Malkuth escrita por Lilith, Sr Paganini


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Espero que apreciem. Boa leitura.



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Tudo sempre começa com o vento. Absolutamente tudo.

As árvores, as ondas, as palavras, as histórias... Toda e qualquer essência ou ato, necessita de um significativo empurrão etéreo. O vento... Participa... Está... É. Fertilizador.

De campos.

De contos.

De almas.

De vidas.

Tudo. Até mesmo a pequena Malkuth parece ter sido gentilmente soprada por ventos orientais, com todas as suas pequenas casas tortas e amontoadas, e suas estreitas ruas emaranhadas. “Um delicado sopro da grande deusa” ouvira a pequena Athame – sobre a cidade e sobre si mesma- durante sua infância.

Eram ambas belas; a menina e a cidade. A menina com seus grandes olhos verde-amendoados e seu corpo esguio. A cidade, rodeada por grandes pinheiros, com porções de feno recém cortado repousando trêmulos nos cantos das vielas. As duas com um quê misterioso ao deitar da lua cheia, lua da grande deusa, quando a cidadezinha resolvia se enfeitar de cores e cheiros ao convidar suas bruxas, seus magos e druidas a – em segredo- dançar consigo a música singular e mística do vento; a celebrar sua fidelidade à grande mãe. A menina brincava com sua boneca, e a cidade com seus filhos. O sagrado e secreto Sabá.

Com olhar sonhador, a menina admirava a alegria silenciosa dos seus pela janela. Eram poucos. Desejava saltá-la e dançar com eles. Celebrar o único momento em que se reuniam secretamente, para relembrar sua verdadeira origem.

Com olhar sonhador, Malkuth observava a garotinha todos os dias... Desejando poder tocá-la. Contá-la seus mais misteriosos segredos. Mas não podia; a hora não era chegada. O povo precisava sofrer.

Ainda mais.

Ocorreu que na primeira metade do século xv –coincidentemente no exato momento cronológico em que o vento resolveu soprar esta história- o povo vivia dias terríveis. Fomes, pestes, destruição. Dominação. As bruxas podiam ser consideradas quase como espécie extinta. A grande caça havia se iniciado. Fogueiras, correntes, esquartejamentos... Os soldados estavam sempre à espreita vigiando, atentos a qualquer sinal de bruxaria, ou como era mais aprazível, “heresia”. Malkuth estava inclusa, e o seu chão antes verde da grama nutrida estava então tingido de vermelho. O sangue transbordava. O povo sofria a cada maldito dia.

No entanto, os deuses caíam no esquecimento. O povo lamentava, mas não clamava à grande mãe. Não pedia piedade. Apenas sentava-se ante a uma cruz, e balbuciavam palavras sem emoção alguma, entre soluços de desgraça e dor acalentando a esperança de que resolvesse. De que ele resolvesse. O Deus... O único, diziam. Esqueceram-se daqueles que durante eras os alimentaram e curvaram-se perante a uma instituição sanguinária. A igreja.

“Há cem anos...” contara-lhe sua avó demasiadas vezes, de tal forma que já sabia de cor, “... houve a grande guerra. Terrível. Obscura. Os deuses nos amavam. A paz reinava sobre Malkuth e os seis reinos vizinhos. Dançávamos, celebrávamos, vivíamos... O nosso povo era feliz. Mas então... Aquele povo maldito chegou. O povo da fé. Os sacros monoteístas. E como vermes, se proliferaram de tal forma a ponto de questionar as nossas crenças. As deusas, naturalmente, não ficaram satisfeitas. Estavam acostumadas a receber toda a nossa adoração, nosso agradecimento. Então desceram e derramaram sua raiva sobre a terra.

As deusas têm sentimentos grandiosos, de extensa proporção. Mas ao ver que metade do seus filhos havia se prostrado a este novo senhor, caíram em imensa dor. E decidiram que o mais adequado seria que nós, reles súditos, deveríamos sofrer até que pudéssemos reconhecer o seu grande poder. Mas nos calamos. O povo se calou. Um século correu, e só morremos mais a cada dia. Malkuth caiu em enorme desgraça, e junto com ela os seis reinos vizinhos.”

***

Na face dos seus quinze anos de idade, quase dezesseis, Athame já possuía uma quota de sofrimentos exacerbada. Humilhada por onde passava, não via mais cor em Malkuth. Humilhada por ser mulher, por passar anos vivendo sozinha apenas com a sua mãe... sem um pai.

Pouco se lembrava dele. Havia sido morto pela instituição impiedosa quando ela tinha apenas cinco anos. Sua mãe estava casada com um deles. Um dos inquisitores. Ele a espancava diariamente, a humilhava dentro de sua própria casa apenas por mera conveniência. As mulheres haviam então perdido seu valor, sua importância. As deusas lamentavam; mas infelizmente, era assim que tinha de ser. Alguém devia pagar.

Os bruxos evaporaram. Uns se esconderam entre as florestas sulinas, alguns se cerraram em suas casas e outros sumiram... Viraram poeira. Sua avó, a grande e sábia anciã, conhecedora das histórias, dos mitos, e das palavras, se refugiou em sua pequena e esquecida fazenda de lavanda e sálvia branca, ao norte. Outros tantos foram mortos. Os poucos que restaram se reuniam da forma mais invisível possível à lua cheia, uma única vez no ano, para reafirmar sua crença, e seu eterno amor à grande deusa. A grande mãe ainda os protegia.

Malkuth observava a garota e desejava abraçá-la e contar-lhe a verdade. A hora era quase chegada. Acompanhava todo o seu sofrimento e sua dor, em silêncio; mas se limitava apenas a esperar. Athame já não olhava mais sonhadora pela janela. Não desejava Malkuth. Olhava com desprezo, com nojo e agonia. Desejava morrer. Desejava que fosse levada dali.

E seria.

O céu de Malkuth chorou, então, as lágrimas amargas das deusas.


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