CAPÍTULO IX

Terminamos a turnê com menos caos que começamos e isso parece ser um bom sinal. Até então, sempre que cruzo com Haymitch pelos corredores ou quando vamos falar com os garotos, nenhum dos dois direcionam uma palavra sequer ao outro. E isso acaba me consumindo totalmente. Tento reunir coragem para falar sobre qualquer assunto que seja, mas não consigo. E a cada vez que nos vemos, minha coragem parece estar mais distante.

Mas isso não dura por muito tempo. Na última noite depois da turnê, quando o trem já está a caminho da Capital, vou a cozinha para fazer um café. Pego os ingredientes e coloco no bule, então encosto-me no balcão, aguardando que ferva para poder tomar. Cruzo os braços e sinto minhas pálpebras começarem a pesar com o sono, então esfrego as costas das mãos nos olhos, tentando me despertar. Só depois do café, digo a mim mesma e acabo deixando um bocejo escapar.

– Ah, é você - ouço uma voz bastante conhecida vinda da entrada do vagão. Viro rapidamente o rosto para ver Haymitch e ponho uma mão na boca para disfarçar o bocejo.

– É, sou eu - digo apenas e volto a me concentrar no bule que já está expelindo fumaça. Desligo o fogão e tiro a tampa do bule para sentir o cheiro.

– Tá fazendo o que? - Haymitch pergunta.

– Café - respondo enquanto me sirvo numa xícara. - Você quer? - ofereço, parando para finalmente olhá-lo nos olhos. Haymitch parece estar um pouco indeciso, mas acaba aceitando e eu sirvo outra xícara para ele. Deposito-a no balcão e o deixo pegá-la, então sirvo-me com a minha.

Não ousamos trocar uma palavra sequer enquanto nos servimos com café, então vou até uma das janelas e me encosto nela, observando as luzes lá fora até terminar de beber. Volto-me para a pia e vejo Haymitch ainda parado no mesmo lugar, me observando.

– Me desculpe por... - começo a dizer, hesitantemente - você sabe... pelo que aconteceu.

– Não precisa se desculpar.

– Preciso sim - insisto. - Não deveria tê-lo tratado daquela forma.

– Já me acostumei - ele diz, forçando uma risada que não foi nada convincente.

Vejo Haymitch pousar sua xícara na pia e dar dois passos para frente. Não ouso recuar, mas também não consigo levantar meu olhar tão facilmente, então continuo com a cabeça abaixada. Percebo nossas mãos próximas uma da outra e, lentamente, aproximo a minha ainda mais da dele, tocando-a de leve, até entrelaçar um pouco os nossos dedos. Continuo prendendo minha atenção apenas nisso e parece que ele faz o mesmo. Aos poucos, encosto minha cabeça no seu peito e assim permaneço, em silêncio, ouvindo apenas as nossas respirações. Em pouco tempo sinto-o afagar meus cabelos com sua outra mão, passando os dedos para cima e para baixo lentamente, o que acaba me deixando com mais sono do que estava anteriormente.

Quando nos afastamos um pouco, finalmente encontro o seu olhar e fico presa a ele por alguns instantes, até que desvio para os seus lábios e quando volto a olhá-lo nos olhos, percebo que

ele também estava olhando para os meus. Mas um impulso faz com que eu me afaste um pouco ao percebê-lo se aproximar.

– Preciso dormir - murmuro. Haymitch não protesta e apenas assente com a cabeça. Mordo o lábio e, um pouco arrependida, rumo de volta para a minha cabine, em busca do sono que até então estava me consumindo.

Não demoro até cair no sono, e ainda não lembro se tive algum sonho, porque quando abro os olhos vejo que já são um pouco mais de seis da manhã e então me adianto em me arrumar. Mais tarde chegaremos a Capital para a grande festa.

Após escolher um vestido verde e colocar uma peruca cor-de-rosa, saio do quarto bocejando, em direção ao vagão-restaurante que, assim como já esperava, está vazio. Sento-me à mesa e me sirvo com um pouco de leite. Olho para o que tem no café da manhã e pego um pão, colocando-o no meu prato. Estico um braço para pegar a geleia, mas alguém parece ter se adiantado. mas não preciso pensar duas vezes antes de certeza de que se trata de Haymitch. Ele segura o pote de geleia e se senta numa cadeira de frente para mim. Ele ri um pouco brincalhão e me sinto bem por não começar o dia vendo sua carranca de ressaca. Sorrio de volta e então percebo que está será a última vez. Haymitch não será mais mentor, e consequentemente não virá mais neste trem para os próximos jogos, e sim Katniss e Peeta. Ele agora poderá escolher ficar no Distrito 12 e sei que essa será a decisão dele.

Quando volto a mim, vejo-o estender o braço com o pote na mão, me olhando de uma forma estranha.

– Tá dormindo? - ele pergunta. Balanço a cabeça repetidamente, tentando voltar a mim.

– Não, não - digo. - Eu só... estava pensando - recebo o pote de geleia e começo a passá-la no pão. - Essa é a última vez que você está pegando este trem. Bom... pelo menos para isso.

Haymitch parece ter entendido agora também. Ele passa alguns segundos em silêncio, olhando para o nada.

– Agora você poderá ficar em casa enquanto os garotos serão mentores - acrescento. - Você vai poder escolher desta vez.

Haymitch assente com a cabeça. Volto minha atenção para o meu prato.

– Vai se livrar de mim, Abernathy - digo por fim.

– Não sei se isso é bom - ele diz e isso acaba me surpreendendo. Volto a olhá-lo e percebo-o sorrindo. - Acho que me acostumei com você.

– Bom - digo, arrumando minha posição na cadeira - terá que desacostumar, queridinho. Sabe que isso ia acontecer um dia, não sabe?

Haymitch sorri em consentimento e assim ficamos por alguns instantes. Ele segura minha mão em cima da mesma e começa a passar o polegar de leve por ela, o que acaba prendendo a minha atenção.

Ouço passos se aproximando e me endireito na cadeira, pigarreando.

– Bom dia, pombinhos! - cumprimenta Haymitch, com empolgação na voz. Levanto um pouco o olhar e vejo-o colocar um pedaço de pão na boca e quando olho para o meu prato, percebo que ele pegara o meu.

– Ei! - protesto. - Esse pão é meu!

– Percebeu agora que eu peguei? - Haymitch diz e pega outro pão para me entregar. Recebo-o com a cara fechada e Haymitch ri brevemente. Então volto minha atenção para os garotos.

– Bom - começo. - Saibam que a festa na Capital será hoje - digo e percebo o tédio emanando dos seus olhares. Peeta ainda consegue disfarçar, porém Katniss parece não estar prestando nem um pouco de atenção em mim. - E vocês dois - aponto de um para o outro - precisam estar deslumbrantes!

– Ótimo, Effie - resmunga Katniss, concentrada no seu café da manhã.

– Dá pra ser um pouco menos chata, queridinha? - ouço Haymitch retrucar. Ele estava me defendendo e isso me assustou um pouco. Lanço um olhar surpreso para ele e olho para Katniss, que encolhe os ombros. Aceno rapidamente com a cabeça para Haymitch, agradecendo, e ele faz o mesmo.

– Voltando... - digo, com a voz autoritária, o que chama a atenção dos garotos. - Esta noite vocês serão meus. Então tratem de manter uma boa imagem porque a noite é de vocês.

~*~

Finalmente chegamos a Capital, onde somos recebidos por todos os adoradores do casal desafortunado, aplaudindo-os por onde passamos. Sigo na frente, indicando o caminho a Katniss e Peeta, e os demais vêm atrás. Ao chegarmos ao salão onde a festa está acontecendo, deixo-os aproveitando e vou ao encontro de Plutarch Heavensbee, que segura uma taça de champanhe numa mesa do outro lado. Arrumo minha peruca azul na cabeça e sigo meu caminho, parando apenas para receber uma taça também.

Ele já me avista quando me aproximo e não deixo de dar um sorriso que, automaticamente, ele retribui.

– Effie Trinket - ele diz, cumprimentando-me. Estendo uma mão e ele a beija. - Como sempre chamando mais atenção do que os tributos. E dois vitoriosos... definitivamente não é para qualquer um.

– Muito gentil da sua parte - digo, sentindo-me corar com os elogios. Olho para Katniss e Peeta e uma onda de orgulho me preenche. Mais adiante, no bar, como eu já poderia suspeitar, está Haymitch. Respiro fundo e desvio o olhar para ver ao meu redor.

– Imagino que já esteja sabendo que serei o novo idealizador dos jogos - ele prossegue, o que me arranca uma exclamação.

– Você? - indago, ainda perplexa. - Mas o que aconteceu com Seneca?

Plutarch, em resposta, faz um movimento com a mão passando pelo pescoço, como um corte. Ponho a mão na boca, tentando ainda disfarçar a minha surpresa, mas acho que não consigo.

– Nossa! - digo. - Eu sei que ele era um imprestável, mas por essa eu não esperava!

Plutarch ri brevemente e volta a tomar mais um gole de champanhe e eu faço o mesmo.

– Venha - digo. - Vou apresentá-lo aos meus vitoriosos.

Eu sabia que era o que ele estava esperando, pois sem dizer se aceitaria ou não, imediatamente ele me segue em direção a Katniss e Peeta, que estão dançando lentamente no meio do salão.

– Katniss! - chamo-a, interrompendo o casal. - Katniss, este é Plutarch Heavensbee, novo idealizador dos jogos - apresento-os e os deixo dançar. Peeta parece não entender, mas ponho uma mão em seu ombro e puxo-o para dançarmos também. Então começo a olhar ao redor novamente. Encontro o bar, mas não vejo mais Haymitch lá.

– O que está procurando, Effie? - Peeta indaga.

– Ah... Haymitch - respondo, ainda procurando-o. - Você o viu?

– Eu o vi saindo há pouco tempo - Peeta responde. - Deve ter ido ao centro de treinamento. Vamos para lá depois daqui, certo?

– Claro, queridinho - digo, pensando no que fazer. - Peeta...

Não tenho a oportunidade de terminar o que iria dizer, pois o presidente Snow finalmente aparece para fazer seu discurso de congratulações aos tributos. Empurro Peeta para o lado de Katniss e assisto ao discurso contando os segundos para poder sair daqui e é o que faço quando ele termina de falar. E assim que o faz, saio sem ao menos me despedir ou dizer um "até logo" para os garotos. Chego ao centro de treinamento e pego o elevador para o 12º andar, onde sempre ficamos na época dos jogos. O andar está completamente deserto, exceto por dois avoxes parados num canto próximo a sala de jantar. Mas não demoro até encontrar Haymitch debruçado no parapeito da varanda, observando o lado de fora. Caminho em direção a ele, dispensando com um movimento com as mãos os avoxes que tentam se aproximar para me atender.

– Sair sem se despedir é contra a etiqueta, sabia? - digo, parada um pouco atrás dele. Haymitch se vira e me fita com desprezo, então volta a se apoiar no parapeito, terminando de beber o que tinha no seu copo.

– Ótimo - ele resmunga.

– Nossa, Haymitch - digo, aproximando-me do parapeito. - Estava só brincando.

Encosto-me e admiro as luzes da Capital quando escuto um "hm" vindo de Haymitch.

– Esta varanda é o único motivo que me faz ficar aqui durante os jogos - começo a dizer, ainda observando as luzes lá embaixo. - Eu poderia ficar em casa, já que é bem perto daqui, mas quando venho para cá... eu desisto.

– E onde é a sua casa? - Haymitch indaga.

– É ali - digo, apontando para um prédio iluminado de azul, há dois quarteirões de distância. Haymitch se estica um pouco, procurando. - Aquele azul.

Haymitch ri por um breve intervalo de tempo.

– Discreto como você - ele diz e não deixo de rir também.

– Você deveria vir nos próximos jogos... - digo com o olhar preso nas luzes da Capital. Então dou de ombros e vejo Haymitch me olhando um pouco pensativo. Ele desencosta um pouco do parapeito e segura o meu braço, puxando-me para mais perto. Então me beija. Ele toca os meus lábios com tanta precisão e delicadeza que por um momento me pergunto se é realmente ele. Mas não sei

se isso seria um "sim" ou simplesmente um ato para me fazer parar de falar, mas ele consegue fazê-lo. Passo os meus dedos pela sua barba por fazer enquanto saboreio o leve sabor de álcool da sua boca.

Ouço um pigarro e isso nos interrompe. Nos afastamos um pouco e olhamos para a porta, onde Cinna está encostado, nos observando.

– Sabe, até que dá gosto de ver vocês dois assim - ele comenta, se aproximando. - Já brigaram hoje?

– Só a ignorância rotineira dele - comento e Haymitch me olha estupefato.

– Ignorância?

– Olha só, gente - Cinna o interrompe. - Eu só fiz uma pergunta. Não estava pedindo para assistir uma discussão de vocês. Isso vocês resolvem na cama - ele diz e pisca para mim. - Na verdade só vim avisá-los de que o trem que os levará ao Distrito 12 amanhã sairá às onze horas da manhã, então teremos um tempinho a mais para dormir antes de levá-los até lá.

– Maravilha - Haymitch diz ao meu lado, mas não sei se ele realmente achou bom ou se estava sendo sarcástico mais uma vez.

Quando olho por cima do ombro de Cinna posso ver Katniss e Peeta rumando para os seus respectivos quartos, indo dormir. Não, não era só para dar o aviso que Cinna viera. Os garotos não sabiam sobre Haymitch e eu. Então volto a olhar para Cinna e nossos olhares se encontram e, em silêncio, ele apenas sorri, confirmando o que eu suspeitava: ele estava nos acobertando para evitar darmos futuras satisfações sobre o que estava acontecendo. Sorrio em agradecimento e Cinna se dirige, desta vez, ao seu quarto.

Suspiro e volto a me debruçar no parapeito novamente, ao lado de Haymitch.

– Vai ficar aqui a noite toda? - indago, olhando para frente.

– Só o suficiente para memorizar a única coisa que vale a pena aqui - ele diz e isso acaba me arrancando um sorriso. Dou de ombros e Haymitch também sorri. Entrelaço meus dedos nos dele e assim ficamos, admirando as luzes que a Capital nos oferece na vista da cobertura do centro de treinamento.