Afterlife escrita por Leandro Zapata


Capítulo 60
Chá das Cinco




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Eu entrei no chuveiro e deixei a água cair sobre a cabeça durante alguns minutos, pensando, lembrando. Eu sabia que Týr estava do lado de fora do box, sentada em algum lugar. Ela não podia ficar muito longe de mim.

– Não podemos contar a ela o que aconteceu em Paris. - Eu disse tão sério e triste quanto meus sentimentos exigiam. - Se ela souber...

– Sim. - A fada concordou. - Ela não vai ser capaz de aguentar uma notícia assim.

– Leo! - A voz dela veio detrás da porta; ela parecia genuinamente feliz. - Vou deixar suas roupas aqui!

– Tudo bem! - Fingi estar tão feliz quanto ela.

Pela primeira vez, Týr e eu tínhamos uma conexão que ia além da obrigação dela de me acompanhar. Um segredo que compartilhávamos e nos unia. Um laço mais forte do que qualquer amizade que eu tivera na Terra. Saí do banho e me enxuguei com uma fofíssima toalha de algodão que estava pendurada ali. Não me importei com Týr me ver nu, afinal depois de Paris, isso não era nada. Então, foi a vez de Týr, que entrou de baixo do chuveiro, enquanto eu esperava. Ela tomou um banho rápido, afinal não tinha muito que limpar. Ela também saiu e eu lhe entreguei uma toalha de rosto. Da mesma forma que eu, ela não se importou de estar nua diante de mim.

Paris nos mudou para sempre.

Vesti a roupa deixada por Thais: uma calça de moletom preta, uma camiseta de uma banda que eu não conhecia chamada Resgate. Nas costas da camiseta, estava escrito “Jack, Joe and Nancy in the Mall”. Não fazia a mínima ideia do que aquilo poderia significar, mas vesti assim mesmo. Como não havia roupas do tamanho da fada, ela usou magia para criar um pequeno vestido do pano do edredom vermelho que estava sobre a cama. Ela sentou em meu ombro, enquanto nós dois nos fitamos no espelho. Forcei um sorriso e ela fez o mesmo.

Thais jamais poderia saber o que acontecera.

Assim que abri a porta um cheiro de carne assada tomou meu nariz. Ela parecia estar cozinhando um pernil ou algo assim. Devia estar delicioso. Senti meu estômago roncar. Estava faminto. Sentei a mesa da cozinha, onde três pratos estavam postos, uma Coca-Cola estava sobre a mesa acompanhada por uma panela grande de arroz e uma travessa de salada.

– Não se engane com o calor aqui dentro, lá fora está tão frio quanto o ártico na Terra. - Thais comentou.

– As coisas estão realmente estranhas aqui, não? - Respondi.

– Sim. Leo, eu acho que estamos vivos de novo.

– Do que está falando?

Ela pegou uma faca e cortou a palma da mão, que sangrou. Arregalei os olhos.

– Você pode sangrar! - Afirmei com a voz sumindo.

– Não apenas eu, mas você também. - Retrucou.

Olhei para Týr, sem entender. Eu não podia sangrar antes, e agora posso?

– Quando eu estava em Tel-Aviv, aquela mulher da loja onde eu consegui a espada me feriu e eu não sangrei. - Eu levantei, peguei uma faca e cortei minha palma; fitei sem acreditar o sangue escorrendo.

Olhei para Thais, que me encarava com a mesma surpresa. Ela então agarrou minha mão cortada e disse:

Yav in Nav: pozdravi. – O corte da minha mão cicatrizou rapidamente; assim como o corte na mão dela.

– Magia. - Eu disse ainda mais surpreso que o sangramento. - Você consegue...

– Eu te disse que se lembrava de minha vida na Terra, significa que tenho todo o conhecimento que um dia eu possuía. - Explicou. - E magia é basicamente conhecimento. Sente-se, que eu irei lhe contar.

Sentei. A história que ela me contou ia além da minha imaginação. Ela me contou sobre o pai e a mãe, sobre a fazenda onde cresceu; sobre um primo chamado John, um quebra-cabeça que ele criou, e como ele lhe mostrou a magia; sobre os anos de treinamento com seu pai; sobre sua ida para o exército e a Segunda Guerra Mundial. Então ela falou da Morte e do pacto que fizera com ele. Contou, então, sobre sua aventura em Paris com Davi - sim o Rei Davi - e como me salvara; sobre a estranha mulher que a ajudou e o raio que parou o Filho do Abismo que servia de guarda. Um raio me salvou de Kifo em Roma, pensei, por que raios andam me salvando?

Quando ela terminou de contar, eu já tinha terminado de comer e Thais estava lavando a louça.

– Ele quer você aqui. Tanto quanto eu. O que a Morte está planejando? - Perguntei.

– Eu não sei dizer, Leo, e se há outros aqui por causa dele?

– E provavelmente há. - Deduzi. - De qualquer forma, não temos a menor pista de como encontrá-los. Temos que chegar ao Castelo da Morte o mais rápido possível e descobrir.

– Ele está certo. - Týr confirmou. - Partiremos amanhã pela manhã.

Nós fomos para o quarto, e como havia apenas uma cama de casal, nós dividimos. Não que provavelmente nas últimas duas semanas isso não tenha acontecido, mas agora era um pouco tarde para pensar em detalhes assim. Não levou cinco minutos para que Thais dormisse, ela deveria estar exausta. No entanto, eu não dormi. Eu fiquei em coma por duas semanas, e se dormisse, bem, eu poderia ir de novo para o Reino dos Sonhos. Isso não seria bom, como a fada dissera. Reparei que ela também não dormia.

Levantei o mais silenciosamente que pude, peguei Týr com uma das mãos e saímos do quarto. Com ela no ombro, eu investiguei a pequena casa, onde não havia nada de interessante. Encontrei um mapa na sala de estar em uma pequena mesa de café. Era um mapa da França. Eu acabei esquecendo-me de perguntar para Thais em que cidade era essa, mas a julgar pelo rio do lado de fora de uma das janelas, deduzi que estávamos em uma cidade às margens do rio Sena. Então, examinando o mapa, conclui que deveríamos seguir pelo rio até o Canal Inglês. Thais era esperta, ela já havia traçado essa rota de fuga quando escolheu vir até aqui.

Havia uma porta pela cozinha que dava para uma pequena garagem, onde a Harley Davidson estava. Sorri ao ver meu bebê ali. Pensei em dar partida, mas sabia que acordaria Thais. Encontrei uma caixa empoeirada escondida atrás de umas latas de tinta. Encontrei-a por acaso. Era uma caixa pequena, do tamanho de um livro, o que foi exatamente o que eu encontrei ali.

– O Fruto Proibido. - Týr disse de repente, me tirando dos devaneios. - Lembra o que Thais falou: ela apenas passou a sangrar depois de ter comido o Fruto.

– Mas isso não explica o por que de eu não poder sangrar em Tel-Aviv, mas sim em Paris.

– Talvez tenha a ver com você ter comido ambos os Frutos ao mesmo tempo. Um anulando o efeito do outro, mas o conhecimento sempre vence. Porém em Thais, fazia setenta anos que ela comeu o Fruto da Vida, por isso ela ganhou um corpo mais rápido. Eu acho Leonard, que você está vivo de novo. Que você tem um corpo. Isso pode significar que pode voltar para Terra. Assim como Thais. - Týr me fitava com seus olhinhos.

Será mesmo que eu estava vivo de novo? Que tinha um novo corpo? Então, se sim, o que será que aconteceria se eu morresse aqui no Paraíso? Será que iria voltar ao Julgamento ou ao Éden? Eram coisas tão complicadas que eu desisti de entender naquele momento. Eu estava muito cansado, apesar de não conseguir dormir.

Voltei ao livro que tinha em mãos. Era um diário. Sentei no chão da garagem e passei a ler o livro em voz alta, pois Týr também queria ouvir.

A luz cruzando a janela marcou o fim da minha leitura e o fim do diário. Aquele diário pertencia a um homem chamado Caleb Chevalier, um homem que nascera no Paraíso. Não literalmente, é claro. Logo nas primeiras páginas ele explicou o que era um Nascido no Paraíso. Todos dizem que quando há a fecundação, o feto já possui uma alma. Aparentemente - apesar de eu não acreditar quando estava na Terra - eles realmente têm. E quando um feto morre antes de nascer ou é abortado ou quando o bebê nasce, mas morre antes de saber o que é o bem e o mal, as almas são mandadas direto para o Paraíso em um dos diversos hospitais que existem aqui - eu sempre me perguntei por que havia hospitais no Paraíso, agora eu sabia, era pra cuidar dessas almas que precisavam crescer. Caleb fora alguém solitário, apesar de estar no Paraíso, ter amigos e tudo. Porém ele não tivera uma vida na Terra, mas não se sentia triste, era apenas curioso sobre isso, apesar de todos os seus amigos não se importarem com isso. O livro acabava com Caleb se mudando para Paris, por causa de uma garota que conheceu em Rouen, que descobri ser a cidade em que estávamos, mas que morava lá.

Voltei à cozinha, onde preparei um café da manhã e levei até a cama. Queria agradecer Thais pelo que tinha feito por mim. Ela acordou e sorriu ao ver-me.

– Está gostoso? - Perguntei quando ela deu uma mordida em uma torrada.

– Sim. Você não dormiu, né?

– Não consegui. Depois de tanto tempo dormindo, dormir mais não parecia atrativo.

– Entendo. - Ela disse, com um sorriso triste.

– Bem, termine de comer e se arrume. Temos que arrumar um barco e partir.

– Eu já arrumei um. - Ela respondeu de forma simples. - Está em um pequeno porto a algumas quadras daqui. E já está abastecido com comida e gasolina.

Estava impressionado. Nessas duas semanas, ela fez muito mais do que apenas cuidar de nós, ela preparou toda nossa viagem.

– O único problema vai ser chegar nele.

– Vamos conseguir.

Eu saí do quarto, para Thais ter mais privacidade. Encontrei umas calças jeans escuras e camisetas em um armário sob a escada. Troquei de roupa. Meu sobretudo estava sujo e um pouco rasgado, nada que Týr não tenha resolvido com sua magia. Vesti-lo e pendurei minha espada na cintura. Era bom senti-la de novo.

Neste mesmo armário eu encontrei casacos de inverno - que pareciam mais túnicas feitas de pele que cobriam todo seu corpo. Coloquei por cima do meu sobretudo. Thais desceu nesse momento, ela usava uma calça jeans desbotada, uma camiseta branca com o desenho de um panda e uma jaqueta de moletom, que ela fechava o zíper enquanto descia. Ela vestiu outro casaco de inverno.

Fomos à garagem, montamos na Harley Davidson e aceleramos em direção ao barco.

Chegamos ao barco sem cruzarmos com nenhum Filho do Abismo. Entramos e colocamos a moto dentro do barco. Realmente estava tudo pronto para uma viagem longa como aquela.

Em poucas horas nós já estávamos na desembocadura do rio no Canal Inglês, contudo não contávamos com a barricada feita com pedras de concreto que os Filhos do Abismo montaram na junção entre o rio e Canal.

Uma bomba explodiu ao lado do barco, balançando-nos e lançando água para todos os lados. Eu já não gostava da ideia de ter que viajar até a Inglaterra de barco, contudo era a maneira mais segura que conseguiríamos chegar lá. Outra bomba explodiu, mas como eu percebi não eram bem bombas, eram bolas feitas do Abismo e lançadas em nossa direção. Dois Filhos tinham suas mãos esfumaçadas apontadas em nossa direção de sobre a barricada. Eu senti meu estômago embrulhar por causa do movimento do barco.

Yav: Nadzor slabost!– Thais disse colocando uma das mãos sobre minha barriga; a náusea passou.

– Precisamos destruir aquela barricada antes do barco chegar até lá. - Eu disse. - Algum plano?

– Improvisar! - Týr disse.

Sorri e corri em direção à proa; eu finalmente estava de volta à ação. Pouco antes de eu pular, Týr disse do meu bolso - onde normalmente se escondia quando eu lutava:

Prygat'. – Saltei e pousei na barricada, logo atrás dos Filhos.

A surpresa deles me deu uma vantagem, consegui matar dois deles com facilidade. Os outros dois dispararam bolas feitas do Abismo em minha direção. Tive uma ideia. Desviei com habilidade, como imaginei a gravidade jogou as bolas para o chão, abalando a estrutura que eu pisava. Aquele que estava atrás de mim disparou, as bolas foram rebatidas por Týr e jogadas contra a barricada. Matei o que estava diante de mim.

Virei para o outro e avancei, quando vi havia vários deles vindo pelos dois lados. Se mais algumas daquelas bolas atingissem a represa, ela cairia. O barco estava perigosamente perto. Dividi o pensamento rapidamente com Týr, ela disse para que eu usasse a espada. Não entendi exatamente até que o Filho lançou uma bomba em minha direção e eu rebati, para baixo, com a chapa da espada. Ela explodiu aos meus pés, quase me derrubando. Consegui-me equilibrar e continuei avançando. Mais duas bombas, que rebati.

De repente um terremoto. A barricada estava cedendo. Com ajuda de Týr, saltei de volta ao barco. A barricada partiu-se, dando passagem para o rio. Assim que os Filhos caíram na água, eu ouvi um chiado, igual àqueles que escutamos quando apagamos fogo. Eles gritaram de dor e nadaram o mais rápido que seus corpos permitiam e atingiram a margem. Nessa altura nós já tínhamos atingido o mar, e observávamos os Filhos da popa do barco.

Levamos três dias exatos para atingir o porto em Portsmouth, onde encontramos Filhos nos esperando e mais alguém. Apesar de estar no meio de uma guerra, eu estava realizando um sonho de vida: eu conseguira ir até o país do famoso chá das cinco.


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