A Invasão escrita por Isadora Nardes


Capítulo 15
Abrigo dos Exilados, 17 de maio de 2015.




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171 dias desde que começou.

Eu não acredito.

Quer dizer, eu acredito, mas não acredito.

Primeiro, eu vi Gabriel beijando Murilo. Tudo bem: eu não sou homofóbico, e se eles estão apaixonados, quem sou eu pra dizer alguma coisa?

Mas depois eu vi Murilo beijando aquela garota negra – o nome dela é Cássia, aliás.

Certo. Murilo é bi. Totalmente normal. Mas ele pegou dois no mesmo dia. Incrível. Bem que esse lugar podia ter paredão. Tipo: “Bial, meu voto vai no Murilo porque ele pegou dois num dia só”.

Quem sou eu pra fazer piada?

Melissa veio conversar comigo. E ela tagarelou e tagarelou, e eu não sei metade do que ela disse. No fim eu só fiz que sim com a cabeça e fui falar com Gabriel.

Não sobre a homo – bi? – sexualidade dele. Mas sim sobre a explosão.

Eu vi o olhar de cúmplice que ele lançou pra mim. Ele está sentindo a mesma dor. A mesma queimadura no peito. Murilo não – Murilo parece achar que Jeffrey merecia aquilo. Bom, até que é verídico se Murilo pensa assim: Jeffrey ajudou a tomar nosso país. De certa forma, Jeffrey matou milhões de pessoas, aprisionou o resto, torturou-as psicologicamente... É até normal que Murilo sinta prazer em saber que Jeffrey morreu. Porque Murilo não conviveu com Jeffrey como eu convivi.

Mas Gabriel também não conviveu. E eu quase posso ver a dor dentro do peito dele. Quase consigo ver queimaduras em brasa ardendo. Seus olhos mostram isso. É como um reflexo da explosão – que passa diante dos olhos dele de novo e de novo.

Diante dos meus, também.

Somos cúmplices. Em todos os sentidos. Somos cúmplices desde o fato de estarmos aqui até o fato de sabermos que o outro sente a mesma dor.

Mas eu sei mais sobre ele. Sei que ele é gay (ou é bi? Realmente preciso esclarecer isso...), e eu não falei nada sobre mim pra ninguém. Nada demais, entende? Nada realmente sobre mim. Não sobre a minha pessoa.

A conversa. Certo.

“O nome dele era Jeffrey” eu disse. Gabriel levantou os olhos pra mim, hesitante.

“Quem?” perguntou.

“Jeffrey. O cara que a gente matou. Ele tinha uma filha. De seis anos. O nome dela era Becky”.

Você deve estar me perguntando como eu sei disso. Jeffrey, de alguma maneira, era gente boa. Ele me falou da família dele, e agora eu sei que o pai de Becky nunca mais vai voltar pra casa.

“Você está inventando” Gabriel disse. Eu pude ver pânico nele.

“Não. Ele que... Tomava conta de mim nas naves. Ele me contou. E o pai de Becky não vai voltar pra casa”.

Aquilo simplesmente foi demais para ele.

Muitas vezes, dizem que homens não choram. Uma mentira completa e total. Uma estupidez machista e ridícula. Eu já chorei, e Gabriel chorou ali, na minha frente e na frente de todos.

“Ah, mas o Gabriel é gay e você é um marica, Patrick”.

Sim, sim, eu sei. Mas ser gay não tem anda a ver. Gays choram, héteros choram, bissexuais choram, lésbicas choram. Todo mundo chora. E não existe um jeito “certo” de chorar. Você chora e pronto. Não existe jeito “macho” de chorar.

Gabriel simplesmente chorou. Ele chorou como uma pessoa, não como um estereótipo. Ele chorou de arrependimento, de culpa, de pressão. De medo e de raiva. De tristeza, melancolia e desespero. Ele chorou por qualquer razão e por todas as razões possíveis.

“Porra” ele grunhiu. Grunhiu palavrões piores, também, mas tudo é compreensível.

Eu pude simplesmente ler a culpa nele. Vi culpa escorrendo de seus olhos e vi culpa em cada sílaba que ele pronunciava. Vi culpa em cada tremor do corpo dele. A mesma culpa que me corroia.

Por fim, ficamos os dois sentados no canto, tremendo e chorando, feito dois otários.

Ninguém disse nada, mas os olhares valiam. Por fim, Melissa se aproximou e perguntou o porque de estarmos chorando. Isso só nos fez chorar ainda mais. E Melissa se sentou do nosso lado, ali, sem dizer nada.

Eu nem levantei meus olhos pra ela. Toda aquela humilhação já bastava. Eu não precisava de um olhar acusador – ou seria desdenhoso?

De qualquer forma, eu voltei para o Lugar onde fora designado “meu quarto”. Lá havia uma aranha do tamanho do meu pé – incrível, não? Pois é.

Eu sempre tive medo de aranhas. Mas medo de um aracnídeo parece tão insignificante! É só um bicho. Um bicho enorme que pode te envenenar, mas é só um bicho. Um bicho que não sabe que vai acabar com sua vida. Um bicho que não tem culpa se te morder – é instintivo. Eu sou só um humano – um grande e desajeitado humano.

Eu me sentei no canto do “quarto”. Observei a aranha ir de lá pra cá, de cá pra lá. Subia pelos galhos, depois descia. Sem rumo nem objetivo. Perdida. Sozinha. Cambaleante. Sem saber onde estava, nem o que fazer. Sem motivos pra viver, e sem motivos pra morrer.

Como eu.

A diferença entre mim e aquele aracnídeo é que ele não matara ninguém. Ok, talvez ele tivesse matado. Mas estava na natureza dele. Ele não ia remoer a culpa de tirar a vida de alguém. Se ele tivesse matado Jeffrey, não era ele que iria lamentar.


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Notas finais do capítulo

HAHAHAHAHAHAHA.
Peguei vocês. Não esperavam, esperavam? Pois é. Na verdade, o Murilo existe mesmo. Só que ele é hétero e o nome dele é João :v
Cansados de tantos capítulos?
Acho que só tem mais uns cinco, sabe?



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