No sábado seguinte, último dia das consultas grátis do chamado Don Severo, Desirée resolveu entrar na fila novamente. No entanto, agora ela usava uma bonitinha boina roxa, óculos escuros e uma jaqueta mais grossa, que fechada conseguia esconder até o pescoço dela. A intenção era chegar disfarçada ao local e criar uma situação que desmascarasse o tal vidente. Abusar da boa fé das pessoas com certeza era pior do que se intrometer na vida delas. A garota estava disposta a mostrar a verdade e fazer justiça. Como? Bem, usando um novo truquezinho que ela descobriu.
        - E continue confiando em si mesmo. Você encontrará um novo amor em breve - diz Don Severo para a pessoa na frente de Desirée na fila.
        - Obrigada! Muito obrigada, Don Severo! O senhor parece ser bom mesmo!
        - Se quiser uma consulta mais detalhada....pegue meu cartão. Claro que terei que cobrar um certo preço para isso
        - É claro. Imagino.
        - Aliás, se puder me recomendar para mais pessoas...
        - Claro, claro. Com certeza.
        A pessoa vai embora feliz e o vidente sorri discretamente. A próxima da fila? Uma garota de jaqueta e óculos escuros
        - Muito boa tarde..err...você não parece estar muito bem, não é?
        - Pelo contrário. Estou me sentindo muito bem - responde Desirée, tentando ao máximo mudar a voz e satisfeita pelo fato do farsante não ter percebido seu disfarce.
        - Hmm? É que normalmente as pessoas não utilizam muitas roupas grossas no calor
        - Mas como você pode dizer que não estou bem só porque não estou usando roupas leves no calor? Não acha que eu posso me sentir bem assim mesmo?
        - Certamente...mas...o que exatamente você gostaria de saber de minha pessoa...talvez esteja interessada em saber quem será o amor de sua vida
        - Na verdade, não
        - Ou então o seu próximo emprego?
        - Também não
        - Então...no que posso ajudá-la?
        - Se você é mesmo um vidente tão bom, deveria saber o que realmente estou querendo, não acha?
        - Hmm - geme Don Severo, já criando uma certa antipatia com a pessoa à sua frente - Parece estar querendo me desafiar ou algo assim? Está duvidando de mim?
        - Ninguém nunca duvidou de você?
        - Até agora...nunca recebi nenhuma reclamação de qualquer pessoa que tenha se consultado comigo
        - Isso é estranho...mesmo você sendo uma farsa
        - Ei, olha aqui, você já está começando a faltar com respeito! Se não acredita em mim, então vá embora. Não há necessidade de atrasar a fila com tantas pessoas querendo uma consulta séria
        - Consulta séria, é? Acho que elas não gostariam de se consultar com você se soubessem da verdade
        - Do que está falando?
        - De que você é uma fraude! - responde a garota, em tom bem audível.
        Don Severo fica nervoso! Aquela ousadia já estava indo longe demais!
        - Escuta aqui, mocinha! Você já está indo longe demais! Saia daqui agora se não quiser que eu chame o segurança e...
        - Se acalme - ela diz com toda a calma do mundo - Não diria essas coisas se não tivesse como provar que você é um farsante!
        Don Severo muda sua expressão calma para um sorriso mais sarcástico.
        - Hahuahua - ele começa a rir - Ouviram isso, queridos amigos? - ele continua, se dirigindo para as pessoas da fila - Essa menina ousa desafiar o grande Don Severo! Você tem ideia de tudo o que já passei? De todas as experiências que tive com o mundo místico? Com quem você acha que está falando?
        - É o que você diz, mas...por que não mostra o que pode fazer?
        - É claro...posso provar isso muito facilmente!
        - Sério?
        O vidente tira seu tarô e o embaralha.
        - Vou colocar cinco cartas viradas para baixo. Posso dizer imediatamente quais são essas cartas!
        Desirée não diz nada. Ele apenas coloca as cinco cartas e recita os nomes delas, na ordem correta
        - Touro, Rainha, Torre, Louco e Sombra
        Eram exatamente os mesmos nomes.
        - Ainda acha que sou um farsante?
        - É claro
        - O que?
        Nesse momento, todas as pessoas da fila começaram a se aglomerar diante da mesa dos dois. Don Severo parecia mais nervoso ainda. "Quem é essa menina? Ela não parece ser comum...normalmente eu consigo falar de forma convincente e usando o meu truque das cartas convenço as pessoas dos meus poderes...mas se ela conhece o truque...vou ter que pensar em outra coisa"
        - Imagino - continua Don Severo - Deve estar pensando que sou um desses videntes que lêem pensamentos ou entortam colheres...ouça, as coisas são mais complicadas do que isso, minha querida. Tudo que eu posso fazer é ter uma consciência cósmica do que cada pessoa sente e indicar o melhor caminho para o futuro delas. Não pode me cobrar absurdos. Nenhum ser humano pode fazer isso
        "Está me enrolando para fazer com que eu seja a vilã da história, não é? Eu já previa isso...", pensa Desirée.
        - Perfeitamente! - continua a garota - Você está certo, existem coisas muito absurdas consideradas paranormais. Mas digo que mesmo os seus poucos poderes não passam de truques baratos!
        - O que?
        - Como eu disse há pouco...posso facilmente provar que você é uma farsa!
        A garota tira um novo baralho do bolso e o coloca em cima da mesa. Ela tira cinco cartas e as coloca viradas para baixo na frente do vidente.
        - Vamos fazer esse jogo de novo...só que agora com um baralho comum. Quero que você diga quais cartas estão viradas para baixo, do mesmo jeito que acabou de fazer
        "O que ela está tramando? Ora...isso não passa de idiotice!", pensa o vigarista, "É só olhar bem para o verso das cartas...elas devem ter uma forma de marcação. Todo mundo sabe que truques de cartas são assim!". Mas ele olha para o verso, olha, olha e não consegue reconhecer nenhuma marcação padrão. "Maldita! Não é possível! Ela deve ter usado um novo tipo de marcação...normalmente se usam cartas com versos desenhados com o número da carta escondido no meio da ilustração....mas esse baralho parece normal. Tsc. Não posso determinar as cartas desse jeito"
        - Isso é um sacrilégio! - ele responde enfim
        - O que?    
        - Meus poderes não são unicamente meus! Estou intimamente ligado ao mundo místico! Não posso ter nenhuma conexão com um baralho impuro como o seu! Saia daqui agora, sua semeadora de intrigas!
        - Entendo...então não pode adivinhar as cartas...
        - É claro que não?
        - Da esquerda para a direita: ás de ouros, três de paus, cinco de espadas, rainha de ouros e sete de copas
        Don Severo vira todas as cartas e fica surpreso com a revelação correta da garota.    
        - Impossível! Que tipo de marcação você usou? - ele diz sem pensar
        - Marcação? Ora, ora...então é assim que você acha que se adivinha as cartas?    
        Ele fica nervoso. As pessoas já começam a olhá-lo com desconfiança
        - Ora...é claro...você não parece ser vidente...que outro meio usaria para adivinhar as cartas, senão trapaceando? - ele se justifica, tentando disfarçar.
        Desirée sorri discretamente. Ele já parecia ter mordido a isca.
        - Tudo bem...então você não usa truques, não é?
        - É claro que não!
        - Então que tal fazer mais um jogo?
        - O que você quiser! - diz o vidente, já totalmente nervoso com tudo.
        - Aqui tem uma sacola preta. Coloque uma das cartas desse seu baralho de tarô aí dentro, sem olhar. Se você conseguir adivinhar, fica provado que é um vidente de verdade
        - Inútil. É só repetir o mesmo que eu fiz
        - Sim. É isso
        "Heh! Idiota! É você quem vai passar vergonha aqui!"
        - Então, tudo bem. Aqui está o meu baralho e...
        - Espere
        - O que foi?
        - Peça para alguém da platéia embaralhar
        - Hã?
        - Ei, você! - diz Desirée- Por favor, embaralhe todas as cartas, tire uma e coloque dentro da sacola. Mas faça isso sem que nenhum de nós veja
        "O que? Não! Eu esperava pelo menos poder ver o verso da carta, mas se fizer assim..."
        A pessoa embaralha e coloca uma carta qualquer dentro da sacola.
        - E então, Don Severo? Qual é a carta?    
        Don já estava muito nervoso...mas pelo menos se lembra de ter visto um certo vermelho na hora que a pessoa colocou a carta na sacola. Alguma coisa em sua mente dizia que era a carta da Rosa. Sim. Era isso. Ele sentia que tinha realmente um lado vidente. Poderia sair livre dessa. Sim, poderia sim. Resolveu confiar em sua intuição
        - Posso ver claramente...é a Rosa!
        - A Rosa, é? Eu acho que não
        - É claro que sim! Só pode!
        - Eu digo que é a Sereia
        - Tola! Impossível
        Mas, ao retirar a carta, Desirée mostra a carta da Sereia em suas mãos.
        - Ué? Você não disse que estava misticamente ligado ao seu baralho? - comenta a garota cinicamente.
        Nisso, a multidão já começa a ficar nervosa
        - Ei, então era tudo um truque?
        - Esse cara é uma farsa!
        - E-Esperem! - grita o já desesperado profeta - O baralho foi manuseado por uma pessoa totalmente alheia! O misticismo se perde! Vocês não deviam brincar com essas coisas!
        - Você que não deveria brincar com a boa fé das pessoas, Don Severo! - diz Desirée, enquanto ajeitava os óculos escuros - Caros amigos...por que vocês não dão uma olhada no verso das cartas do tarô do nosso querido Don
        Desirée coloca uma carta virada para baixo e mostra uma coisa interessante.
        - Quando você olha para o verso, aparentemente temos uma ilustração toda bem trabalhada, não é? Mas...se vocês olharem com atenção...tem um número oito bem aqui do lado...se vocês olharem essa outra, tem um número sete...e assim por diante. É um truque muito comum usado por mágicos. Ele mesmo fez esse baralho. Mas quando eu pedi para que ele adivinhasse a carta dentro da sacola, ele não teria como descobrir sem olhar o verso da carta. Claro...que se eu tivesse deixado ele mesmo colocar a carta ele teria adivinhado. Por isso, pedi para um terceiro colocar. Isso prova que você é uma fraude, sr. Severo
        - Grrrrr...quem é você? Afinal, o que você quer?
        - Eu só quero que você admita a verdade! Um vidente de verdade não precisa de truques, não acha?
        Nisso, todas as pessoas em volta começam a vaiar e julgar Don Severo um farsante
        - Quero meu dinheiro de volta, seu safado!
        - Dinheiro? Mas essas consultas são de graça e..
        - Então vamos chamar o segurança
        - Polícia! - grita o outro
        Desirée aproveita a confusão para sair dali. Claro que a imprensa toda apareceria e ela não queria se meter em encrenca. Não demorou muito para as notícias saírem nos jornais e aparecer toda a verdade sobre os truques baixos de Don Severo. Normalmente, um vidente tende a ser mais discreto, mas aqueles que abusam demais da sorte acabam tendo seus truques desmascarados. Esse foi o maior erro dele.
        - Não acredito! Aquele Don Severo era um farsante mesmo! Meu, que mico! - diz Juliana, já arrependida de ter dado tanta corda para ele.
        - Eu não te falei? - comenta Desirée, com um olhar cínico.
        - Ai, nem vem! Aturar sua lição de moral, ninguém merece, né?
        Desirée ri. Na verdade, tudo que ela fez foi usar alguns pequenos truques que ela descobriu usando o próprio livro. O primeiro deles é que, se as páginas do livro nunca acabam, mesmo quando são arrancadas, então não há o menor problema em arrancar as páginas...e, o melhor de tudo, é que uma página do livro já é o suficiente para funcionar. Isso mesmo. Desde que haja espaço para ter um texto escrito, as páginas do livro funcionam como se fosse o próprio livro. Em segundo lugar, o poder dele funciona, mesmo que essa página esteja dobrada. Como a imagem que surge independe do espaço, dobrar a página (não importa em quantos pedaços) ainda permite que se use o livro. E o texto é escrito "magicamente" mesmo com o papel dobrado (embora o dono só possa ler depois). Em resumo, é possível, sim, usar o Livro dos Segredos de forma discreta. Desirée apenas levou algumas páginas dobradas do livro dentro do bolso e as tirou discretamente debaixo da mesa. Assim, ela conseguia ver quais eram as cartas. Isso seria fundamental para deixar o falso vidente ainda mais nervoso. Nada melhor do que uma mágica de verdade para assustar um mago de mentira, não é?
        Mesmo assim, no caminho de volta, Desirée reflete um pouco sobre seu ato. Usar o livro seria realmente necessário para desmascarar o vigarista? Bem, talvez ela não tivesse a mesma confiança se tivesse ido de mãos abanando, mas também reconhece que usar os poderes para humilhar Don Severo não foi lá muito correto. Desirée se lembra que sentiu um prazer imenso em ver a máscara do golpista caindo. Ela não era esse tipo de pessoa, era? Ela começa a sentir um certo medo...mas tenta esquecer. "Acho que já tá bom, não é? Já chega..vou parar de usar esse livro...é melhor deixar as coisas rolarem. É. É isso. Não vou mais usar...não vou", ela pensa, guardando o livro no esconderijo de sempre e voltando para seu dever de casa. Será mesmo?