja havia feito para o seu presente. Ele pagou, pegou o pacote e voltou feliz da vida para a academia.

O restante da tarde se arrastou dando-lhe a impressão de que estivera esperando há séculos para que ponteiro do relógio marcasse 18 h, mas enfim a espera tinha acabado. Foi até o armário, pegou a caixa de bombons e se posicionou próximo à escada, com a caixa escondida atrás das costas, pronto para lhe fazer uma surpresa.

À medida que os alunos da Ribalta iam saindo, o seu coração começava a bater mais forte, uma ansiedade que há muito ele não sentia. Quando as suas mãos já estavam suadas de tanto nervosismo, eis que no topo da escada surge ela, linda em seu vestido esvoaçante, com parte do cabelo preso na lateral como de costume. No entanto, o que ele não esperava ver era a figura de um rapaz alto, magro, que estava ao lado dela conversando animadamente. Antes mesmo que os dois percebessem a sua presença ali no pé da escada, com um ar de perplexidade e incompreensão, ele foi andando de costas até esbarrar no armário, onde mecanicamente guardou a caixa de bombons, e se deixou levar pela gravidade, deslizando até sentar-se no chão frio.

Duca permaneceu ali por um longo período de tempo, queria ter a certeza de que ao sair não veria aquela cena novamente. Quando já estava cansado de encarar o piso irregular da academia, pegou sua mochila, as chaves do carro e foi embora. Seu destino deveria ser a faculdade, mas ele não estava com cabeça para isso. Inconscientemente, foi guiando pelas ruas da cidade - sem prestar muita atenção no trânsito nem nas músicas que estavam tocando na rádio - até chegar no Arpoador. Desceu do veículo e caminhou pela praia, arrastando com força os pés descalços para sentir cada grãozinho de areia, que formava aquele extenso tapete de cor marrom pálida. Observando o lento movimento das ondas, Duca queria se perder na imensidão daquele mar e conseguir esvaziar a sua mente.

Distraído com a paisagem, ele continuou andando, com os passos firmes, até que sentiu algo arranhar a sola do seu pé. Parou para verificar o que havia acontecido. Então, viu o espinho que estava cravado no seu pé direito.

– Não, acredito. Até isso, agora... Que merda!!! - ele falou em voz alta, demostrando a sua raiva diante de mais um fato desagradável naquele dia.

Ele puxou a ponta do espinho com cuidado e viu uma pequena gota de sangue se espalhar por toda a extensão do corte. Apoiou a ponta do pé machucado na areia e se abaixou para pegar um caule que estava quase todo enterrado. Ao retirar o ramo do chão, viu que se tratava de uma rosa vermelha, quase toda despedaçada, com apenas duas pétalas murchas grudadas naquele maldito caule que havia lhe ferido. Duca arremessou a flor para longe e seguiu o seu caminho, com mais cuidado agora, até a formação rochosa mais distante do movimento intenso da orla, para evitar as pessoas, suas gargalhadas, as músicas e o clima de felicidade no qual elas se encontravam.

Sentado em uma das pedras mais altas, ele constatou que a paisagem continuava linda, o céu estava límpido e repleto de estrelas. Por isso, este local era, em outros tempos, um dos seus preferidos para namorar nos finais de tarde.

Quantas confissões, juras de amor foram trocadas sob aquele mesmo céu... E os beijos apaixonados que o faziam sentir-se no paraíso...Era muito difícil estar ali sozinho, sem os carinhos dela, o seu sorriso encantador, os seus olhos vivos e brilhantes. Parecia que tudo havia acontecido em uma outra vida ou que se tratava de um filme de dois desconhecidos que em nada lembravam o Duca e a Bianca de agora. Com todas essas lembranças vindo em sua mente e o sentimento de culpa por ter desistido dela tão facilmente, foi impossível conter as lágrimas que teimosamente insistiram em cair pelo seu triste rosto. Então, ele chorou, sem saber o que fazer, que rumo tomar. Será que já era tarde demais pra tentar recuperar o amor do qual ele havia abrindo mão antes, será que o destino seria tão perverso com ele a ponto de fazê-lo perder o irmão e agora a Bianca para sempre?!?

A única coisa que ele sentia nesse momento era a sua cabeça latejando de tanto pensar, tentar compreender o que estava acontecendo com ele. Quando se deu conta já eram 2 h e ele precisava voltar para casa, pois certamente sua avó estava sozinha.

Colocou a chave na fechadura e a girou lentamente, com o intuito de não fazer barulho para não despertar a Dona Dalva, mas ao pisar na sala logo ouviu:

– Duca, por onde você andava até agora?

– Oh, vó, desculpe, eu não queria acordar a senhora - ele respondeu com a voz baixa e desanimada. Dona Dalva retrucou:

– E você acha que eu consigo dormir sabendo que o meu neto está andando por aí e não dá sinal de vida?! Eu já perdi um neto, Duca, não tenho condições de passar por isso de novo, meu filho, o que você estava fazendo até agora na rua????

– Vó, a senhora não precisa se preocupar comigo, eu já sei me cuidar e não estava fazendo nada de mais, só caminhando e pensando na vida - ele respondeu rapidamente para a avó.

– É, o Alan costumava me dizer a mesma coisa e você sabe muito bem o que aconteceu... - Dona Dalva ia começar um discurso, mas foi interrompida por Duca:

– Sim, eu sei. Já está tarde, a senhora precisa descansar e eu também.

Ele se aproximou para lhe dar um beijo de boa noite e ajeitar as cobertas. Depois, subiu para o seu quarto desejando avidamente um banho demorado para descarregar as energias e esquecer mais um dia de frustrações.


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