O Tamanho dos Meus Sonhos escrita por IsaS


Capítulo 2
Capítulo 2 – “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.” – Vinicius de Moraes




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Enquanto de encaminhavam para a mesa ornamentada pelas mais variadas iguarias apetitosas feitas pelas mãos da Amância, Ferdinando puxou a Catarina para um quanto mais recatado da sala, e com ar desesperado suplicou:
– Catarina, eu sou um Homem morto! Como é que eu me safo desta? Eu sabia, eu…
– Calma darling!! Já sabias perfeitamente que este momento ia chegar. Mas a Amância esmerou-se desta vez, aliás, tal como eu lhe pedi, off course. Tem todos os pratos favoritos do teu pai. Então, para com os mimimis, e trata de enrolar um pouquinho, que assim não passamos nós fome, nem tu vais dormir ao relento, mal acabas de chegar. Enquanto isso ganhas tempo…
– OH CATARINAAAAA!! Mas onde é que se meteu aquela mulher? Será que foi pela 7º vez retocar a maquiagem hoje? CATARINAAAAAA! – Resmungava o velho Coronel Epaminondas.
– Já aqui estou Epaminondas, quanta pressa! Isso é tudo fome, ou a mesa está lhe chamando? – Disse Catarina desconversando.
– Ah Catarina, hora de almoço é sagrada nessa casa! E cadê o Nandinho? Meu filho, traz logo esse diploma!
– Arghh..ah…hum… é que pai, é que eu…
– Mas Nandinho, como é que pode? Ainda não meteu nada à boca, e já está engansgando? Desembucha homem!! Quê, quê, quê, o quê? Catarina, eu estou ficando nervoso!! – Catarina simplesmente revirou os olhos, não dando a importância a tanto drama. Afinal, o papel de dramática naquela casa era dela, e como tal sabia que o melhor era ignorar mesmo.
– Calma meu pai! Eu fui só lá dentro ver se trazia já o diploma, mas lembrei-me de que tenho guardado num bolso falso, no fundo da mala. Tenho que tirar tudo o resto primeiro, e com a fome que eu estou, e essa mesa assim, é tortura me obrigar a fazer isso agora, não é? – disse Ferdinando fazendo já o seu famoso biquinho.
– Tudo bem, tudo bem! Foi uma viagem longa, come primeiro, e depois, como sobremesa esse bendito diploma! Vai directo para a parede do meu escritório!!
Ferdinando a ver a alegria do seu pai, e o orgulho com que ele falava de algo ou alguém que não exisita, ele sentiu-se completamente arrasado. Sabia que iria desiludir profundamente o pai. Mas também sabia o porquê de ter estudado Agronomia. Queria cuidar da melhor forma das terras dele. Queria que elas se mantivessem de geração em geração, cuidadas com amor e carinho como o legado de uma família. Esse compromisso de dedicação e zelo por algo que é nosso, essa forma de a eternizar, era tudo muito apelativo para Ferdinando, chegando até a ser poético e uma verdadeira honra. Apesar do medo que o assolava neste momento, ele tinha a certeza que o pai veria o mesmo que ele via, e um dia até agradeceria tal dedicação.
Mas, neste momento, talvez o melhor fosse dar um tempo ao velho coronel para assimilar a ideia… Pensando nisso, enverdou por um assunto que sabia que lhe ajudaria a criar distracções do tal assunto, que preferia que caisse no esquecimento, pelo menos por hoje. Assim sendo, iniciou a sua táctica:
– Então meu pai, a Catarina me contou que está pensando em se candidatar à Perfeitura da Cidade das Antas…
A táctica deu resultado. Os olhos de Epaminondas se iluminaram de tal maneira, que Ferdinando pode suspirar de alívio, pelo menos por algumas horas, pensava ele. Sabia que se havia coisa que fazia com que todos os assuntos fossem deixados para depois, no que diz respeito ao Coronel, essa coisa era política.
Enquanto isso, Serelepe e Pituquinha tinham à sua frente o grupo de meninos que à bem pouco tempo admiravam escondidos. Estavam quase todos com uns olhos com um misto de receio e curiosidade.
– Ai Lepe, eu tou com medo… - Disse Pituca baixinho, quase que sussurando ao amigo.
– Calma Pituquinha, deixa-me assumir o leme deste navio desgovernado! – Disse o pequeno Serelepe de sorriso travesso.
– Bom – inciou o menino com cara forçosamente séria – Acho que ainda não nos apresentamos. Eu sou o Serelepe, e a minha amiga chama-se Pituca.
– Engraçado, era suposto vocês nem sequer pisarem aqui…não têm medo dos perigos da floresta? – Perguntou um menino ruivo, que devia ter por volta de 12 anos. Era ele quem os tinha encontrado a espiar os amigos.
– Medo de quê? De tropeçar em alguma raiz de árvore? – Disse o Serelepe, já assumindo o seu ar travesso.
– Aqui tem bichos, de noite é muito escuro… - Continuou o menino, tentando assutar os aventureiros.
– Senhor…? – perguntou Serelepe, arranjando assim uma forma de saber o nome do pequeno, que na verdade era um pouco maior que ele.
– Heitor– disse o rapaz agora com um semblante, no mínimo, desconfiado.
– Então Senhor Heitor, eu já morei aqui e conheço bem estas bandas. E quanto a medo só tenho de Homens maus e de orfanatos, claro.
– Tu já estiveste num orfanato? – Perguntou uma menina morena, que aparentava, também ela, ter uns 12 anos.
– Sim, eu não tenho pai nem mãe, embora sinta muita a falta deles. Eu sei que parece estranho sentir a falta de quem nunca se conheceu, mas eu sei que houve uma razão muito forte para me terem deixado… - disse Serelepe, já perdido nas palavras, quando se lembrou da pergunta da menina. – Sim, já estive, já vivi num. É o sitio mais assustador que conheço. Por isso que fugi. Não foi lá que descobri o que é amor, a amizade, acreditem em mim. Agradeço todos os dias aos meus pés… - disse o menino perdido nos seus pensamentos.
– Aos teus pés? – Perguntou a menina morena novamente.
– Sim, a eles mesmos. Fiquei muito tempo a ganhar coragem para fugir daquele lugar horrível. No dia que decidi que fugiria, consegui escapar facilmente do meu quarto. Mas quando cheguei ao Jardim, uma das Irmãs viu-me e eu tive que correr, mas não foi só correr, foi voar também! Nunca pensei que os meus pés corressem tanto. E é por isso que lhes agradeço. Porque me trouxeram até esta Vila, este sítio mágico, até à minha casa. Porque embora não tenha os meus pais, tenho a Mãe Benta, que me prepara bebidas quentes à noite, e comida muito boa também. É ela que, antes de eu dormir, me abraça e me diz o quanto gosta de mim. Sinto-me protegido, coisa que nunca me sentiria nesse orfanato. Também tenho o Zelão e a Pituca, que são os meus melhores amigos. Que mais posso querer eu na vida? – Disse Serelepe, sorrindo o tempo todo, enquanto se recordava de tudo aquilo, e se lembrava ao mesmo tempo, como estava feliz de viver ali, e em liberdade.
Pituca olhava orgulhosa para o amigo, que dizia aquilo tudo, como se não estivessem cativos por um bando de miúdos que nunca tinham visto na vida. E que tinham um ar demasiado esquisito.
– Isso é tudo muito bonito, mas na verdade não podem estar aqui, nem podem dizer a ninguém que nos viram! Façam de conta somos as personagens do “Sítio do Pica Pau Amarelo”, e que sonharam isto tudo depois de ler o livro. – disse o pequeno Heitor tentando afastar os pequenos forasteiros.
– Sítio do quê? – Perguntaram Lepe e Pituca ao mesmo tempo.
– Ué, vocês, não conhecem Monteiro Lobato? – Perguntou a menina morena, estupefacta.
– Quem é esse senhor? Não, não estamos a perceber nada que vocês estão ai falando! – Disse a Pituquinha, completamente perdida naquilo tudo.
De repente, uma outra menina saltou para a frente dos dois amigos, e disse, com gestos que muito faziam lembrar os de uma boneca:
“…a vida, Senhor Visconde, é um pisca – pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas.
Cada pisco é um dia.
pisca e mama;
pisca e anda;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
– E depois que morre – perguntou o Visconde.
– Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?”
– Monteiro Lobato é somente um dos maiores escritores de livros infantis de sempre! Foi ele que escreveu “Sítio do Picapau Amarelo”, e muitos outros livros relacionados com essa história, como “Memórias de Emília”, de onde este trecho, que a Cris contou, é. – disse Heitor - E vocês estão parecendo o Pedro e a Narizinho, tentando entrar em mundos que não conhecessem. – Ele ia continuar, mas parou de repente. E confrontou os dois amigos – Como é possível que vocês não conheçam as histórias de Monteiro Lobato? Vocês não lêm livros?
– Humm…é, bem, o meu pai gosta mais de ver os livros lá nas prateleiras do escritório, e não deixa eu pegar. Nem no quarto do meu irmãozinho ele deixa mexer, e tem lá muitos livros, que eu já vi! – disse Pituquinha, de forma doce.
– É, eu aqui em Santa Fé não tem escola não. Ou melhor até vai ter, se o Coronel Epaminondas deixar… - Serelepe baixou a cabeça e confessou – eu não sei ler nem escrever.
Todos os meninos que ali estavam se entreolharam, admirados com o que os dois tinham acabado de contar.
– Como é que podes dizer que és feliz, se nunca leste um livro? Podes ter um tecto, amor, comida quente… Podes ter um lar, mas digo-te, tenho pena que o teu mundo seja tão pequenino. Os livros são a melhor coisa desta vida. Convidam-te a entrar em mundos únicos, que te ensinam sobre as coisas boas e más da vida, ou então mostram-te realidades que nunca sequer pensaste que existiam! São viagens magníficas, onde descobres que este mundo é só uma pequena parte de tudo que podes ser, sentir, pensar e viver. – dizia Heitor com um uma certeza inabalável.
– Então ensina-nos sobre os livros! – disse Serelepe, encantando com a possibilidade de novos mundos.
– Mas, será que não percebes? Os livros é que te ensinam! – disse a menina morena, de cabelos cacheados.
– Bom, nós aceitamos vos mostrar o fantástico mundo dos livros! Voltem amanhã, à mesma hora. Agora é melhor irem. Os vossos paizinhos podem ficar preocupados. – disse o menino com ar de deboche, mas determinado em ensinar a importância dos livros, aos dois amigos.
– Eh, óptimo! Viremos sim! Gostei muito de vos ter encontrado – disse Serelepe já com o seu sorriso de menino de quem ganhou o melhor presente que se pode ganhar: amigos. Ou a possibilidade de o serem.
– Pois, Lepe, temos que ir mesmo. O meu maninho já deve ter chegado, lembraste? – disse Pituquinha, já aliviada por um lado, por ver que o seu medo era infundado em relação aqueles meninos, e, por outro lado, estava preocupada, porque sabia que não faltaria muito para a sua mãe, exagerada como ela só, mobilizasse a Vila toda à procura deles.
E assim, Serelepe e Pituquinha se despediram dos novos amigos, e partiram de mãos dadas em direcção à Vila.
Gina estava descendo as escadas de sua casa, quando percebeu que tinham convidados em casa. Decidiu se esconder, para perceber quem era. Detestava visitas surpresa, então resolveu tentar perceber quem era e a que vinha.
– Seu Pedro, agradeço muito a sua amabilidade, de sua esposa, D. Tê, em me acolherem aqui. O Sr. Maribondo, ele me mostrou a escola, e me explicou também que o meu quarto será lá, mas ainda não está pronto… - explicava a delicada e doce Professora Juliana.
– O que é isso, Dona, eh, Professora, eh, Senhora Juliana. A Senhora pode ficar aqui o tempo que quiser! A nossa casa é modesta, mas será muito bem acolhida aqui, viu? – Disse Seu Pedro, com o jeito atrapalhado.
– Mas por acaso alguém me consultou sobre meter uma estranha aqui em casa, oh pai? Mãe? – disse Gina, descendo a passos pesados a escada onde escutava tudo escondida. O seu semblante fazia transparecer a sua insatisfação com tudo aquilo.
– Mas, minha filha, isso é jeito de falar com as pessoas? Foi essa a educação que eu e seu pai lhe demos, foi? – disse D. Tê já completamente envergonhada com o jeito da filha.
– Ué, mas primeiro de tudo, quem é essa pessoa? E porque raio é que a algodão doce ai vai ficar aqui em casa? Vocês tinham que me consultar sim, afinal eu também moro aqui, não moro? Ah, sabem que mais? Façam o que quiserem! Vou mas é para o meu quarto, que não estou para isto… - Assim que disse isso, Gina virou-se e subiu a escada a correr.
Instalou-se um silêncio incómodo na sala. Todos se olhavam entre si, Seu Pedro piscava os olhos tentando encontrar as palavras certas para se desculpar, D. Tê já se benzia, e rezava, na verdade pedia a Deus que se abrisse um buraco no chão da sala, para que pudesse se enfiar nele, de tanta vergonha. Moribondo? Esse estava de boca aberta, feito estátua, olhando para a escadaria.
– Eh, Dona, hum… Professora Juliana, essa é a nossa filha Gina. Não ligue muito para o jeito dela, ela é mesmo assim, um pouco brava, mas eh…ela é uma boa menina, sabe, trabalhadeira, uma bela de uma roceira! – Dizia Seu Pedro, quando D. Tê interrompeu o marido.
– É, D. Juliana, a nossa filha sabe lidar melhor com a terra do que com pessoas, por favor não leve a mal…
– D. Tê, Seu Pedro, cada pessoa tem o seu jeito. E eu entendo plenamente a vossa filha, afinal eu sou sim uma desconhecida para ela, e ela não é obrigada a aceitar-me aqui, na casa dela. Deixem me ir falar com ela, por favor. – Disse Juliana, compreensiva e disposta a tentar se dar bem com a ruiva geniosa.
– Mas, é claro, a Senhora tente sim, mas aviso já que ela é onça brava. Por isso, não se ofenda com nada que ela disser, por favor. – Advertiu Seu Pedro.
A doce professora sorriu, e começou a subir a escada. Viu a porta do quarto que, supunha ser de Gina, aberta. Ela estava sentada perto da janela, olhando lá fora, para onde, ela não saberia dizer.
Bateu ao de leve na porta, tentando chamar a atenção da ruiva. Resultou. Ela olhou, e a cara dela era de, nada menos que surpreendida. – Posso entrar? Prometo que não demoro. Só gostava de dar uma palavrinha contigo.
A ruiva baixou a cabeça, para logo em seguida olhar desconfiada para a ruiva. – O que é que a professora teria para conversar comigo? Veio me dar uma lição de moral? Pois saiba que dispenso bem.
– Bom, primeiro podes me tratar por tu. Acho que não deveremos ter grande diferença de idade. E segundo, eu acredito que devemos dar o benefício da dúvida a toda a gente. Por isso, aqui estou, eu sou a Juliana. E tu és a Gina, certo? – disse a professora amistosamente.
– Não concordo contigo, em dar o benefício da dúvida. Mas… bom, sim sou a Gina. Que posso fazer? Tenho que te dar esse benefício da dúvida na mesma, já que não tenho escolha! – disse a ruiva, mal humorada.
– Tu não és obrigada a nada, mas acho que não custa anda tentares conhecer-me melhor, já que esse foi o grande problema, desde inicio, não foi? Olha, e que tal vires comigo, e dávamos uma volta na vila? Não conheço nada. E assim também podemos nos conhecer melhor? Talvez possamos ser amigas, quem sabe?
– Ah, sim, realmente, temos tudo a ver uma com a outra, não haja dúvida. – Disse a Gina olhando para a professora com uma cara que tentava evidenciar o óbvio do que acabava de dizer - Mas ok, também não tenho nada para fazer, e preciso mesmo de ir à Vila comprar um livro… - disse Gina desanimada.
– Também gostas de livros, eu adorooo! Quais são os teus preferidos? Eu… - Dizia Juliana já animada, quando Gina a interrompeu…
– Hey, calma, ok? À vontade não é à vontadinha, está bem? Eu concordo ir contigo, mas acabei de te conhecer. Não hajas como se já fossemos amigos de infância… E se começas a falar que nem um papagaio, sou bem menina para te deixar a falar sozinha em plena Vila! Ai estás por tua conta… - Ao dizer isto, Gina saiu porta fora, obrigando a Professora a segui-la, ainda um pouco atordoada pela personalidade vincada da ruiva. Não estava, de todo, habituada a ser tratada assim. Normalmente, as pessoas costumavam ser bem amáveis com ela. Mesmo não entendendo a forma de ser de Gina, ela seguiu-a, obstinada a tentar conhecê-la melhor e ganhar um pouco mais da sua confiança. Afinal, iria dividir o quarto com ela por uns dias…

Na casa da família Napoleão, o almoço estava animado, pelo menos para Epaminondas, que continuava a encher o copo com o excelente vinho tinto que tinha escolhido especialmente para a ocasião. Vinho e política, e o Coronel estava nas nuvens!
Mas era o único que, na verdade, estava feliz e relaxado. Ferdinando acompanhava o pai, quanto ao vinho, não porque estava alegre pelo tema em pauta – política – mas porque o seu nervosismo era tanto, que talvez somente o álcool conseguiria disfarçar.
Catarina, por sua vez, estava preocupada com o que aconteceria quando Epa soubesse a verdade. Além disso, não parava de pensar onde se teria metido Pituca! Por certo estaria com o amigo Serelepe.
– Maninho!!!!! Que saudadeeees! – Falando nela, Pituca chegou nessa mesma hora, completamente radiante de ver o irmão.
Ferdinando, pela primeira vez no dia, sentiu-se feliz. Como estava com saudades da sua irmãzinha. – Minha princesa!! Que saudades! E como estás linda. Como é que cresceste tanto, hein? – Disse ele, já lhe dando um abraço apertado, recheado de carinho e amor.
– Mas, menina Pituca, onde andavas metida? Eu estava morta de preocupação! Estava quase convocando um batalhão para sair à tua procura! Queres matar a tua mammy do coração? Oh God! – Enquanto Catarina dizia tudo isto com os seus gestos exagerados, cheios de drama, Pituca sorria ao lembrar-se que previu toda a cena antes.
– Ah, “mummy”, eu estava só brincando! Sou uma criança, o que é que as crianças fazem? – Catarina ficou olhando para ela, tentando abrir boca várias vezes, sem dizer nada, tentando argumentar sem sucesso. – Ué mãe, brinca, não é?
Todos riram do jeito prático de ser da menina.
– Mas vem cá minha princesa, conta-me o que andas aprontando por ai na minha ausência!
– Bom, antes de porem a conversa em dia, vamos almoçar? E menina Pituca, a senhorita sabe muito bem que na hora do almoço tem que estar em casa! E se eu descubro que andas ai por essas bandas com aquele miúdo chamado Serelepe, eu…
– Epaminondas! Calm down! Sabe perfeitamente que hoje é um dia especial! Vai começar já com as poses de ditador? Não pode guardar essa tendência para outra hora? Lembre-se que o nosso querido Ferdinando acabou de chegar, e este almoço é em sua honra! – Interviu Catarina, vendo já o marido já alterado, um pouco também pelo vinho tinto.
– Sabe Catarina, tem toda a razão! Aliás, meu filho, eu não te contei, mas eu convidei uns amigos meus para virem aqui da parte da tarde, para lhes mostrar toda a razão do meu orgulho! Eles vão cair para o lado, e eu vou encher o peito para dizer “O meu filho Ferdinando, Doutor advogado!” – Dizia Epaminondas, como que já noutro mundo, como que imaginando a cena.
Ferdinando entrou oficialmente em pânico. Então, percebeu que não valia mais a pena adiar o inadiável. Conviveu tantos anos com essa mentira, e agora precisava de assumir a sua escolha. Embora soubesse da tempestade que se seguiria. Assim sendo, tomou todo o vinho que tinha no seu copo, e levantou-se decidido a contar a verdade.
– Meu pai, preciso lhe contar uma coisa, que não posso, de maneira nenhuma, lhe esconder mais. – Ao dizer isto, Catarina arregalou os olhos na direcção de Ferdinando, completamente surpresa com a atitude do enteado.
De forma a evitar males maiores, resolveu tirar a pequena Pituquinha de cena. – Pituca, minha filha, é melhor ires para o teu quarto. Esta conversa não é para crianças, por certo, seja lá o que o teu irmão quer falar com o teu pai.
– Mas, mãe, eu tenho fome! E o mano Ferdinando acabou de chegar! – disse a menina, já sem entender nada do que se passava.
– A Amância vai já te levar o almoço ao quarto. E quanto ao teu irmão, disseste bem, ele acabou de chegar. Vais ter muito tempo para estares com ele. Agora vai, por favor.
A menina baixou a cabeça, mas obedeceu à mãe.
Epaminondas, que congelou a olhar para o filho, agora sem a sua caçula na mesa, finalmente, conseguiu falar – Ferdinando Napoleão, explique-me, e já, o quer dizer com isso! Porque, realmente, estou estranhando as tuas atitudes!
Ferdinando olhou uma última vez para a madrasta, e virou-se para o pai decidido a contar toda a verdade. – Pois então meu pai, eu não me formei Advogado, mas sim Engenheiro Agrónomo.
Epaminondas arregalou os olhos, levantou-se com violência, e encarou o filho com dureza – O QUÊ? Tu…tu formaste-te em quê?
– Engenheiro Agrónomo, de forma a cuidar das nossas terras pai. Sei formas de as pôr a render muito mais, e de uma forma sustentável. – Ferdinando abandonou toda a insegurança, e assumiu o que era, o que queria, mesmo encarando um Coronel completamente enraivecido com o que acabara de ouvir. Contudo, não era a raiva do pai que o preocupava, mas sim a mágoa patente no seu olhar.
– Quer dizer que eu o meu filho, a quem eu dei tudo, TUDO, e lhe pedi, tão e somente, para me dar o maior orgulho dessa vida, e se formar Doutor Advogado, me mentiu? Este tempo todo, estavas a aprender a brincar às hortas? – Epaminondas se virou, e caminhou até ao centro da sala, completamente atordoado como que acabara de ouvir.
– Meu pai, por favor escute-me, eu… - dizia Ferdinando já desesperado.
– Pai? Tu sequer lembraste-te que tinhas um pai neste tempo todo? Andava aqui o velho bobalhão enchendo a boca para falar do MEU filho, que me estava dando um orgulho enorme, se formando, como eu não tive oportunidade de fazer, e tu andavas lá pela capital me passando a perna e tirando um curso de… Agronomia? Não, eu não tenho filho. Esse filho que eu achei que existia, afinal, era uma ilusão, uma alucinação da minha cabeça. O MEU filho nunca me trairia dessa forma, não, NUNCA! Eu não teu pai, nem tu és meu filho. Tu és um desconhecido. E como desconhecido não tens direito nenhum de estares nesta casa. NENHUM! FORA! Nunca mais quero olhar para essa cara de desenvergonhado! Duante anos, eu pensei… Meu Deus, eu pensei…
– Epaminondas, ele é seu filho, calma, as coisas podem se resolver de uma boa maneira… - Interviu Catarina, tentando amenizar o conflito. De nada serviu.
– Não se meta, Catarina! E tu, FORA DAQUI!
Ferdinado sentia-se completamente perdido. Lavado em lágrimas, que eram só um pequeno sintoma de tudo que estava a sentir, virou-se para o pai, antes de sair disparado pela porta e disse. – Eu vou sim. Porque o Senhor não merece que lhe chame de pai. Um pai, por mais que esteja magoado com o próprio filho, nunca que o renegaria e o botaria para fora de casa, principalmente quando passou anos sem o ver. Um Pai não dá o que é suposto um pai dar a um filho, para anos mais tarde, lhe pedir coisas em troca. Talvez um dia me dê razão, mas o talvez também vale para o meu perdão para tudo que deitou para cá para fora agora, nesta sala. É sempre mais fácil reagir a quente, do que ouvir e tentar entender. Eu sempre o fiz consigo, Coronel Epaminondas. Mesmo não concordando com muita coisa que fez e disse, sempre tive do seu lado e sempre o tentei compreender. Sem pedir nada em troca, nem mesmo o que lhe estava dando. O senhor alguma vez tentou sequer fazer isso comigo? A sua paciência e compreensão para comigo morreu juntamente com a minha mãe. E isso eu sempre suportei. Só nunca pensei que um dia chegasse a este ponto. Adeus, Senhor meu ex-pai.
Dizendo isto, partiu. Sem rumo, sem nada. Só dor no coração, e incertezas, tantas incertezas.
O Coronel Epaminondas, esse, simplesmente se virou, e foi até ao seu escritório, onde se fechou. Aí permitiu-se chorar, permitiu-se sentir tudo o que nunca poderia dizer ou demonstrar, pelo simples facto que o seu orgulho era estupidamente grande.
Catarina, essa estava em choque na sala, com toda aquela cena, e também ela chorava sem parar.
Naquele dia, não haveriam derrotados nem vencedores. Só a tristeza e a mágoa imperavam, aliados à incerteza do que o amanhã proporcionaria. A única certeza era de que, uma vez que as palavras eram proferidas, jamais poderiam ser retiradas.
Enquanto isso, na Vila de Santa Fé, Gina não tentava sequer disfarçar o seu tédio. Juliana tentou falar o menos possível, mas a ruiva estava com um mau-humor tal, que só da professora abrir a boca para falar, Gina abria a boca para bocejar.
– E onde vais comprar o teu livro? – Perguntava Juliana, tentado abordar um assunto que lhe interessasse.
– Bom, depois de saber todos os nomes de cachorros que já tiveste até hoje, e dos piriquitos, e de Zoo inteiro, além de já saber todos os gostos pessoais, acho que vou desistir de comprar o livro, e me tornar a autora… vou escrever algo como “O que NÃO fazer quando acabou de conhecer alguém”.
Juliana, que até agora estava sempre com um sorriso na cara, tentando agradar Gina, fechou o semblante – Não é preciso ser grossa, está bem? Porquê estás com esse mau-humor todo, e porquê toda essa má vontade em me conhecer? Porquê não aceitas que podemos ser amigas?
– Bom, talvez porque não acredite na amizade. Isso é uma ilusão, cara Professora Juliana. Eu já fui assim, ingénua, bobinha, e me deixei levar, fui amiga, fui companheira, sempre bem disposta, mas sem nunca deixar de ser quem sou. Sabes o que recebi em troca? Um valente coice! E não foi de um cavalo não, foi de um burro mesmo!
Juliana estava completamente perdida, e começava a pensar que a ruiva não jogava com o baralho todo, ou então estava simplesmente debochando com a cara dela. Mas aí, o seu bom coração falou mais alto, e lembrou-se que não era bom julgar as pessoas, muito menos sem conhecê-las. Lembrou-se que deveria sim ficar contente de ela ter começado, finalmente a falar, e resolveu aproveitar esse facto, para, precisamente, tentar entendê-la melhor. Não sabia porquê, mas admirava a bravura, a sinceridade e a autenticidade da mulher que estava ao seu lado. Poderia não saber porquê, mas tinha a certeza que queria ser sua amiga.
– Gina, sabes quantas pessoas existem no mundo?
– Humm…mais de 6 bilhões, pelo menos. Porquê? Agora vamos passar dos piriquitos para a densidade populacional?
– Hum, muito engraçada. O que eu quero dizer é…achas que somos todos iguais? Existem tantas pessoas no mundo, e tu parece avaliar todas da mesma forma. O facto de alguém já te ter desiludido, não quer dizer que toda a gente te vai desiludir. É o tal benefício da dúvida que te falei mais cedo, sabes? E como é bom ter amigos…
Juliana continuava a falar de forma optimista sobre tudo, e principalmente, recitava as vantagens que uma amizade trás à vida de alguém, o que estava, obviamente, aborrecendo a ruiva de morte, quando de repente, Juliana percebeu que Gina estava congelada ao seu lado olhando para alguém.
Do outro lado, estava um jovem alto, de olhos de um profundo azul e dreads como cabelo. Era belo, a professora tinha que admitir, mas parecia perdido, e poderia até jurar que tinha estado a chorar.
Ferdinando, que caminhava perdido pela Vila, pensando em tudo que acabara de acontecer, paralisou igualmente ao ver aquela que hoje era uma bela mulher, e outrora fora sua amiga de infância. Como ela estava…diferente, sem sequer ter mudado assim tanto. Aí, quando o choque de a rever o permitiu voltar a si, reparou na moça que estava com ela. Era estonteantemente bela. E aí pensou que, talvez, o seu dia estivesse a melhorar, e, talvez, uma dia que começou pessimamente mal, pudesse acabar de uma forma inesperadamente boa.


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