CAPÍTULO III

Sou desperta por um peso que cai sobre a minha perna. Abro os olhos um pouco atordoada e olho em direção a minha perna, notando a mão de Haymitch jogada de qualquer forma em cima dela. Devo ter cochilado enquanto o esperava cair no sono.

Viro-me para ver o relógio na mesinha de cabeceira ao lado da cama e levo um susto quando percebo que já são quase cinco horas da manhã. Em pouco tempo todos estarão de pé e eu já deveria estar de volta ao meu quarto. Nem quero imaginar o que os outros pensariam se me vissem saindo daqui a essa hora.

Seguro sua mão de leve e a afasto, então saio da cama e a pouso novamente no colchão. Começo a andar na ponta dos pés e não demoro a sair do quarto, dando uma última olhada em Haymitch para conferir se ele realmente está dormindo. Então fecho a porta atrás de mim e continuo andando a passos leves, olhando de um lado para o outro, certificando-me de que sou a única no corredor.

Apesar da hora, quando entro no meu quarto, me jogo na cama e me esqueço dela. Mas parece que apenas se passam alguns segundos e quando volto a abrir os olhos já se passou um pouco das oito horas. E, para a minha felicidade, ninguém veio me chamar até então.

Tomo um banho e escolho um vestido azul. Ponho uma peruca da mesma cor, porém num tom mais claro e faço a maquiagem. Acabo me produzindo bem rápido e saio do quarto, notando a mesa da sala vazia, exceto por uma pessoa.

Haymitch está sentado, tomando seu café da manhã, já acompanhado com sua inseparável bebida. Mas quando encontro seu olhar, uma sensação estranha toma conta de mim e não faço ideia do que possa ter sido. Mas mesmo assim prossigo caminhando em direção a mesa, retribuindo o aceno de cabeça que ele dera.

– Bebendo a essa hora? - indago quando me sento, servindo-me com algumas rosquinhas de chocolate. Haymitch me fita com o cenho franzido.

– Bom dia para você também, queridinha - ele diz e levanta o copo. Observo-o por pouco tempo e volto minha atenção ao meu café da manhã e o ouço pigarrear. Quando volto a olhar para ele, vejo-o também olhando para mim. - Ah... você... conseguiu dormir?

– Mais ou menos - respondo, desviando o olhar. Pego uma taça e despejo suco de morango nela, tomando um gole em seguida. - Acabei dormindo sentada e perdi a hora de voltar ao meu quarto, mas pelo menos não ouvi barulho algum vindo de você - e ao dizer isso, sorrio de leve e ele assente.

– Acho que vou tentar me controlar nas próximas noites - ele diz.

– Bebendo desse jeito? - indago, prendendo uma risada. - Haymitch, você bebe como se tivesse um abismo dentro de si.

– Effie, não é você que vai me fazer parar - ele diz e levanta uma sobrancelha. Bebe mais um gole e faz uma careta.

– Você é ridículo - digo, mas quando penso em me levantar, Cinna e Portia estão em pé, nos observando.

– O que está acontecendo aqui? - Cinna pergunta e senta ao meu lado. Portia, por sua vez, senta na cadeira da ponta.

– Discutindo para não sair da rotina, acredito - Portia diz e lhe lanço um olhar de reprovação. Me pergunto se Cinna contou a ela sobre nossa conversa.

De certa forma ela não deixa de estar certa. Não lembro quando foi a última vez em que eu e Haymitch passamos um dia inteiro sem discutirmos. Nunca me senti à vontade com seu cheiro de álcool emanando o tempo inteiro.

Respiro fundo e volto a me concentrar nas rosquinhas, tentando dar rumo a qualquer conversa que não me leve a discutir com Haymitch.

~*~

Já está um pouco tarde e após conseguirmos sucesso com os patrocinadores mais uma vez, a fim de ajudar Katniss e Peeta, que agora podem vencer os jogos juntos, sinto uma esperança crescer dentro de mim, acreditando que finalmente teremos um tributo vitorioso do Distrito 12. Ou melhor, dois tributos.

Cinna já havia se retirado para o seu quarto e Portia acabara de dar boa noite. Levanto-me do sofá e começo a andar em direção ao meu quarto. Mas é quando estou quase no corredor que ouço Haymitch me chamar.

Viro-me, esperando que não seja para mais uma de nossas discussões. Apesar de odiar isso, é impossível simplesmente ignorá-lo. Trabalhamos juntos há um bom tempo e isso fez surgir, se assim posso dizer, um companheirismo entre nós. Nossas discussões são sempre pelo mesmo motivo: a bebida. Mas fora isso, geralmente estamos do mesmo lado.

Ele parece pensar no que dizer, mas pigarreia e olha para mim. Não acredito no que vejo quando ele pousa seu copo de vodca no centro da sala e vem em minha direção. Pisco várias vezes, tentando assimilar o que estou vendo, mas acredito que seja por conta da hora.

Haymitch para há uma pequena distância de mim, o suficiente para poder falar num tom baixo.

– É... - ele começa. - Se eu começar a gritar de novo...

– Eu vou acordar você, claro - completo. Ele me fita parecendo um pouco assustado, mas logo aceita e assume uma serenidade no olhar. Vejo-o assentir com a cabeça e quando ele começa a se virar para ir ao seu quarto, continuo: - Mas, por favor, mantenha a faca longe. Gosto de ficar viva.

Haymitch se vira para me olhar novamente e vejo um pequeno sorriso surgir nos seus lábios. Ele concorda e segue seu caminho.

Permaneço no meu quarto tempo suficiente para apenas me "desarrumar". Pouco tempo depois de me livrar de toda a maquiagem e roupas, coloco um robe verde e me sento na cama. Não chego a contar cinco minutos e começo a ouvir um barulho vindo do quarto de Haymitch. Ele ainda não está gritando, mas parece aflito e não demorará muito para os gritos virem.

Levanto-me e sigo a passos rápidos para o quarto de Haymitch. Encontro a porta entreaberta e deduzo que ele mesmo já a tenha deixado assim. Quando entro, o vejo se debater um pouco na cama. O suor toma conta do seu rosto e ele parece um pouco mais perturbado que na noite anterior. Vejo-o segurar o lençol e puxá-lo de um lado para o outro. Fecho a porta e vou até ele, parando ao lado da cama. Me abaixo um pouco e estico a mão para alcançar seu rosto. "Haymitch", sussurro, mas ele parece não me ouvir. Ponho uma madeixa para trás da sua orelha e o chamo novamente, mas dessa vez um pouco mais alto.

– Haymitch, sou eu - digo e ele começa a cessar os movimentos. - Está tudo bem - continuo passando a mão nos seus cabelos até vê-lo abrir os olhos devagar. Sua respiração está ofegante e ele demora um pouco para voltar a si. Quando ele finalmente olha para mim, a mesma sensação que tive mais cedo ao vê-lo retorna. Mas deixo isso de lado e enxugo seu suor com o lençol, passando-o de leve pelo seu rosto. Vejo-o se afastar um pouco, dando-me espaço para sentar. Então fico um pouco mais confortável para terminar de enxugar seu suor que parecia não ter fim.

Haymitch bufa e faço uma careta com o mal cheiro. Cubro o nariz com uma mão e jogo o lençol de volta.

– Você conhece uma palavra chamada banho? - pergunto e ele me encara meio mal humorado.

– Não enche, Effie - ele resmunga e se vira.

– Ah, então é assim? - aumento um pouco o tom de voz sem perceber. - Então acho que vou voltar ao meu quarto e tentar dormir.

Quando me levanto, sinto-o segurar o meu pulso, impedindo-me de me afastar. Reviro os olhos e me volto para ele.

– Se eu tomar um banho, você fica aqui até...?

– Até você dormir, sim, Haymitch - completo. - Agora vai, por favor. O cheiro está horrível!

Por um momento percebo um pequeno sorriso se formar nos seus lábios quando ele se levanta lentamente e passa por mim. Enquanto ouço o barulho do chuveiro ligado, torcendo para que ele não tenha caído no sono ali mesmo, retiro o lençol cheio de suor de cima da cama e o deixo na mesinha ao lado. Amanhã pela manhã algum avox virá pegá-lo para lavar ou trocar por outro limpo.

O som da água caindo cessa. Ótimo, penso, pelo menos ele não dormiu lá.

Haymitch sai do banheiro a tempo de ver a cama totalmente arrumada. Ele franze o cenho e caminha até o outro lado da cama. Seus cabelos rebeldes pós-banho acabam lhe dando um charme que até então eu desconhecia. Um sorriso tímido se forma nos meus lábios, mas desaparece logo quando percebo Haymitch me olhando de um modo estranho. Desvio o olhar e me sento no outro extremo da cama, no mesmo lugar onde estive na noite anterior.

Até penso em tentar puxar qualquer assunto com ele, mas desisto. Não acredito que ele venha a ter uma conversa assim comigo. Sempre falamos sobre trabalho e, quando não é sobre isso, é para discutirmos. Mas acabo sendo surpreendida quando ele começa a falar.

– Você não faz ideia de como eu queria que isso tudo acabasse - ele diz e prende a minha atenção. Nossos olhares se encontram e percebo o cansaço que o domina. Penso em dizer alguma coisa, mas desisto. Qualquer coisa que eu diga agora terá 90% de chances de transformar esse início de conversa em mais uma de nossas discussões. Então apenas o ouço. - Não sabe como foi um alívio conseguir dormir ontem. Foi como... eu não sei... Fiz uma coisa não faço há muito tempo e me fez tão bem...

– Sei do que está falando - digo finalmente, tentando escolher as palavras certas para usar. - Quando estamos na época dos jogos, fica quase impossível dormir. Eu sempre estou naquele quarto do lado e sou eu quem mais o ouço gritar, mas... nunca tinha coragem de vir aqui.

Haymitch me lança um olhar de dúvida e aponto para abaixo da almofada.

– A faca - digo. - Você sempre dorme com ela. Pode atacar a primeira pessoa que tentar ajudar você, sem querer.

– Ta bom, Effie - ele diz. - Já entendi. Me desculpe.

Não era muito de se esperar que ele se desculpasse por alguma coisa que fizera a mim, mas assinto com a cabeça. E um silêncio paira sobre nós por alguns instantes.

– Vai dormir, Haymitch - tento não parecer grossa e acho que consigo. Sem questionar, ele me obedece e deita. Observo-o por um tempo, seus cabelos deixados de qualquer jeito, implorando para serem arrumados, mas me contenho. Até que o cansaço começa a me dominar e a necessidade de fechar os olhos toma conta de mim. Esperando não perder a hora novamente, acabo deitando e me viro para o outro lado, olhando para a mesinha que está com o relógio. Não demora muito até que eu caia no sono novamente.