À Trois escrita por mimidelboux


Capítulo 1
O Primeiro




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1968 foi um ano difícil para a população brasileira. A ditadura militar já durava 4 anos seguidos e a população do país se viu ainda mais estrangulada pelo governo com o Ato Institucional Número 5, decretado no fim daquele ano.

Com o AI 5, muitos perceberam o começo da negra era que o Brasil vivia. O Ato dava poder absoluto ao presidente da república, que na época era Artur da Costa e Silva. A partir daquele momento, jornais foram censurados e pessoas começaram a ser presas, torturadas até a morte ou sumiam.

Mas não só o Brasil vivia uma crise política. O mundo inteiro estava imerso na Guerra Fria, na corrida armamentista dos Estados Unidos contra a União Soviética, no extremismo bipolar da direita contra a esquerda.

Não era apenas os brasileiros quem estavam cansados e lutavam pela mudança. Em maio daquele mesmo ano, estudantes franceses protestavam por novos valores sociais e logo toda a população francesa ia às ruas.

Tais levantes sociais serviam como inspiração para jovens brasileiros, pois por aqui a opressão e o medo eram maiores. A tentativa de passar uma mensagem a favor da população que ansiava por liberdade era deixada para os artistas, que escreviam músicas com duplo sentido e que mais tarde seriam ícones contra a repressão militar.

Mesmo ciente de toda essa desorganização política, dentro e for a do país, Irene já estava acostumada a muito tempo a passar o dia inteiro desenhando, já que seu pai a proibira de assistir televisão e ler certos livros, que ele julgava inapropriados para a idade dela.

Não entendam mal, pois como todo pai, ele apenas queria proteger sua filha.

Mas Irene não ligava. Na realidade, ela até preferia assim, pois podia ficar o dia inteiro em casa. Não que ela não gostasse de sair, ela apenas tinha uma preferência por ficar dentro de sua casa a dar vexame a cada passo que dava lá fora. Ela não era uma simples menina trapalhona, era era mais que isso. Ela era um ímã humano para desastres sociais.

São incontáveis os micos que ela já tinha pagado na sua curta existência no planeta terra. Quando tinha por volta dos 5 anos, fora até o banheiro, durante reunião familiar num restaurante chique, e voltara avisando o tio que seu cocô tinha saído enorme e com milho.

Dois anos depois, durante o natal, um amigo comum de seus pais, de quem ela morria de medo por ele ser bombado e falar gritando com sua voz grossa, veio falar com ela, fazendo-a molhar as calças.

Já por volta dos 10 anos, ao pegar a perua para voltar para casa, avistou dois bancos vazios e decidiu se sentar lá, achando que estava com sorte. Após se sentar, ela deu uma olha pela segunda vez e percebeu o porquê dos bancos estarem vagos: alguém vomitara neles.

Seu último grande mico fora no ano passado, quando tinha 14 anos. Sua avó dera calcinhas muito grandes para ela, que prometeu nunca usá-las. Mas um dia ela só tinha as calcinhas que sua avó dera e não teve outro jeito, tivera que usá-las. No mesmo dia, ela tivera educação física na escola e, não se sabe como, a calcinha subiu um pouco e quem foi avisar ela do acontecimento, todo acanhado, era o menino de quem ela gostava.

Mas aquele era o ano de 1968 e ela decidira nunca mais sair de casa, excluíndo ir para a escola.

Era final de setembro de 1968 e até aquele momento ela não tivera que sair de casa para nada. Sua mãe não fazia questão da decisão da filha e o pai até preferia assim.

Ela já tinha 15 anos e já estava no começo do final do primeiro ano do colegial. Nunca tivera que mudar de escola, pois seu pai nunca fora transfirido no trabalho. Suas amigas eram as mesmas de sempre e, infelizmente, odiaram a mudança da menina. Irene também não gostara de mais ninguém após o desastre da calcinha da avó. E pretendia ficar assim por um tempo. Suas amigas, ao contrário, pareciam mais interessadas em ajudar a amiga encontrar um namorado do que ficarem com os seus.

- A questão é, Irene, quando você vai voltar a falar com um menino?

- Eu falo com o meu irmão.

- Seu irmão não vale! Tem que ser alguém que não tenha o mesmo sangue que você!

- Mas gente, qual o problema de eu não querer ter um namorado?

O olhar das amigas diziam “Por favor, Irene!” com uma feroz irônia.

- Se estão com tempo para fazer eu arranjar uma vida amorosa, então deviam cuidar da de vocês!

A boca de duas amigas se escancararam.

- Já sei qual deve ser o seu problema!

- Ah, Clara! Por favor, não comece! – Irene olhou com desdem para a amiga.

- Você ficou traumatizada com a última vez que o João Pedro veio falar com você! – a menina apontava o dedo na cara de Irene.

- Isso foi há um ano, Clara! – Irene rebateu o dedo da menina para longe de seu rosto.

- Mesmo assim: nós 3 sabemos que você é um ímã gigante para catastrofes sociais! Foi por isso que você também parou de sair conosco depois da aula!

Irene engoliu em seco. A amiga acertara em ponto e ela não sabia como revidar aquela situação.

- E qual o problema em parar de sair por ser um ímã gigante para catástrofes sociais? – Irene soou fria, mas engolia seu próprio orgulho.

- E você me pergunta! – Clara olhou para as outras duas e de volta para Irene. – Você não sabe porque passa por toda a humilhação, mas o fato de ser um ímã gigante para catástrofes sociais é o que a torna tão charmosa!

Irene virou os olhos:

- Ah, tá! – disse irônicamente, enquato estendia o braço para chamar o ônibus. – Olha, eu vou indo…

- Você tá é aproveitando a situação pra fugir do assunto! – Clara gritava para Irene, que subia no ônibus, fingindo não escutar a amiga.

A porta do ônibus se fechou nas costas de Irene. Ela se sentou em um banco bem a frente e ficou observando a cidade correr pela janela. A escola onde ela estudava não ficava tão longe da casa dela. Se ela quisesse, podia ir à pé, mas preferia pegar o ônibus a ficar suada.

A verdade é que Irene também poderia voltar para casa com o pai, que era o diretor de sua escolar. Mas ela não gostava de lembrar disso e sentia um pouco de vergonha por ser a filha do diretor. Por causa disso, ela e seus irmãos eram obrigados a serem os melhores de suas séries, pois o pai não admitia fracassos.

Quando faltava um ponto para ela descer, Irene se levantou e se direcionou para o cobrador. Enquanto lhe pagava a quantia, percebeu que um grupo de meninos da sua escola, pertencentes ao terceiro e segundo ano, estavam conversando no meio do corredor.

Ela conhecia um ou outro do terceiro ano, pois eram colegas de seu irmão, mas engoliu em seco, pois era um grupo de qual as garotas do seu ano tinham um pouco de receio, pois esses meninos viviam enchendo o saco delas.

Irene foi em frente, sabendo que aquilo era um chamado do destino para ela passar vergonha. Começou a atravessar o grupo, ignorando os xavecos que os meninos falavam para ela. No momento que ela passou na frente de um menino do segundo ano, que estava sentado voltado para o corredor, o ônibus fez uma curva muito fechada e Irene acabou caindo no colo do menino.

Por ser um pouco menor que a média brasileira e pelo ônibus ainda estar fazendo a curva, Irene ficou uns bons segundos no colo do menino, pedindo a Deus para morrer de vergonha naquele instante, enquanto tinha que aquentar os comentários desnecessários que os outros meninos faziam daquela situação.


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