Journey - Unafraid of the Future escrita por Iris


Capítulo 1
Areias Misteriosas, Vento Sussurante


Notas iniciais do capítulo

Olá, querido ser que está lendo isso agora...
O que irá ler a seguir pode ser uma história fantasiosa, no entanto contém minhas palavras mais sinceras. Por isso peço que preste atenção às mensagens ocultas dentro dela.
Espero que com isso possa mostrar um pouco do mundo pelos meus olhos, e que possam enxergar desse modo.

Obrigada por acompanhar até aqui. Boa leitura!



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Assim como o crescente fértil era minha alegria. Sempre crescente, a fértil e constante animação. Assim como a água do Nilo que banhavam as areias do deserto. Trazendo calmaria e uma sensação reconfortante aos indivíduos receosos.

A cada sorriso, uma renovação, um renascimento. E nem todo vento poderia apagar o fogo em nossos corações. Misterioso, gostava de soprar segredos ao pé de nossos ouvidos, e quando era de sua vontade, para outros lados se punha a nos levar. E assim, passávamos, sem contar os dias, nos quatro cantos do deserto.

Em cada novo rosto encontrávamos uma esperança escondida. Debaixo dos véus e mantos sentimentos escondiam-se, e através dos olhos profundos alguns deles era possível revelar.

Não era preciso música para dançar, pois o ritmo dos corpos a trabalhar e o sonoro tilintintar das tornozeleiras das jovens mulheres já era o suficiente para desprender-nos da hipnose contínua e sem movimento. Apesar disso, quando nos púnhamos a cantar em coro, ou tocávamos instrumentos criados por nossas próprias mãos, era como um sopro divino, como se Deus se comunicasse através da união de nossa música tão alegremente tocada.

Sentei-me em uma duna para apreciar melhor a bela vista. Brinquei com a areia, passando de uma mão a outra. A força de vontade é, por vezes, como areia. Permanece conforme a moldamos. Constrói moradias, casas e até palácios. Mas com o menor sopro pode ir ao chão. Pode ir e vir com o vento, ou voar na mais alta nuvem do céu. Pode também passar entre os dedos de uma mão feminina, e deslizar, escorrer e fundir-se outra vez no chão.

Num ímpeto, me ergui, permitindo-me ser tomada pelos ares, com um quente sentimento que pulsava em meu peito. Mais uma vez, envolvida pela dança, me entreguei. Os olhos cerrados como que em prece – não deixava de ser uma já que era feita de forma pura e sincera -, e os braços em movimento.

Os ares espalhavam o perfume que carregava no corpo e outros tantos de essências, incensos e meus misteriosos frascos, os quais mantinha guardados nos panos que torneavam minha cintura. Os longos cabelos sacudiam-se incontroláveis dando ainda mais movimento à dança. Um sorriso enfeitava meu rosto bronzeado, pois transparecia o que estava em meu interior.

Fazia apresentações por onde passava, no entanto, apenas para os corações que me cativavam. Aqueles de que tinha plena certeza de que receberiam meu ato com amor, e captariam a alegria, e carinho que desejava passar.

Era tão quente, o mormaço quase febril muitas vezes acabava por causar-nos ilusões. Tinha sandálias nos pés, uma tornozeleira, e algumas pulseiras. Gostava dos meus poucos adornos, traziam-me melodia e entusiasmo. Dispensava exageros, pois não eram prioridade.

As sandálias permitiam-me caminhar por onde desejasse, e dançar, sem causar grandes danos aos pés. Muitos nem ao menos para isso tinham dinheiro, eram obrigados a machucar ainda mais os pés castigados se quisessem ganhar o pouco que lhes sustentava.

Sabia que não poderia ajudar da forma como gostaria, então carregada da minha maior simpatia e saía dançando em meio ao mercado, por entre as moradias, ou onde quer que se encontrassem. Levava-lhes esperança. Trazia ares que os envolviam em abraços, e perfumes acalentadores. Vez ou outra os presenteava com algum incenso. Mas eram só nas vezes em que podia dar-me ao luxo, já que não esbanjava dinheiro, e nem o desejava. Tinha impressão de que muitos dos que o possuíam em excesso, na verdade, não eram felizes. E tentavam cada vez mais substituir o enorme vazio com objetos mundanos.

Adorava ir ao mercado, era sempre animado, e repleto de pessoas. A banca dos temperos era a qual fazia questão de visitar por primeiro, sem exceção. Eram todos perfumados, mas cada um com sua fragrância específica. Passava dando giros por entre as caixas que os continham, o que fazia com que o senhor que os vendia sempre sorrisse. Gostava de vê-lo feliz, pois sua risada era aveludada, e sempre contagiava o resto dos clientes. Era minha primeira a ação pela manhã. Ao menos, nos dias em que visitava ao mercado. Tinha um calendário rígido a seguir. Vários dias eram ocupados em vendas e trocas, portanto não podia me demorar muito em apenas um lugar. Informações também eram valiosas, portanto tinham seu preço - que pagava com gosto.

A próxima banca – que era, na verdade, uma tenda - era repleta de cristais. Esta não muito me atraía, o que fazia-me tão frequentemente a visitar era sua vendedora. Tornara-se uma grande amiga com o tempo, e com isso, a saudade vinha tirar minha paz. Sentia muita falta de sua figura independente, e grande necessidade de suas conversas animadas. Era como se roubasse as estrelas do céu noturno toda vez que via-me chegar, tamanho era o brilho contido neles. O que fazia-me questionar se não era esse o motivo pelo qual o sol precisava nascer todos os dias. Afinal, sabendo como o céu era orgulhoso, tinha a certeza de que não nos deixaria notar sua falha quanto a falta de estrelas em sua imensa escuridão, tendo como consequência iluminar-se por completo.

Sua voz ressoava como música tão melodiosa que era. Acabei, em uma das vezes, por dar-lhe um perfume para que se lembrasse de mim, ainda quando estivesse longe, pois que demorássemos a nos ver, não me esqueceria. Era mantida de tal forma em memória, viva, que foi a primeira a receber-me com um abraço quando voltei de minha longa viagem. Trazia comigo novos aromas e novas histórias, que ela, prontamente, dedicou toda sua atenção para conhecer. Ensinei-a muito do que sabia, e a deixei, com a promessa de que logo regressaria.

Segui para a terceira banca, a qual guardava os mais variados panos. Comprei três deles por precaução, não sabia quanto tempo permaneceria em meu próximo destino. Não eram os mais bonitos, nem os mais caros, mas os mais resistentes. Despedi-me do jovem rapaz que recebia-me de boa vontade, e fui atrás de água e comida. Ambos encontrei na mesma banca, onde uma senhora bordava um lenço de linho própria para dançarinas, o qual tratei de não olhar já que sabia, no momento, não poder pagar. Ela ficou um pouco rabugenta por ter que parar o delicado trabalho, então tentei ser rápida, agradecendo seu serviço ao sair.

Também tratei de conseguir uma bolsa maior, desta vez tinha muito o que carregar. Pensei em comprar um camelo, mas sabia que seria uma despesa grande demais, e o pobre animal não seria tratado da maneira que merecia, por isso decidi ir a pé, como de costume. Em vez disso, troquei as sandálias, já que as velhas estavam um tanto gastas. Dei uma última volta pelo mercado, acenando em despedida para conhecidos, e rodopiando, retirei-me dali.

Depois de duas horas, resolvi parar para descansar. O sol emanava tamanho calor que parecia ferir-me fisicamente, como se quisesse cortar-me por inteira, ou arranhar minha pele. Tirei o cantil de minha bolsa, e tomei alguns goles. Conforme a água doce descia por minha garganta, encontrei forças para me levantar, mas algo verdadeiramente me revigorou. Pude escutar a voz de um jovem, aquilo vinha do fundo de sua alma, cantava uma canção de esperança e de fé. Então, mais uma vez, acreditei ser um sinal de que não estava sozinha no mundo. Embora não pudesse ver seu rosto, podia ver seu coração. E sentia que há muito o conhecia. A forte sensação continuou com o passar dos dias, mas a necessidade de continuar meu caminho não me permitia saber mais sobre o mistério.

O luar daquela noite fez-me chorar, pois algo faltava, e não conseguia lembrar. Era como se uma parte minha estivesse afastada, e ainda assim teimava para que não fosse esquecida. O céu sem estrelas deu-me a certeza de que a adorável moça as tinha pegado mais uma vez, e colocado em seus olhos, enquanto sonhava. Ainda que a saudade estivesse presente, outro sentimento teimava em me atormentar. De repente, lembrei do rapaz que estava a cantar. Neste momento tive a certeza de que precisava encontrá-lo. Dormi com o alento de saber que logo sairia dali.

No dia seguinte, apressei-me em fazer minhas vendas. Recebi também várias trocas, mas estava mais concentrada em terminar logo o ofício. Ao fim do dia havia conseguido um bom lucro, por isso não precisaria mais permanecer no local.

Uma dor de cabeça terrível dominou-me. A dor que sentia era tanta que fez dobrar-me ao chão, espalhou-se pelo corpo, passando aos músculos e articulações. Sabia que não era pelo esforço, sentia em meu íntimo que o que quer que fosse que faltava estava fazendo-me um grande mal. Ergui-me com dificuldade, nem a dança podia arrancar-me um sorriso em tal estado. Mesmo que tentasse, não conseguiria, pois não tinha jeito de a dança fluir com tamanha dor, que migrara agora para meu interior, e feria meu peito.

Até mesmo o vento parecia vazio. Juntei as mãos, em prece, pedindo para que fosse atendida. Permiti ao algo desconhecido - que me atraía como um ímã – que me guiasse. O trajeto parecia interminável aos meus olhos, a urgência aumentava a cada passo que me aproximava.

Não fiquei surpresa ao reconhecer o lugar onde estivera em tão pouco tempo. O pequeno acampamento permanecia silencioso. Sentado em um banco estava um jovem rapaz, que ao que me parecia, observava os viajantes que eram trazidos com o vento. Imediatamente senti uma alegria imensa tomar conta de mim, como se aquilo me completasse, e não pude conter o sorriso ao ver que também havia me reconhecido.

- Sentes o mesmo que eu? - perguntou-me com receio, mas mostrando toda a alegria contida em seus olhos

Meu sorriso aumentou. Não sabia como colocar em palavras, mas sabia que tinha entendido minha mensagem.

- Importa-se, se acaso, lhe abraçar? - sua voz tornou-se ainda mais calorosa, fazendo com que me sentisse em casa

- Estava pensando o mesmo... – resolvi mostrar minha voz

Dei um passo para a frente, e fui envolvida por longos braços. O abraço não pôde ser contado em tempo normal, mas no sentimento recíproco em nossos corações. Meu irmão – não de sangue, mas de alma – compartilhava da mesma alegria comigo. Pois ele fazia-me feliz, e eu o fazia sentir-se da mesma maneira. Ainda que com poucas palavras trocadas, nos identificamos profundamente, e reconhecemos um ao outro como companhia eterna.

Não pude evitar as lágrimas, eram como alegria líquida, e meu sorriso não podia ser maior, assim como o seu. Era como se o tempo nunca tivesse existido, e nos conhecêssemos desde que nossa vida teve início. O incompreensível reencontro trouxe nosso vigor de volta.

Poucas palavras bastavam, pois tínhamos nosso próprio meio de nos comunicar.

Mais tarde disse-lhe que tinha uma bela voz, capaz de captar a mensagem de Deus e mostrá-la aos homens. Ele pareceu assustado e segredou-me que nunca havia cantado para ninguém, mas que no entanto ficava feliz que a coincidência tenha feito eu ser a primeira a ouvir.

- Não existem coincidências – respondi repassando a sábia lição milenar

- Minha irmã.... posso chamá-la assim? A conheço há tão pouco, mas tão bem. Sinto-me muito próximo a você. - olhou-me afetuosamente – Sou infinitamente grato por ter vindo a mim.

- Querido irmão, não se engane, suas boas intenções e seu coração puro é que me guiaram. Por isso, te agradeço por ter me resgatado. Sua falta já me fazia um grande mal, pois sentia na carne a dor de não tê-lo por perto.

Naquela noite senti renascer minha vontade de dançar, e a deixei tomar conta de meu corpo. A surpresa e maior felicidade atingiram-me quando ouvi a doce voz me acompanhar. A junção de seu dom com meu talento fizeram-nos vibrar em uma alegria pulsante.

Era como se me deitasse sobre o vento que carregava tão lindamente sua voz, tal se transformando em um véu de areias em espiral. Uma incontrolável tempestade se aproximava. Acreditava que se devia ao fato de nosso encontro – ou melhor, reencontro – de tal maneira intenso.

As velas trepidavam, até finalmente se apagarem. Todo o acampamento permaneceu no escuro. Nos juntamos à companhia alheia, e fizemos o possível para tornar daquilo um abrigo. As tempestades de areia eram conhecidas por serem fatalmente perigosas, portanto tratamos de expulsar a ameça silenciosa.

A força conseguida da união era maior do que alguém jamais poderia descrever ou imaginar, pois cada ser neste mundo tem uma grande força desconhecida dentro de si. Se juntada com ademais – pelos motivos certos – adquire uma imensa força, sendo capaz de realizar praticamente qualquer obra.

Embora os temores e devaneios se perdurassem ao nosso redor, se alastrando como fogo; embora o frio – nunca sentido antes com tal intensidade – nos fizesse tremer, embora tomados pelo medo, temerosos do resultado do repentino desastre e do futuro próximo; as tempestades, chegada sua hora, têm um fim. Apesar de tudo, e de todas a circunstâncias, ele sempre chega e sempre chegará. O fim. E não foi diferente, veio com astúcia, colocando de vez um ponto final. E todos ali presentes, enchendo-se de nova esperança, puseram-se a escrever a próxima linha, dando início a um novo parágrafo na história dos desertos.

Aos poucos as luzes foram acesas dando renovada coloração ao ambiente ao qual chamávamos de lar, e – depois de tamanho infortúnio – de abrigo. O frio também se foi, já que nossos corações de tão próximos causavam-nos sensações acaloradas, e sentimentos transbordando afeição.

De início, permanecia ali, embora não o pudéssemos sentir, e estivéssemos alheios à ele. Com isso – sentindo-se rejeitado – partiu de vez.

E, uma de cada vez, as preocupações foram se esvaindo, e sendo trocadas pela alegria – uma constante, muito bem-vinda, em nossas vidas – e o alívio de ter a si, e demais irmãos pelos quais eram alvo de seu afeto, seguros e a salvo de quaisquer danos.

Amin ainda se recusasse a cantar em público, mesmo que eu soubesse – e o dissesse - que sua voz seria um bálsamo para aquelas pessoas.

Com o tempo passamos a nos entender ainda mais. Éramos de tal forma unidos que muitos pensavam com malícia em nosso relacionamento. Nossa ligação era única. Um vínculo inquebrável. Uma amizade que nunca poderia ser compreendida pelos homens. Somente quem possuísse pureza no coração conseguiria enxergar, o que já era claro, cristalino, e óbvio.

Por vezes deixei que isso me entristecesse. A ignorância alheia pode causar grandes estragos. Mas quando isso acontecia, ele era o primeiro a estar lá para me abraçar, portanto logo esquecia de todo ódio que nos era direcionado. Até mesmo porque não faria sentido, já que éramos envoltos no total oposto, o amor.

Tínhamos laços fortes, tão firmes e sólidos como o chão sob nossos pés. Nossa ligação era inexplicável. Mas as melhores e mais bonitas coisas não precisam ser compreendidas, desde que sejam sentidas.

Sentimentos não precisam de nomes ou definições, pois não escolhem em quem irão adentrar ou entranhar-se. É uma falha humana querer encaixá-los em seus padrões. Trata-se apenas de dar a devida atenção à semente adormecida para que cresça forte, e floresça trazendo a incontrolável e eufórica beleza de tal emoção.

Toda vez que fechado os olhos a sentia crescer ainda mais. Adormecia com a certeza de que encontraria um irmão assim que acordasse. Mas mesmo que sua companhia me trouxesse imensa alegria, ainda não estava completa.

Troquei cartas com a moça por um longo tempo. Ela me contava o que acontecia em sua morada, falava sobre a venda dos cristais, e de histórias que ouvia. No entanto, os escritos mais constantes eram sobre a saudade que a atormentava e a falta que fazia a ela. Ainda que sem muita emoção – salvo quando falava de saudades – suas cartas traziam-me calma e segurança, pois sabia que estava bem, e que as escrevia dedicando sua atenção a mim.

Em resposta, contava de minhas viagens e aventuras, de acontecimentos inacreditáveis e de histórias ainda mais fantásticas que as suas. Não me demorava em muitos detalhes, muitas vezes por falta de tempo, mas não media tempo quando se tratava de falar em como meus dias eram vagos sem ela, mesmo com tantas emoções que vivenciava. Também contei-lhe sobre meu irmão, que preenchia-me de felicidade e harmonia.

Trocávamos cartas através de viajantes - que eram prontamente pagos pelo serviço - , por isso os intervalos entre uma e outra eram irregulares. Fazia mais de uma semana que não recebia notícias suas ou lia suas doces palavras. Poderia entender caso não houvesse passantes mas, pelo visto, não era o caso. Algo estava errado.

- Preciso viajar com urgência! - comuniquei a meu irmão, que decerto percebeu a preocupação em minha voz

- Pelo que a conheço posso dizer que algo está errado. O que houve?

- Vou em busca de alguém... sei que ela precisa de minha ajuda! - pude sentir meu rosto se contorcer por esta certeza. Não tinha tempo, qualquer minuto perdido poderia resultar em sua perda, mesmo sem saber o motivo para tal.

- Vou com você. - pela determinação em sua voz sabia que não o podia convencer do contrário, então apenas assenti

Viajamos sem comunicar verbalmente a ninguém, em vez disso, deixamos um bilhete avisando que não nos prolongaríamos na estadia longe dali. Caminhamos por muitos dias e muitas noites, revezando os horários de sono para os momentos de maior cansaço ou nos lugares que julgávamos os mais seguros.

Ao nos aproximar do lugar a qual me acostumara a frequentar, parei repentinamente. Respirei fundo temerosa do que poderia encontrar e de como estaria Hani. Isso deveria me impulsionar a ir ainda mais rápido, no entanto tinha medo.

- Aaminah... - disse percebendo meu nervosismo, Amin sabia me ler como ninguém – Tem certeza disso?

- Nunca tive dúvidas! - prossegui determinada, e pude ouvir seus passos em meu encalce

O que costumava ser o mercado se tornara uma terrível bagunça, e por todos os lados só havia destruição. As bancas estavam reviradas, e as mercadorias, todas espalhadas. Lenços misturavam-se com frutas e temperos jaziam no chão, pisoteados. O local parecia vazio, a não ser pela presença do vento, e o jovem rapaz que conhecia de vista. Ele parecia analisar os estragos com decepção no olhar. Sem ar, corri ao seu encontro.

- O que houve? - mesmo antes de ouvir sua resposta as lágrimas teimavam em cair

- Saqueadores... eles roubaram, e depois destruíram o que não lhes era útil.

- Alguém se feriu? - pude perceber a preocupação transparecer em minha própria voz, que saiu falha

- Não... ao menos, não que tenha visto.

- Obrigada. - agradeci por sua atenção, e antes de sair em minha busca, acrescentei – Sinto muito pelo que aconteceu.

Senti Amin segurar meu braço, impedindo-me de ir adiante. Encarei-o confusa.

- Ainda pode ter saqueadores. Vou na frente. - exigiu de forma protetora

Ele prosseguiu, observando tudo atentamente. Descrevi a tenda dos cristais para que logo a encontrasse. E lá estava. Corri tão repentinamente, ultrapassando-o, que nem ao menos teve tempo de impedir-me.

Não havia uma alma viva. Os cristais haviam sido todos roubados, e não era possível ouvir qualquer sussurro, ou respiração. Temia que a tivessem levado. Agachei-me ao ver um pedaço rasgado de pano jogado em um canto. Pertencia à Hani, disso tinha certeza. Caí de joelhos no chão, segurando o trapo manchado de sangue junto ao peito, enquanto lágrimas voltavam a me atormentar.

Era como se um punhal me atravessasse, e ar ao meu redor não fosse suficiente para poder respirar. Meus braços tremiam, sentia como se não pudesse mover-me. Para minha surpresa, a tenda mostrava um buraco. Tentei retomar a calma, e pus-me a investigar.

Passei pela abertura, descobrindo uma trilha de pegadas. Chamei por Amin que respondeu de imediato, velozmente postando-se ás minhas costas. A trilha contornava uma enorme duna, e parecia ser onde terminava. Seguimos até o topo, e encontramos um corpo feminino caído. Levei um choque ao perceber tratar-se de minha querida amiga. Corri ao seu encontro, abraçando-me à ela, segurando-a em meus braços.

- Aaminah? - sua voz saiu rouca - É uma miragem, certo?

- Não se preocupe, Hani, estou aqui – beijei-a na testa – Está segura agora.

Pelo que pude ver, o ferimento era em seu tornozelo. Deduzi que havia sido ferida na fuga. Era provável que a saia tenha se prendido no mesmo objeto que causou o corte. E na tentativa de se proteger fizera um buraco na tenda, escapando por ele, embora não esperasse pela queda – causada, possivelmente, pela terrível dor.

No entanto, minha maior preocupação no momento era transportá-la sem interferir em seu bem estar. Amin ajudou-me na tarefa. Percorremos um longo caminho por duas horas até encontrar abrigo.

Ela repousou por três dias, e com ajuda das plantas e chás curativos o processo de cicatrização foi acelerado. Em uma das noites, Amin cantou para que nossas preces fossem atendidas. Aquilo me trouxe uma grande emoção, e o sorriso de Hani. As pessoas, aos poucos, foram aproximando-se, encantados com tamanha pureza nas sinceras palavras melodiosas.

No dia que se seguiu, dancei – como jamais dançara antes – em agradecimento. Depois disso, partimos, e em alguns dias já estávamos de volta ao acampamento.

Algumas plantas não podem ser transplantas com frequência. Acabam por adoecer, e podem até acabar por morrer. Apesar de ser uma flor delicada, minha adorável amiga resistiu bravamente a todas as adversidades e mais variados tipos de problema. Resgatou sua força, ainda que lá no fundo, e não deixou-se abater. Hani acostumara-se aos ventos da mudança e nossas aventuras constantes. Tal feito alegrava-me de tal maneira que, por vezes, sua mera presença espantara minha má conduta e meu comportamento ranzinza.

Além disso, tinha prometido protegê-la e mantê-la segura - mesmo que me custasse - junto a mim. Cuidaria, com toda cautela, de suas perfumadas e alegremente coloridas pétalas, assim como de suas necessidades.

Ainda que, em alguns dias, me desse certo trabalho, trazia-me imensa euforia. Isso, sem dúvida, fazia com que tudo valesse a pena. Em nem um momento sequer me arrependi de minha decisão. A convivência com sua extrema doçura e feminilidade fazia bem tanto para mim quanto para meu irmão. Éramos um trio indomável.

Passamos a viver como nômades. Não tínhamos lugar fixo, nosso lar era o mundo. Ao menos o mundo que conhecíamos, o extenso deserto de areias douradas. Nossa linguagem era, na maior parte das vezes, silenciosa. Apenas pela troca de olhares e sinais corporais habituais. Por isso, nossa proximidade aumentava sem término. Uma vez unidos, para sempre assim o será.

Aprendi que por mais que o caminho pareça escuro, o sol sempre volta. E mesmo na escuridão, a lua se exibe, e as estrelas engordam os olhos tão tamanha beleza. Sempre há beleza a nossa volta, enquanto estamos, tantas vezes, concentrados em problemas, que acabamos tendo dificuldade para percebê-la.

Mas a vida é bela. De forma inexplicável e única.

E nunca fica chato, não há do que se cansar, pois nos surpreende com suas inúmeras reviravoltas.

Nós somos a vida, e ela é o que somos. Ela é o que fazemos. Ela é o que pretendemos.

Ela se vai, ela volta, e ela dança. Ela nos leva em sua dança, nos move como o vento, e escapa como areia entre os dedos.

E guardamos sua essência em nosso interior. Como uma flor que exala perfume no deserto de nossos corpos.


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Notas finais do capítulo

Se chegou até aqui, agradeço imensamente!
Espero que tenha entendido as mensagens ou que, ao menos, a história lhe tenha passado algo de bom.

Sinta-se livre para deixar sua opinião. Não importa o tamanho do comentário, ficarei feliz da mesma forma. E se não quiser, não tem problema, mas lembre-se do que leu... não escrevi em vão ^^