CAPÍTULO II

Ouço o barulho distante do despertador e quando me movo para tentar desligá-lo, sinto uma imensa dor nas costas. Meus olhos lutam para poder abrir, mas o sono ainda me consome. É quando me lembro que passei a noite inteira tentando dormir, impedida pelos gritos desesperados de Haymitch no quarto ao lado. E mais uma vez eu nada fiz.

Há três dias Cinna conversou comigo sobre esse problema de Haymitch e como ajudá-lo. Assim como também estávamos acompanhando a nova aliada de Katniss, Rue, cuidando dela enquanto ainda estava sob o efeito das teleguiadas.

Levanto-me finalmente da cama, ainda lutando contra o sono que me consome, e vou até o banheiro, olhar-me no espelho. O que vejo não me agrada: as olheiras mais profundas que normalmente. Mas nada que uma boa maquiagem não possa resolver.

Levo um pouco mais de uma hora até poder sair do quarto. Coloco uma peruca cor-de-rosa, arrumo-a na cabeça e saio. E ao que me parece, sou a última a comparecer a sala, onde já se encontram Haymitch, Cinna e Portia, atentos a TV.

Caminho direto para a mesa, tentando encontrar algo para tomar café e acabo pegando uma rosquinha com chocolate. Olho para a mesa tentando encontrar mais alguma coisa e acabo desistindo.

– Bom dia, Effie! - ouço a voz de Portia soar. Respondo seu "bom dia" e vou até o sofá, sentando-me ao seu lado.

– Cuidado para não engordar, queridinha - Haymitch diz, sentado na poltrona.

– Antes gorda do que bêbada - retruco e me viro para fitá-lo - queridinho - acrescento e sorrio ao vê-lo sem defesa. Volto a atenção para a TV, que agora mostra Katniss acordando. Rue, a garotinha adorável do Distrito 11 está ao seu lado, explicando-lhe por quanto tempo ela ficou sob o efeito das teleguiadas, quem morreu durante esse meio tempo e então elas começam a bolar um plano.

"Nos vemos no jantar" Katniss diz e elas se despedem, rumando para direções opostas. Suspiro e começo a puxar conversa com Portia, tentando encontrar algo que me distraia e leve esse sono para longe de mim. Vejo pelo canto do olho Haymitch esvaziar outra garrafa de bebida. Continuo olhando por um tempo até encontrar o seu olhar. Desvio de imediato e volto a conversar com Portia e Cinna, esperando que Haymitch não comece a falar.

A conversa vai se desenrolando tão rapidamente que quase não noto o tempo passar. Volta e meia paramos para prestar atenção no que está acontecendo nos jogos e é em uma dessas vezes que sou surpreendida quando a TV mostra a pequena Rue, a garotinha do Distrito 11 que tanto me cativou, sendo atingida. Ponho as mãos na boca e sinto meus olhos umedecerem. "Não pode ser" sussurro. Portia reage da mesma forma, mas acredito que não tenha sido tão atingida quanto eu. E quando menos espero, as lágrimas escorrem sem parar pelo meu rosto. Por alguns instantes este é o único som que domina o ambiente, tirando o da TV. Não consigo assistir mais e me levanto do sofá, correndo em direção ao banheiro, sentindo os olhares deles sobre mim.

Devido a toda a maquiagem borrada, sou obrigada a refazer tudo e isso me faz demorar ainda mais no banheiro. Mas nada que eu passo no rosto me tira a aparência abatida que tenho agora. Então acabo fazendo o básico para não demorar ainda mais e saio, mas dessa vez me retiro para a mesa, e é lá onde eu fico. Vejo que os avoxes colocaram outras comidas e me sirvo de torradas.

Um clima de tensão invade todos os presentes ali e ninguém se pronuncia. Apenas são trocados olhares um com o outro, mas ninguém abre a boca para falar por um bom tempo. Até que Cinna quebra o silêncio que paira sobre nós.

– Está melhor, Effie? - ele pergunta, tirando-me dos meus devaneios. A cena da morte da Rue continua repetindo na minha cabeça, sem parar.

Balanço a cabeça, confirmando estar bem e termino de engolir um pedaço da torrada que estava mastigando agora.

– Estou sim, Cinna - respondo. - Obrigada.

Haymitch está sentado há duas cadeiras de distância de mim, encarando seu prato sem colocar nada na boca. O observo por alguns instantes, mas ele continua da mesma forma. A única coisa que passa pelos seus lábios é o seu famoso whisky.

Suspiro, desapontada, e termino meu jantar, assim como os outros. Não demoro muito até voltar para o meu quarto e, desta vez, livro-me de toda a maquiagem, trocando também meu vestido por um robe. Deito-me na cama e fico encarando o teto, percebendo que estou sem sono algum. Tento me distrair com qualquer pensamento, mas tudo me leva a cena trágica de hoje nos jogos. Fecho os olhos e contenho as minhas lágrimas novamente. Respiro fundo e então me obrigo a tentar dormir. Meus pensamentos vão se dissipando e não sei quanto tempo se passou quando sou desperta pelos gritos de Haymitch.

Conto até dez e então decido que de hoje não passa. Preciso fazer algo para ajudá-lo e, assim, me ajudar também. Há dias não sei mais o que é dormir bem. E a cada dia que se passa, ele parece piorar.

Levanto-me da cama e vou andando até o quarto ao lado. Os gritos desesperados vão ficando cada vez mais alto e um frio se apossa do meu estômago à medida que vou me aproximando da porta. Seguro a maçaneta, mas não a giro de imediato. Ponho a outra mão na porta e então a abro aos poucos, sentindo-me aliviada por ela não estar trancada. Não demoro até encontrar Haymitch gritando na cama. Uma de suas mãos está escondida embaixo do travesseiro, a qual deduzo estar segurando sua faca. Por um momento penso em recuar e voltar para o meu quarto, mas desisto. Ele precisa disso mais do que qualquer outra pessoa aqui.

Fecho a porta devagar e ando a passos leves em direção a Haymitch, parando bem próxima a ele. Umedeço os lábios e levo uma mão até a boca, roendo uma unha. Como vou fazer isso?

Dou mais um passo em sua direção e me abaixo aos poucos, tentando esticar o meu braço para alcançá-lo.

– Haymitch - sussurro, chegando cada vez mais perto. Seus gritos parecem diminuir o tom e me sinto um pouco mais segura, mas quando finalmente encosto meus dedos no seu rosto, percebo que estava totalmente errada. Haymitch praticamente urra e me segura pelo pulso com a mão livre, fazendo-me gritar com o susto, enquanto a outra brande a faca que estava escondida. Ele me empurra, fazendo-me cair indefesa no chão, presa entre suas pernas, ainda brandindo a faca. É quando percebo quão rápida minha respiração está. Meus olhos se arregalam e por um momento tenho a certeza de que vou morrer agora mesmo, mas a expressão de Haymitch muda e ele parece ainda mais assustado.

– Effie? - ouço-o sussurrar. Fecho os olhos e concordo com a cabeça. Quando volto a abri-los, vejo-o abaixar a mão que segura a faca e afrouxar o aperto no meu pulso. Meus olhos estão úmidos por causa do susto. - É você?

Balanço novamente a cabeça e ponho uma mecha de cabelo atrás da orelha, aproveitando para me afastar um pouco.

– Mas que diabos você está fazendo aqui? - ele quase berra e me assusta novamente. Concentro meu olhar no chão.

– E só... eu... - gaguejo. Não consigo controlar meu nervosismo. - Desculpa, Haymitch. Eu... - fecho os olhos e tento encontrar as palavras corretas. - Eu só... estava tentando ajudar.

– Não preciso de ajuda - ele diz. - Ninguém pode me ajudar.

Nos olhamos por alguns instantes em silêncio. Haymitch balança a cabeça negativamente e se senta na cama enquanto eu permaneço sentada no chão, numa certa distância dele.

– Alguém tinha que tentar... - digo e ele me olha novamente, agora de uma forma diferente. - Ninguém mais consegue dormir, Haymitch - prossigo, aproveitando sua atenção. - Está ficando cada vez pior.

Percebo, então, que estou bem próxima ao armário e me encosto nele. Haymitch permanece em silêncio, com a cabeça baixa. Suspiro e tento prosseguir.

– Você tem que se controlar - continuo. - Por mais difícil que seja... tem que ao menos tentar.

Haymitch continua em silêncio, encarando o chão. Percebendo que ele não vai dizer mais nada, me levanto e, hesitantemente, me aproximo dele.

– Bom... eu vou voltar ao meu quarto e é melhor você tentar dormir - digo e ele concorda com a cabeça. Fungo e então percebo que o choro está querendo voltar, mas consigo controlá-lo. O susto que levei junto a cena da morte da Rue acabaram com o meu emocional. Mas parece que isso chamou a atenção dele, que levantou a cabeça para me ver.

– Todos sentimos muito pela morte da garotinha - ele diz e isso prende a minha atenção. - Não foi só você.

Assinto com a cabeça e fungo novamente.

– É melhor você dormir - digo, tomando postura novamente. Enxugo as lágrimas que ousaram cair pelo meu rosto. - Vou tentar fazer o mesmo e espero que não volte a ter pesadelos.

– Isso eu não posso garantir - ele diz com um sorriso triste nos lábios. - Quando eu fechar os olhos, vou voltar a ter pesadelos e... - ele faz um movimento com as mãos - você sabe.

Olho ao redor e mordo o lábio, pensando na ideia que acabou de vir.

– Bom - começo a dizer. - Se quiser, posso ficar aqui até você dormir.

Haymitch me fita com um olhar que não sei decifrar o que quer dizer. Mas depois de alguns instantes, ele concorda com a cabeça. Ele se afasta e deita no outro lado da cama, dando-me espaço para sentar. Arrumo o travesseiro nas minhas costas e me encosto, encontrando, assim, uma posição confortável. Olho para Haymitch, que ainda está com os olhos abertos, e franzo o cenho.

– Não vai dormir? - pergunto. Haymitch deixa escapar uma breve risada antes de responder.

– Você está... - ele diz, e imediatamente já sei o que quer dizer - diferente.

Balanço a cabeça e reviro os olhos.

– Inédito, não é?

– Totalmente.

Abafo uma risada e o observo se virar para finalmente dormir. Ele puxa o lençol sobre o seu corpo e permaneço observando-lhe durante um tempo, até que minhas pálpebras começam a pesar e meus olhos vão fechando aos poucos.

Até que caio no sono.