O Dever Nos Chama escrita por LilakeLikie


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Apesar de poucas pessoas conhecerem a HQ, tentei fazer o possível para que o leitor compreendesse a mensagem que quis passar.
Espero também que não tenha ficado cansativo.
Mais uma vez, obrigada a todos que me ajudaram!



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As pesadas malas que flutuavam nas mãos cansadas de Rumor agora tocavam o chão. O ar que adentrava os pulmões da mulher já não era mais tão pesado quanto nos três meses anteriores. Estes, meses de turbulência, bagunça, confusão e dor. Tocou suavemente com a mão direita a cicatriz em seu pescoço, enquanto com a esquerda remexia o bolso de seu casaco, procurando sentir o caderninho e a caneta que havia deixado lá.

Suspirou. Enfim era hora de tocar a campainha. Seu maior desejo era ver Claire em seus braços, seus cabelos curtos e arroxeados balançando ao vento, seu sorriso no rosto enquanto corria em sua direção... A vida estampada em Claire, seu rosto tão parecido com o da mãe quando tinha a mesma idade. Até os cabelos arroxeados foram passados pela geração.

Por um segundo, permitiu-se esquecer das frustrações que carregava há tempos. A perda de sua voz – e consequentemente de seu poder – fez com que ficasse amargurada, ríspida e fria com os irmãos e companheiros de atividades heroicas.

Para salvar o mundo de um apocalipse... — pensou. Imagens de sua irmã Vanya, o apocalipse na forma humana, lhe vieram à mente.

Eu ouvi dizer que...

Cala a sua boca!

Uma nota do violino tocada e o grito quase inaudível de Rumor foram as únicas coisas ouvidas nos segundos que se seguiram. Tocou a cicatriz que repousava em seu pescoço; já não doía mais fisicamente, no entanto, psicologicamente era de uma dor lancinante.

Enfim, tomou coragem tirando a mão do bolso e erguendo-a em direção ao interruptor da campainha. Tocou-a e aguardou poucos segundos até que Patrick surgisse do outro lado da porta, impassível.

— Pensei que não viesse mais. Claire estava te esperando.

Rumor murmurou e tirou o caderno do bolso. Rabiscou um pouco e virou-o para o ex-cônjuge.

“Estava em missão. Prometi que viria vê-la quando tudo acabasse.”

— E agora está sem voz... Que maravilha, Allison! Pra quem saiu de casa para ir ao velório do pai, me parece que arrumou problemas o suficiente para perder seus poderes.

A mulher abaixou a cabeça lentamente, arrependida. Já não bastavam os flashes que lhe visitavam a mente de pouco em pouco, agora Patrick tinha de ficar falando do pior dia de sua vida. Aliás, em casa Rumor se tornava Allison Hargreeves. Mãe, divorciada, desempregada e ex-membro da família disfuncional de super-heróis The Umbrella Academy. E agora, para completar o time, afônica, sem poderes e especialista na comunicação pelos rabiscos na caderneta.

“Posso entrar?” — mostrou o caderno já amassado a Patrick.

— Entre. Claire está te esperando. Eu levo suas malas.

E foi com um mar de sorrisos, beijos, e sentimentos que Allison desejou se afogar nos braços da filha pequena, que não via há tanto tempo. Tempo que parecia uma eternidade, uma vida inteira. Tempo que não se media com um relógio, com as estrelas ou com um calendário. Tempo de mãe.

Apesar dos olhares censuradores vindos de Patrick, Allison não se privou de pegar Claire no colo, jogá-la para o alto, fazer cócegas e apertá-la entre os braços. A pequena ria e abraçava a mãe com força, como quem dizia “não me deixe mais”. No entanto, essa era um promessa complexa demais para ser cumprida. O divórcio estava praticamente resolvido e a guarda de Claire entregue ao pai.

A pequena se empolgou e resolveu alugar a mãe pelo resto do dia. Fez com que Allison prometesse — por bilhete —não sair dali até que pegasse os brinquedos necessários para brincarem de casinha. Certamente parte daquela confiança havia se quebrado, com Allison indo embora, retornando à Rumor que a Umbrella Academy exigia que ela fosse. As palavras rudes de seu irmão Kraken lhe vieram à mente vorazmente, devorando a felicidade que predominava em seu interior. Palavras tão simples que compunham uma frase tão simplória quanto, “brincar de casinha”. Foi isso o que Kraken disse que ela fora fazer com Patrick. Mas Pat e a Allison juraram que aquilo seria real, não apenas uma brincadeira de casinha. Seriam um casal, se amariam e viveriam felizes com sua filha, Claire.

A brincadeira teve um fim, trágico fim. E Claire ficou no meio da batalha que predominou pela casa em seguida. A menina ainda não sabia, não fazia ideia de que seus pais não ficariam mais juntos. Também não pensava em nada, não criava expectativas para o sumiço de sua mãe por três meses quando o que mais queria era apenas estar com ela outra vez. A presença de Allison em casa mais uma vez já era uma vitória.

Claire saiu da sala correndo, rindo com as cócegas que acabara de receber da mãe. Esta, que agora se levantava e apoiava as costas na parede, cruzando os braços. Fechou os olhos, meditando por uns poucos segundos, até a voz grossa de Patrick atravessar o cômodo e acariciar seus tímpanos. Tanto tempo havia se passado desde que ele conversara com ela calmamente que se a data tivesse sido anotada, pareceria mentira.

— Eu vi nos noticiários. — Allison assustou-se, abrindo os olhos e tentando encontrar-se na profundeza das íris de Patrick. — O que foi aquilo?

A mulher puxou o caderninho surrado do bolso e uma caneta. Escreveu e virou-o para que o que estivesse escrito fosse lido claramente.

“Não sei do que está falando.”

— Você não me engana, Allison Hargreeves. Você estava na tevê, com o pescoço sangrando.

“Isso não é da sua conta.”

— Sua echarpe não cobre a cicatriz da sua garganta. E o fato de estar sem voz não contribui muito a seu favor. O que aconteceu?

Lágrimas teimosas ameaçaram escorrer pelo rosto de Allison. Mais uma vez o fardo em suas costas ameaçava pesar ainda mais e derrubá-la pelo caminho. Respirou fundo e anotou mais uma vez no surrado caderninho: “Foi a Vanya. Depois da lavagem cerebral, cada nota tocada em seu violino derramava tanto sangue quanto uma chacina.”

Patrick só então notou que a rota que tomava não o levaria a um oásis se continuasse. Então, permitiu-se calar e esperar até que Claire retornasse pra brincar. Foi cutucado pelo bloquinho de Allison, que apontava para ele e para a mesa de centro da sala. Pegou-o e leu o que estava escrito nas linhas que quase desapareciam por entre os amassados.

“É aquele filme?”

Observou lentamente o caminho que o braço de Rumor fazia, até a ponta de seu dedo, indicando a capa plástica de um DVD supostamente riscado, devido à falta de cuidados nas tantas vezes em que fora alugado.

— Sim, é ele mesmo.

O filme em questão, anos antes, era o mais aguardado da época. Quando livro, chamou a atenção do mundo todo. Tornou-se sucesso de vendas e foi leiloado para se tornar um longa-metragem. O vazamento do trailer gerou polêmica, alvoroço e ansiedade. Cada vez mais, mais e mais pessoas queriam ver o tal filme. Popular no dia de seu lançamento, houveram filas imensas, de atravessar quarteirões, só por causa de um ingresso. Houve até alguns fãs que armaram barracas na frente do cinema para conseguir bons lugares.

E foi numa barraca de camping azul que Allison e outras três amigas dormiram por três dias até o lançamento. E também foi numa barraca ao lado que Patrick e outro amigo aguardaram ansiosamente pela abertura da bilheteria. E assim, eles se conheceram. Poucos meses depois já namoravam e planejavam um futuro completo juntos. Para Patrick, era difícil namorar um membro da Umbrella Academy, mas a beleza e o amor dela compensavam tudo.

Passados cerca de dois anos desde o lançamento daquele filme, já estavam casados. Allison aposentou-se das atividades heroicas para que pudesse manter o casamento em pé, ainda mais agora que esperavam uma filha. No entanto, apesar da distância, ainda se mantinha bastante alerta aos acontecimentos que envolviam seus irmãos e o mundo. Apesar de dissolvidos, não deixavam de ser a Umbrella Academy, os irmãos Hargreeves.

Alguns anos depois, Claire já sabia falar, andar e fazia isso o tempo todo pela casa. Vê-la correndo se transformava num sinônimo de vida e alegria inconfundíveis e contagiantes a todos, exceto para os próprios pais. Segundo Pat, Allison ainda estava muito ligada aos irmãos e à Umbrella Academy; jamais conseguiria se dedicar interinamente ao lar se continuasse desempregada, esperando até que Luther a chamasse para alguma missão extravagante, descompromissada de tudo.

A frase “quero o divórcio” veio como uma pancada na cabeça de Allison. Pensou por um segundo em usar seus poderes, dizer “Eu ouvi dizer que você não liga para isso e que ainda me ama”... mas achou melhor ficar quieta. Os efeitos que o uso de seus poderes traria poderiam não ser duradouros. Então apenas aceitou.

O divórcio dos dois começou a ser resolvido judicialmente e, consequentemente, a briga também. Patrick alegou que deveria ficar com a guarda de Claire já que a mãe dela sequer tinha como sustentá-la. Allison apelou pelo sentido de que era a mãe dela, portanto deveriam ficar juntas. O juiz foi favorável a Patrick.

Eu ouvi dizer que o senhor juiz era favorável às mães solteiras...

Mas não o fez. Seria errado usar o poder do rumor.

E agora, por ironia do destino, não tinha mais poder algum para usar. Sonhou com as consequências da possibilidade de tê-lo aplicado. Como tudo o que mentia acabava se materializando, Claire não estaria vivendo só com o pai. No entanto, refletiu se essa realmente seria a melhor opção. Viver num matrimônio infeliz, onde seu marido a culpava por ainda querer ser um super heroína, tendo como única recompensa um suposto sorriso de sua filha. Talvez as coisas fossem melhores do jeito que estavam, concluiu.

Pegou o bloquinho e escreveu: “E você ainda o assiste?”

— Sempre que posso — respondeu. — Me lembra do dia em que nos conhecemos.

Allison hesitou por alguns instantes. Queria escrever algo em resposta, mas não sabia o que deveria ser dito. De certo modo, ainda gostava de Patrick, queria que Claire tivesse tanto o pai quanto a mãe presentes em casa... Mas tudo havia ficado tão confuso desde que partira em missão da última vez. Não poderia arriscar uma vez mais.

Naquele momento, Claire voltou de sua corrida até o quarto, com uma caixa cheia de brinquedos. Entre eles havia pratos, xícaras, talheres... tudo feito de plástico e colorido de cor-de-rosa. Allison sentou-se no chão, observando a filha dispor todos os brinquedos para a brincadeira. Patrick continuou em pé, próximo a elas.

— Allie... — esperou um pouco, até perceber que não haveria resposta e então prosseguiu. — Os papéis do divórcio estão em cima da mesa e ainda não foram assinados...

Rumor o observou, triste. Então escreveu no caderno:

“Eu os assino antes de ir embora.”

— Não é isso o que quero dizer. Só que... eu não sei. Talvez pudéssemos...

Estilhaços de vidro, madeira e concreto invadiram o campo de visão dos três. Allison não perdeu tempo; agarrou Claire e abaixou-se. Patrick correu até perto delas, deseperado e confuso. O pó vindo da quebra das paredes invadiu a sala, tornando impossível enxergar com nitidez as coisas ao redor. Então uma voz pronunciou-se:

— Rumor, sei que está aí. Temos de voltar o quanto antes. Vanya acordou e Número Cinco desapareceu. Precisamos que você o encontre e arranque algumas informações.

Allison levantou-se. Com certeza aquela voz era de Luthor, o Spaceboy. Agora já não era mais Allison, e sim Rumor outra vez. A possibilidade de ter sua filha por perto esvaiu-se de suas mãos como areia de novo. Apenas acenou com a cabeça e deu um beijo na testa de Claire. Deu as costas aos dois e foi em direção a Space.

— Allison! Aonde está indo? — questionou Patrick.

Depois disso ouviram-se apenas os ruídos da espaçonave partindo. Quando a poeira baixou, restou a Patrick varrer os resquícios da visita inesperada. Deparou-se com um bilhete no chão e pegou-o, triste pelo que nele havia sido escrito.

“O dever nos chama. Devemos segui-lo. Amo vocês.”


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