Georgia On My Mind escrita por Menta


Capítulo 1
Georgia On My Mind


Notas iniciais do capítulo

Eis a one, heheeheh! Espero que goste, Gigi, afinal de contas ganhar a admiração do Christoph Waltz não é pra qualquer uma *-* xD huhasuhhe!



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Eu sempre fui um observador nato. E, por outro lado, também um patético sonhador.

Após quase cinquenta anos de vida, posso dizer que estas características mais me beneficiaram do que o contrário; afinal, foi graças a minha habilidade criteriosa de analisar minúcias que pude ter sucesso em minha profissão. Para um publicitário, não basta apenas dispor de uma mente fervilhante de ideias. É preciso ter a capacidade de compreender rapidamente o que é marcante ou não. O que importa.

O que realmente agrada.

Meu nome é Theodor Lueger, um dos sócios majoritários de uma empresa de publicidade e propaganda considerada a líder do ramo no mercado europeu. Assim como o fiz em minha carreira, me reinventei ao longo da vida. Tenho três filhos, quatro divórcios e incontáveis projetos lucrativos como o resumo de meu legado.

Minha última esposa disse-me algo que eu considero ser uma excelente frase para me descrever: estou fadado à insatisfação crônica, pois nada parece suficiente para mim.

Em meu ramo profissional, tal incompletude e a busca pela perfeição inatingível são consideradas dádivas dos deuses. Nas outras esferas da minha vida pessoal... Talvez algo não tão admirável assim.

O fato é que sou um daqueles tipos ordinários e narcisistas que se sentem como artistas geniais e incompreendidos. Apesar de me julgarem uma espécie de gênio da publicidade, capaz de reinventar razões para que a sociedade consuma produtos que um leigo talvez reputaria por ultrapassados, na verdade sou mais um daqueles clichês ambulantes que crê piamente que a vida era melhor em tempos passados. E não da forma típica dos outros "velhos" da minha idade.

Mesmo abominando os vícios dessa nova geração, esta necessidade plástica e repugnante de consumir aparelhos eletrônicos e viver conectados no mais colossal projeto de perda de tempo já inventado — as redes sociais da internet —, eu me refiro aos antigos prazeres da vida e ao ritmo simples do início do século passado. Na época em que um homem como eu estaria em um restaurante de hotel em Berlim bebendo cerveja para matar as últimas horas da tarde antes de se recolher e não se sentiria deslocado por isso. Tempos em que alguém como eu teria a companhia de outros na mesma situação, e não de um bando de indivíduos insípidos recurvados sobre tablets e smartphones, seus olhares cediços fixos nas telas como se sequer estivessem em um mesmo ambiente.

Com tais reflexões em mente, busquei com o olhar o garçom mais próximo, movendo o rosto de forma a indicar que desejava mais um chopp Erdinger.

A tarde alaranjada daquele dia calorento de verão em Berlim já dava espaço para a chegada de uma noite fresca. O céu que eu via pelas janelas também insossas daquele hotel especializado em agradar hóspedes em viagens de negócios prometia que ainda havia algum atrativo por vir. O tom laranja paulatinamente escurecia se transformava em um lilás rosado, bem como a água da piscina do lado de fora do restaurante tomava um tom de azul marinho pela falta de luz em seus azulejos. Enquanto bebia meu novo copo de chopp, lancei mais um último olhar enfastiado para meus "acompanhantes" do recinto. Ninguém sequer mirara a paisagem ao pôr-do-sol.

Isso não era vida de verdade.

Enquanto bufei discretamente, bebendo mais um gole do chopp, dediquei-me a sorver deliciado a textura gelada do líquido tão harmonioso com aquele clima festivo de verão. Logo depois, meus olhos se abriram e tive de suprimir um surpreso engasgar.

Uma jovem passava na frente de minha mesa, andando com passos de leveza celestial para uma mesa solitária, na ponta do restaurante, onde duas das enormes janelas de vidro convergiam. Seus cabelos loiros dançavam em ondas calmas por suas costas, seu vestido leve de verão movimentando-se sinuosamente por suas pernas longas e bem torneadas. Ela sentou-se defronte a mim, mesas adiante. Uma sílfide perdida em um hotel da Alemanha moderna, com seus olhos cor de oliva fixos no menu que um esperto garçom prontamente lhe ofereceu.

Passei a observá-la de forma circunspecta, finalmente agraciado com algo para me entreter. Sentia-me como quando era menino e meus pais me presenteavam com um brinquedo novo. Todo o ritual ao redor daquilo era extasiante: a sensação de rasgar o embrulho em volta e o subsequente ato de saborear com a visão, tato e por vezes o olfato a nova aquisição, e as mil promessas excitantes que vinham com a novidade.

Contudo, quanto mais a estudava, mais me era concedida uma outra sensação, esta completamente inusitada: parecia-me que eu realmente já a vira em algum lugar. Suas feições delicadas e, simultaneamente, de traços acentuados, traziam-me qual ideia de alguma mulher, ou melhor, "menina-moça" que eu distinguia, alguém particularmente conhecida.

Ri comigo mesmo imaginando a reação desta fina jovem se seguisse o ímpeto inicial de abordá-la perguntando se já não nos conhecíamos de algum lugar. Reconheço meu próprio afã piegas, mas também tenho meus limites.

Assim, aguardei pela oportunidade perfeita. Reparei que, alguns metros à direita de minha mesa, um pianista se aproximava do piano de cauda antes vazio em meio ao salão do restaurante. Olhei meu relógio de pulso e reparei que já eram sete horas da noite. Provavelmente a música ao vivo era uma das atrações do hotel, o que era bom; talvez das melodias tocadas surgisse mais uma chance de aproximação.

Meu copo de chopp já havia acabado, mas ainda não era hora de beber mais. Discretamente, fingia eu mesmo ser mais um desses escravos tecnológicos e puxei meu smartphone, ocultando melhor meus olhares na direção da moça. Mexia na tela do aparelho à esmo, abaixando meus olhos aqui e ali, enquanto a via finalmente decidir-se pela mesma torneira de chopp que eu bebia.

Contive um sorriso, e chamei eu mesmo o garçom que antes me servia.

— Por gentileza, avise à fräulein sentada ali adiante — apontei-a com discrição, mal levantando o indicador — Que aproveite a bebida solicitada com os cumprimentos de herr Lueger. Avise-a também que a parabenizo pelo bom gosto. — Sorri com simpatia para o garçom, que assentiu sem hesitação.

Mantive minha dissimulação com o aparelho celular, aguardando o momento em que a jovem mulher metros à minha frente recebesse minha singela apreciação aberta. Observei-a trocar algumas palavras com o garçom que lhe servia o chopp, e, triunfante, vi que ela sorrira por último. O sinal estava dado.

Ergui-me com polidez, caminhando devagar até sua mesa. Quando alcancei a cadeira defronte a dela, a jovem apenas levantou seu rosto sem dizer palavra. A sensação de reconhecimento apenas aumentou, minha mente pululando em busca da lembrança a qual ela me remetia.

Guten abend, fräulein — saudei-a com um sorriso.

Guten abend, herr Lueger  — ela respondeu de imediato, um leve sorriso sarcástico enviesado delineado em sua face. — Ich spreche kein Deutsch  — disse, direta e rápida. Avisou-me de imediato não falar alemão.

Outros poderiam ter entendido que tal resposta era um claro sinal de inconveniência de minha parte, mas eu insistiria. Não era todo o dia que uma mulher me gerava tamanha curiosidade.

Entschuldigung! — falei, desculpando-me em alemão e também aproveitando o gancho para uma piada 'branca' sarcástica. — Desculpe-me, fräulein. Permite-me que a chame de fräulein, senhorita? — insisti, falando em inglês para soar aprazível.

— Acho que você já me chamou assim por cerca de três vezes. A contar até agora — a moça retrucou com um leve sotaque ao falar a língua inglesa, movendo levemente seu rosto para o lado. Sorria também.

— Culpado — gracejei, mantendo o clima ameno do diálogo. — Este lugar está ocupado? — Posicionei minha mão esquerda acima do encosto da cadeira defronte a ela. Esperava a licença da moça para ali me sentar.

— Deveria estar — a jovem comentou, franzindo com suavidade a testa. Bebeu um gole curto do chopp e continuou: — Se o devido ocupante não estivesse horas atrasado. — Os dedos de sua mão direita seguravam o copo, apertando as bordas do recipiente com um pouco mais de força ao dizer tal frase. Excelente, pensei imediatamente.

— Sendo assim, acredito que seria demasiadamente rude deixar tão bela dama esperando, sozinha. — Ocupei a cadeira defronte a dela, ouvindo o pianista ao longe dedilhar as primeiras notas nas teclas. Ainda era cedo para reconhecer a melodia.

A moça sorriu, baixando os olhos para o copo, para depois levantá-los para mim. Manteve o sorriso no rosto, e era evidente o quanto ela parecia divertir-se com os meus avanços. — Não me disseram que os alemães eram assim atrevidos. — Ela afastou o copo de perto das minhas mãos, posicionadas acima da mesa, com uma distância razoável das dela. Era uma postura claramente jocosa, e não pude evitar mais um sorriso.

— Ah, sim, de fato fräulein não foi bem informada. Alemães são atrevidíssimos. Abusados. Petulantes — falei ao passo que aquiescia com a cabeça, fingindo seriedade. Encarei-a com mais avidez, e sorvi deliciado a visão de seus dedos tremelicarem ao tocar o copo.

— Por isso pode ficar aliviada ao saber que sou austríaco — falei, desanuviando a tensão e de volta à mesma postura piadista de antes.

Ela riu longamente. Quando sorria, seu rosto evidenciava suas feições juvenis, uma mistura de traços de menina com a maquiagem de mulher que usava. Ela condizia justamente com o tipo feminino que sempre considerei mais sedutor. Como um nostálgico irrefreável, é claro que minha preferência para a beleza feminina não seria diferente. Este tipo de rosto que sugere uma juventude imutável sempre foi de incrível sensualidade para mim.

— Eu também não fui informada de que os austríacos seriam engraçados — a jovem continuou, sorrindo com os lábios fechados. — Além de piadas e de beber chopp Erdinger, herr Lueger, o que mais ocupa seu precioso tempo? — falou, divertida.

— Você resumiu 80% dos meus afazeres — trocei. — Na verdade sou publicitário, então manter-me ébrio e galhofeiro são condições inerentes ao meu sucesso profissional. Mas não vamos falar de mim, eu não sou interessante... — Curvei-me um pouco mais para perto das mãos dela, que já haviam deixado o copo, demonstrando mais tranquilidade. — E fräulein? O que faz aqui, nessa tarde fortuita em Berlim? — perguntei, afável.

— Aguardo um atrasado, enquanto converso com um austríaco — a jovem retrucou, sorrindo enviesado novamente. — Dentro do resto dos 20% dos seus afazeres, uma porcentagem deles inclui ter este tipo de conversa com mulheres desconhecidas? — indagou em tom de piada, mas percebi que estava novamente desconfortável.

— Talvez pelos meus cabelos grisalhos seja muito difícil convencê-la de que em verdade não tenho o costume de fazer este tipo de coisa — falei, deliciado com o desafio.

— Mas só tomei a liberdade de me aproximar porque julguei fräulein encantadora. Esta é minha última noite na cidade antes de seguir viagem, e minha única companhia eram esse bando de convivas maçantes. — Apontei discretamente para trás com o rosto. — Peço desculpas pelo inconveniente e me retirarei se assim quiser, mas antes, proponho uma barganha — ofereci com gentileza, ao passo que gesticulava para enfatizar as últimas palavras ditas.

— E quais seriam seus termos? — a moça respondeu, levemente interessada. Cruzou seus braços acima da mesa, curvando-se com elegância em minha direção.

— Tudo o que eu gostaria, agora, era poder manter esta agradável conversa com você. Mas mal nos conhecemos. Se me deixar olhar suas mãos posso descobrir muito a seu respeito sem que nem precise me contar. — Fitei-as com delicadeza. — E em contrapartida pode perguntar o que quiser sobre mim — terminei a proposta, e percebi que ela estava de fato interessada.

— Vai me dizer que além de publicitário é uma espécie de cigano? — a jovem brincou, bebendo mais um gole do chopp, agora pela metade.

— Não chego a ter talentos sobrenaturais, mas tenho algum orgulho do meu poder de observação. Vamos lá, se eu errar você poderá ter o prazer de debochar e me corrigir!  — Arregalei os olhos, agindo de maneira espirituosa. Ela sorriu, e devagar levou as mãos para perto das minhas, estendendo os braços sobre a mesa.

Toquei em suas mãos, pequenas, delicadas, tão melindrosas em meio as minhas, o contraste entre elas claro e límpido como aquela noite de verão por trás das janelas. Com alguma dificuldade, contive o ímpeto de acariciá-las e beijá-las, e passei a estudar seus contornos.

Levantei com cuidado as costas de suas mãos, olhei por entre os dedos, as pontas dos mesmos, os pulsos e as palmas. Pedi licença para mover alguns anéis, e, após alguns segundos, já tinha as respostas na ponta da língua.

Fräulein trabalha com moda, suponho inclusive que é estilista. Desenha seus trabalhos com precisão milimétrica, é perfeccionista e provavelmente fez este vestido que usa agora. — Sorri após finalizar a constatação.

Ela me permitiu outro sorriso amplo.

— E herr Lueger descobriu tudo isso em razão de...?

— Muito simples. Você tem alguns cortes no dedo indicador com cicatrizes quase invisíveis, e uma leve irritação na pele sensível entre um dedo e outro. Isso indicaria em conjunto algum contato com tinta e materiais abrasivos, bem como cortes promovidos por agulhas e outras superfícies cortantes de lâminas finas e afiadas. A maneira elegante de se vestir e a postura alinhada, de uma forma não tão conservadora mas também sem excessos demasiados denotaria algum conhecimento nesta área, que se reflete em sua apresentação diante de outros indivíduos — concluí.

— Ah, mais um adendo. — Ergui o indicador e sorri. — Fräulein certamente não é alemã, tampouco americana, inglesa, escocesa, irlandesa ou outra nacionalidade de algum país que tenha como língua natal o inglês. O sotaque na forma como constrói as frases e denota às palavras desta língua não me é imediatamente reconhecível. Eu julgaria que provavelmente nasceu em algum país de língua latina. Talvez Espanha... Ou Itália... — Ainda não tinha deduzido a nacionalidade dela.

— Bravíssimo, "Sherlock" Lueger — riu, terminando o copo de chopp em seguida. — Acertou quase tudo. Exceto meu país de origem.  — A moça moveu o rosto para os lados, zombando com ar de mistério.

— Sou uma estilista ainda em projeção, estou em Berlim a trabalho. — Parecia de fato mais confortável. — E você, herr Lueger? Qual é seu primeiro nome? — perguntou, passando o dedo indicador pela borda do copo de chopp. Agradeci internamente por não ter bebido mais. A cada segundo que passava na companhia dela, mais tinha de me controlar para não tentar maiores... Sugestões.

— Eu me chamo Theodor Lueger. — Curvei-me um tanto mais próximo dela, diminuindo a distância entre nossos corpos arqueados sobre a mesa. Deixei meu cotovelo esquerdo apoiado pela superfície da toalha, meu queixo e bochecha esquerdos sustentados em minha mão. Comecei a sentir dificuldades em manter a concentração para continuar minha postura de cortesia... E apenas cortesia. — Ficaria encantado em saber o primeiro nome de fräulein. — Quase tamborilei os dedos de minha mão direita, deixada acima da superfície da mesa. Senti como se eles formigassem, querendo tocar nas mãos dela, em seus braços... Em alguma parte de seu esbelto corpo.

— O nome da música — disse, somente. Sorriu o sorriso mais largo que dera desde que a vira, e, por alguns instantes, não pude compreender do que ela falara.

— Música...? — indaguei, sentindo-me gradualmente tolo a medida que soltava as sílabas da palavra.

— Música. Esta que está tocando ao nosso redor — gargalhou, incrédula. — Vai me dizer que não estava ouvindo? — A moça meneou a cabeça, apoiando os dois cotovelos na mesa. Deixou seu rosto pender num espaço entre as mãos que se cruzavam displicentes, escondendo parcialmente seu rosto. Era um gesto de timidez infantil que contribuía com imensurável sedução ao seu ar magnético de menina mulher. Senti-me novamente tentado a atitudes... Impulsivas.

Pisquei os olhos, e olhei para trás pela primeira vez. O pianista, um homem forte, de pele negra e tronco largo, tocava e cantava com paixão ao piano. A melodia era calma, amena, pacífica... Pontuada pela voz grave do pianista, pela qual exibia o arrebatamento presente na canção.

"Other arms reach out to me

Other eyes smile tenderly

Still in peaceful dreams I see

The road leads back to you..."

A voz enternecedora do pianista lembrava a do próprio autor desta linda melodia.

— Reconheceu? — a menina mulher loira me perguntou, ao manter ainda a mesma postura docemente infantil de antes.

"...Georgia...

Georgia...

No peace, no peace I find

Just this old, sweet song

Keeps Georgia on my mind."

— Esta música não condiz com sua faixa etária... fräulein Georgia  — comentei, tentando conter minha fascinação cada vez mais evidente. — É muito jovem para conhecê-la. — Queria tomar as mãos dela e beijá-las devagar, agradecendo pela doçura comovente deste fortuito instante de serendipidade.

— Georgia Vieira — jovem mulher acrescentou, sorrindo com um leve requinte de travessura, e abaixou as mãos do rosto. Colocou-as em cima da mesa. Fitei-as, e não mais pude resistir. Movi as minhas acima das dela, e passei a acariciar as costas de suas mãos com meus dedos, fascinado. Aferi, deliciado, que ela não as moveu para longe.

Fräulein Georgia... Permitiria-me uma confissão de velho patético? — Sorri ao sentir sua pele delicada. Sentia-me até digno de repúdio por ousar tocar em algo tão belo e delicado com minhas mãos ásperas e acintosas.

— Só se você permitir que eu confesse algo antes — a jovem loira falou. Mirei seus claros e verdes olhos, um tanto surpreso. Céus, como queria beijá-la.

— Eu tenho um certo fraco por velhos patéticos — Georgia me disse em tom de confidência, sorrindo como uma menina peralta.

— Isso é mais do que eu poderia esperar ouvir — respondi, minha voz soando roufenha. Coloquei minhas mãos por baixo das dela de forma que pudéssemos cruzar nossos dedos. O movimento foi bem-vindo pela moça, e eu me sentia cada vez mais entorpecido, como se tivéssemos desfrutado de inúmeras canecas de chopp.

— E qual seria a sua confissão? — ela insistiu, movendo nossas mãos unidas de um lado ao outro, como em uma brincadeira de crianças.

— Isso vai parecer uma cantada de péssimo gosto... — comecei, rindo com algum constrangimento.

— Pior do que as que você já me passou até agora? — interrompeu-me, e tive de rir junto com a moça.

— ...Apesar do leve teor ofensivo, sim, pior do que tudo o que falei. Por alguma razão inexplicável, tenho sentido uma sensação de familiaridade latente desde que a vi cruzar o corredor do restaurante. — admiti. Ela fez menção de soltar nossas mãos, mas apertei as dela delicadamente com os dedos. Georgia manteve o toque, e me presenteou com mais um sorriso.

— Talvez você possa me achar parecida com uma das suas filhas — falou a jovem mulher, soltando nossas mãos, de forma brusca. Franzi a testa de imediato, e fixei meu olhar em seu rosto.

Georgia gargalhou. O ar tenso em volta de nós se dissipou como uma breve lufada de vento de veraneio.

— É isso o que pensa de mim? — Percebi que era uma piada, e tentei voltar a tocar em uma de suas mãos. Ela evitou o toque, e percebi que fazia parte do jogo de sedução que, agora, era ela quem instigava.

— O que quer que eu pense de você? — retrucou, certeira. Sorria mais travessa do que nunca, e me controlei para não lamber meus lábios.

— Que ganhou mais um admirador. Não apenas da sua inenarrável beleza, mas do pouco que pude vir a conhecer com esta troca de palavras. É digna de ser uma musa, Georgia... Se Ray Charles a tivesse conhecido, talvez a canção não fosse dedicada ao seu estado natal. — Sorri com alguma contrição.

— Talvez seja daí que me conheça, então, herr Ted — brincou, apelidando-me. Georgia levantou-se da mesa, levando o guardanapo a boca.

— Não quer tomar mais um chopp, fräulein? — sugeri, sentindo-me irremediavelmente frustrado.

— Não, muito obrigada — agradeceu com um sorriso polido. — Mas acho que tenho a resposta para esta questão. — De pé, ela continuou a me encarar, colocando a bolsa que levava a tiracolo em seu ombro esquerdo.

— Comparou-me com um ideial de musa. Pois eu também sou uma artista, herr Lueger, e compreendo as razões da criação e expressão. Homens como você nasceram e morreram ao longo dos séculos, todos com o mesmo espírito sonhador que aparentemente cultua. — Ela parecia debochar e falar com seriedade simultaneamente. — O denominador comum que você e todos os outros partilham é a necessidade do motor de inspiração. A musa. Não o conheço, Theodor, mas provavelmente o que achou em mim e em outras mulheres é o que busca constantemente na vida, na arte, no trabalho... O grau idealizado da inspiração plena. Algo fugidio, declinável, volátil. Tal como esse nosso encontro de, como disse? Serendipidade. — Ela sorriu uma última vez, e deixou seu guardanapo de pano nas minhas mãos, caminhando para longe da mesa.

— Fique mais um pouco. — Senti-me quase implorar ao tocar em uma das suas mãos antes que se afastasse. Georgia evitou-me, sorrindo maliciosa.

— Só mais um adendo — ela me imitou, marota. — Meu sotaque é "latino" porque sou brasileira. — Virou as costas para mim, e seguiu caminho.

Solitário, admirei-a sair do salão do restaurante, sem nem saber quanto tempo se passara desde que começamos a conversar. Não me deu um último olhar sequer. O ambiente já estava apinhado de hóspedes desfrutando de seus jantares, e o pianista finalizava a música cuja estrutura compreendia tão doce coincidência.

"...I said just an old sweet song,

Keeps Georgia on my mind..."

Cabisbaixo, voltei-me para a frente, ajeitando a gola de minha camisa pólo. Depois de uma semana em um congresso tedioso, dias e dias fúteis em negociações frívolas, achei que algo fascinante estava por ocorrer. Algo que valesse a pena, como os raros e mínimos momentos iluminados em que alguém se sente realmente vivo... Tão iluminados que até parecem irreais.

Foi quando vi o que estava escrito no guardanapo.

Abaixo da marca de batom avermelhado feita pelos seus lábios, como se presenteasse o tecido branco com um cândido beijo... Georgia escrevera algo sem que eu percebesse que o fizera.

Meu quarto é o 305.

Xoxo,

Georgia on your mind.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigada por ser uma ótima amiga, e meus parabéns pelo talento nato para as artes, mais uma vez! ♥