A Base escrita por Analu


Capítulo 2
Oito Anos de Cicatrizes


Notas iniciais do capítulo

“Temos de ver todas as cicatrizes como algo belo. Combinado? Este vai ser o nosso segredo (…) Uma cicatriz significa: Eu sobrevivi. ” - Caio F. Abreu.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/573368/chapter/2

2 anos se passaram;

4 anos se passaram;

6 anos se passaram;

8 anos se passaram.


E ela ainda estava lá. O mesmo salão branco de entrada também permanecia lá. Os cabelos já não eram compridos e soltos, o olhar feliz e contagioso. No lugar da menina esperançosa havia agora uma garota de olhar desconfiado, resultado do desafio que fora passar ano após ano no desconhecido, onde haviam largado-a. O cabelo agora era curto e ondulado, com pontas azuis claras. A pele não era mais tão bronzeada por conta das horas na piscina em pleno verão. O corpo estava marcado com curvas de sua idade, mas também por cicatrizes.

Cicatrizes que contavam histórias de lutas, reflexos rápidos, treinamentos, armas, experiências de quase morte. Cada uma delas ajudavam a garota a se lembrar, "eu sobrevivi". Ajudavam-na a lembrar-se de que se havia chegado até ali, seria capaz de continuar. Algumas estavam escondidas pelas roupas, outras à mostra, como algumas nas mãos e braços e outra bastante chamativa que escapava um pouco da proteção da gola da camiseta preta com a escrita vermelha "in music we trust". Uma das únicas certezas de Alie, era que ao menos as cicatrizes nunca a abandonariam.

Alicia encarou os guardas perto da porta por um instante, depois se virou e caminhou em direção ao balcão de informações, localizado alguns passos a frente da entrada. Cumprimentou a mulher responsável sentada atrás do balcão e entregou-lhe uma pasta preta, sem delongas. O lugar totalmente branco a repudiava.

– Avise Toniel que entreguei a pasta, por favor. - Disse, já se virando para o fundo do salão, na direção oposta da porta de entrada.

– Direi. Obrigada pelo esforço.

A garota sorriu ao ouvir o agradecimento da mulher. Era um hábito muito comum naquele lugar, mas que mesmo depois de anos, não conseguia adquirir. "Obrigado pelo seu esforço", era o bom dia, boa tarde, boa noite, olá, adeus da Base. Para ela, era como um vampiro tentando pronunciar a palavra Deus. Ficava engasgado na garganta, e se recusava a sair.

O salto da mulher emitia um ruído irritante sobre as lajotas brancas. Mesmo sem olhar, Alie sabia que ela se dirigiria para uma porta ao lado do balcão com a pasta preta em mãos, e seu acesso seria permitido pela identificação automática. Como a identificação automática funcionava, ela nunca soube. Deixou o trajeto da mulher para trás junto com o eco irritante de seu salto enquanto retomava seu caminho.

Entrou na porta para qual estava se dirigindo e se deparou com um enorme corredor claro e cheio de portas de metal de vários tamanhos e de estruturas diferentes. Conhecia o que havia atrás de cada uma, sem precisar passar o olho pela placa de identificação das mesmas. Foi até o fim dele e e empurrou as pesadas portas que davam para o refeitório.

O lugar era amplo, com mesas diversas misturadas, tamanhos de todos os tipos, desde dois até oito lugares e a maioria ocupada por pessoas conversando e comendo. Em um canto havia um bar para lanches e no outro havia um bufê enorme, que no momento estava abastecido para o almoço. Seu interesse não era a comida - havia almoçado mais cedo - por melhor que esta fosse. Procurou uma pequena figura pálida e ruiva e a encontrou em uma mesa, sozinha, cutucando a comida. Alicia ergueu uma das sobrancelhas e foi até ela.

– Como pretende completar o treinamento sem se alimentar direito? - A garota ruiva deu um pulo e deixou o garfo cair, enquanto a mais velha se sentava.

– Ah, dá um tempo. Só estou pensando. Como anda o trabalho com Toniel? - Ela se recuperou e levou o garfo a boca.

Alicia estava fazendo algumas trabalhos para Toniel enquanto não aparecia a oportunidade de nenhuma missão, para se manter ocupada. No final, tudo que realmente queria do "trabalho temporário" era reunir informações que desconhecia sobre a Base, que no caso, eram poucas.

– Nada de mais. Na maior parte do tempo só levo papel para lá e para cá, mas consigo tirar algumas informações espiando toda aquela papelada enjoativa - Deu uma piscadela. - E você, Ceci, como está seu tornozelo? Vamos ter que pegar leve por uns dias.

– Está um pouco melhor. A enfermeira passou algo que já está colocando tudo em ordem. Ela comentou que nós, da Agência, somos masoquistas, mas no final disse que em poucos dias vou estar 100% novamente. - Cecilia havia aterrissado de forma errada no último treinamento, causando o deslocamento de seu tornozelo.

– Esses operários contratados nem imaginam o que se passa aqui dentro. Mas quanto a sua boa notícia, fico feliz em ouvir isso. - Alie pensou em como os medicamentos da Base eram avançados, e quantas vezes já haviam ajudado a curar seus próprios ferimentos.

– Soube? Haverá Acolhimento esta tarde. Estão dizendo que a maioria são crianças enviadas por suas próprias famílias por causa de negócios envolvidos com o governo. Também dizem que essas crianças já têm uma boa noção sobre a Base.

– É mesmo? Como sabe dessas coisas, Cecilia?

– Algumas garotas da minha classe estavam sussurrando. A treinadora de uma delas é da Central de Conhecimento - A garota deu de ombros, ao ver o olhar acusador de Alie. - Se serve de defesa, eu estava apenas colocando seus ensinamentos de "recolhimento de informações" em prática.

– Alicia riu da desculpa da aprendiz e pensou no quanto Cecilia se daria bem na Inteligência Interna da Conhecimento. Talvez, se o rumo dos planos das duas mudasse no futuro.

– Bom, termine de comer e vá conferir sua perna na enfermaria mais uma vez. Vou procurar saber mais sobre isso - Piscou para a menina, se levantou e se retirou do refeitório.

No elevador, ouviu alguns "obrigado pelo seu esforço", mas se contentou em encarar os desenhos no mármore polido do chão do elevador. "CIENTÍFICA - TECNOLOGIA" dizia a placa ao lado da porta de vidro gigante pela qual Alie entrou. "Agência, Central" foram palavras suficientes para que os guardas posicionados de cada lado da porta a deixassem entrar por puro protocolo, pois já eram conhecidos antigos.

Foi até o sétimo computador na segunda fileira e puxou uma cadeira desocupada de uma mesa próxima para se sentar ao lado de um garoto loiro, que mesmo notando a presença de Alie, não tirou os olhos da tela, apenas gesticulou. - Está vendo? Eu e mais um pessoal estamos trabalhando nisso. É uma maquina que pode selecionar quais vegetais que chegam dos lotes estão bons para consumo ou não, resumindo. Iria facilitar um pouco o trabalho do pessoal da cozinha, não acha?

– Acho que seria ótimo como agradecimento pela comida extraordinária que vem de lá. - Alie se lembrou da aprendiz falando da enfermeira mais cedo. - Mudando de assunto, pelo jeito a nova pomada que a Medicina fabricou deu certo, Max. Ceci comentou que seu machucado estava sarando mais rapidamente.

Dessa vez, Max se virou e sorriu. Era bom saber que algumas das invenções da Científica ajudavam realmente com os problemas que as pessoas adquiriam na Base. Ele trabalhava tanto na Medicina quanto na Tecnologia, e houve grande influência sua na criação da tal pomada. Max odiava a base tanto quanto Alie. Um dia veriam o fim daquele terrível lugar. Por enquanto, apenas tentava ajudar aqueles "agredidos" por ela,.

– Está falando sério? É ótimo ouvir isso, mesmo que, me desculpe pela sinceridade, eu já sabia que funcionaria perfeitamente - Alie revirou os olhos, mas Max a ignorou e continuou. - Mas o que te traz aqui, garota do cabelo azul?

– Ceci me contou que estão dizendo que haverá um Acolhimento hoje à tarde. Soube disso?

– Ouvi rumores aqui na Científica também. Você vai?

– Vou. Vim pedir se você iria comigo.

Max concordou com a cabeça.

– É claro. Descubra o horário e me avise. Agora, se me dá licença... - Max beijou a bochecha de Alie. - Preciso voltar ao trabalho. Há muitos tomates que ainda estão esperando para serem selecionados. Ou, pelo menos, é isso que meu expediente diz.

O garoto girou a cadeira e voltou a atenção para a tela. Alie, com uma risada, devolveu a cadeira que havia furtado temporariamente a sua respectiva mesa. Imaginou que o dono dela deveria estar em seu horário de almoço.

– Edu, Rob. Até mais. - Não pôde deixar de cumprimentar os guardas na porta que levava da recepção para a sala enorme e cheia de computadores e telas que nunca soube, mas adoraria aprender a mexer, antes de sair. Os dois balançaram a cabeça em resposta e Alie saiu, desejando que não houvesse muitas pessoas no elevador atrasando sua chegada ao quarto. Dormira tarde, acordara cedo e estava morrendo de sono.

~*~

Deitada na cama, encarou a parede repleta de fotos. Algumas eram recentes, outras eram de quando havia recém chegado na Base. As fotos refletia seu crescimento dentro daquele lugar. O dia que mudou o cabelo, a volta de sua primeira missão, o dia que acolheu Ceci como sua aprendiz, dois anos atrás. A maioria das fotos eram dela e de Max, durante o passar dos anos. A foto que mais gostava era uma em seu aniversário de 14 anos, em que estavam de mãos dadas, pouco depois de seu primeiro beijo. Alie sorriu com a lembrança. Max chegou dois anos depois dela, e depois de descobrirem que seus ideais no lugar eram os mesmos, se tornaram inseparáveis.

O sorriso se desfez quando seu olhar foi puxado para uma foto do canto. Uma versão mais nova de Alie abraçava uma mulher alta, de cabelos vermelhos tingidos e pele muito, muito clara. Camille. A mulher que a ensinara a sobreviver naquele lugar, que a ensinara que ninguém merecia viver lá dentro, trabalhando por um "bem maior" nunca devidamente explicado. A mulher que ensinou a odiar tudo desde o começo. A mulher que foi para uma missão há quase cinco anos atrás, e nunca mais voltou. Sentia muita saudade de Camille, mas também se sentia muito grata por ter sido ela a sua tutora, e mais ninguém.

Quando chegou à Base, depois de sustentar o olhar de Diego e encarar a enorme recepção, passou semanas isolada aprendendo inglês e sobre a Base. Lhe ensinaram que o lugar pertencia ao governo, e criava todas essas crianças e adolescentes por um bem maior. Lhe ensinaram sobre as três Áreas, e seus Ramos.

A primeira Área era a Científica e tinha quatro Ramos. A Tecnologia, que criava máquinas, projetos em geral para o avanço da Base. A Medicina, que trabalhava com curas, remédios e tratamentos. A Mecânica, que colocava em prática a construção das máquinas e projetos elaborados pela Tecnologia, além de seus próprios trabalhos, como concertos por toda a Base. Por último, a Central. É o único Ramo presente em todas as Áreas. Para trabalhar nesse Ramo, é necessário ter uma boa contribuição com todos os outros Ramos da sua Área. A Central contém os melhores trabalhadores de cada Área, e controla os outros Ramos. Na Científica, a Central supervisiona e aprova cada projeto, além de elaborar as invenções de maiores recursos.

A segunda Área era o Conhecimento. O primeiro de seus Ramos era a Inteligência Externa, que cuidava de assuntos com o mundo exterior, como contato com o governo, notícias vindas de foram, contratação de operários e solicitações de mantimentos. Já a Inteligência Interna cuidava de negócios de dentro da Base como os arquivos de cada membro, a organização e transferência de documentos, e pedidos por utensílios da Científica e Agência. A Instrução recebia esse nome pois seus trabalhadores eram aqueles que orientavam os recém-chegados. Ensinavam inglês para os estrangeiros, além de como era o funcionamento da Base, e lhes davam uma pequena preparação. Quando não estavam ensinando novatos, faziam trabalhos menores para o resto dos Ramos. A Central da Científica consistia em assinar maiores contratos, controlar importações e exportações e estabelecer segurança sobre todos os arquivos. Era lá que Toniel estava.

A última Área era a Agência. Na Agência, havia um Ramo a menos, já que lá as coisas funcionavam de um modo um pouco diferente. Lá, havia o perigo. A Agência consistia em concluir missões para a Base, mais especificamente para o governo. Era a única Área onde era permitida a saída de membros, mas mesmo assim, nunca lhes eram concedida a informação de para onde iriam. O primeiro Ramo, Treinamento, como o nome já dizia, era especializado em treiná-los. As pessoas desse Ramo passavam anos aprendendo a lidar com facas, todos os tipos de armas, planos de fuga e táticas de ataque e defesa. Participavam apenas de missões rápidas e simples, como escoltar algo ou alguém em território suspeito, ou simulações. O segundo Ramo era o Missões, lá todo o treinamento era posto em prática. As missões eram mais perigosas e duradouras, e traziam consigo ferimentos, dores, e mais tarde cicatrizes por toda a pele, tudo em nome do governo. Espiões, soldados especiais, o que o governo solicitasse.

A Central. As missões mais perigosas, com alto risco se encaixavam à Central da Agência. Fora em uma dessas missões que Camille desaparecera e nunca mais voltara, deixando seu posto na Central para Alie. Mesmo com o risco até da morte, como já acontecera anteriormente, a garota não via lugar melhor para se preparar para ir contra a Base. Não era a toa que a Agência era a Área com menos membros.

Alie se virou na cama e deixou que, depois alguns anos, uma lágrima escorresse por sua bochecha. A Base roubara parte de sua infância e sua adolescência inteira. Fora abandonada em uma prisão por aqueles que mais amava e confiava. Tinha um corpo repleto de cicatrizes e um olhar gelado que havia adquirido sem que percebesse. Se tornara uma pessoa que nunca imaginava sequer conhecer. O que restara de fora daquele lugar eram apenas lembranças que se esforçava para recordar, e que mal pareciam reais.

Quando tinha a recém caído no sono, uma batida na porta a acordou, e depois mais duas, impacientes. Alie saltou da cama, agarrou um elástico na mesa e abriu a porta. Max.

– O Acolhimento. No Saguão Principal. Já começou. Acabaram de me avisar, no caminho para cá. Ia pedir se sabia do horário, mas pelo jeito estamos atrasados.

Por quanto esteve no quarto? Alicia olhou de relance para o relógio, que marcava 15:12. Fechou a porta e correu para o elevador mais próximo enquanto amarrava seu cabelo, com Max em seus calcanhares. Ele ofegava, o cabelo loiro nos olhos e a corrente preta com uma plaquinha prata que ela havia dado para ele em seu último aniversário escapava para fora da camiseta azul clara. Alie lhe dera pois lembrava a ela os olhos de Max. Negros com pingos mais claros, aqui e ali.

– Vocês, da Científica, não têm nenhum preparo físico, não é? - Riu das próprias palavras.

Max levantou a cabeça para lhe lançar um olhar gélido por uns instantes, mas depois abaixou a cabeça novamente para retomar o ar.

~*~

O Saguão Principal era um dos maiores lugares da Base, perdendo talvez para o refeitório. Tinha um pequeno palco que se erguia uns 15 cm do chão em um lado, e várias mesinhas com sofás ao seu redor espalhados, estantes de livros, pebolim, TV's. Um bom lugar para passar o tempo, às vezes usado para reuniões, e sempre para o Acolhimento.

Na maioria das vezes era calmo e sem muita agitação, porém, naquele dia, era exatamente o contrário. Toniel estava no centro do palco, e apresentava as crianças de uma fila ao lado para o pequeno público ao redor. Max e Alie se encostaram na parede mais próxima e assistiram.

– Akemi, Japão, 9 anos. Enviada pelos pais, donos de uma empresa siderúrgica de renome. - A garota era baixinha para a idade, tinha olhos negros e puxados e cabelos do mesmo tom que escorriam pelas costas, sedosos. Uma mulher que Alie sabia ser da Científica, talvez Mecânica, se adiantou.

Mais algumas crianças passaram. Ceci tinha razão, todas eram enviadas pelos pais, e pareciam ser famílias de influência.

Um garoto mais alto avançou. Tinha cabelos castanhos desgrenhados, com cachos que circulavam seu pescoço. Os olhos eram cor de avelã, e seriam lindos se não carregassem um olhar assustado.

– E por último, Daniel, 12 anos. Órfão, morador de rua. Foi acolhido depois de ser visto roubando uma maçã. - Toniel de uma risada curta e um tapinha no braço do garoto.

Ninguém se manifestou, e a maioria já se retirava. Os olhos do garoto refletiram sua dor, que Alie sabia interpretar, a dor da rejeição. Um ódio cresceu no peito da garota. Um ódio por aquelas pessoas, e maior ainda pela Base. Crianças com famílias ricas e poderosas eram aceitas, já aqueles que mais precisavam ser acolhidos eram ignorados, sujeitos a olhares rancorosos. Isso era a Base. Uma injustiça sem ponto final. Um sofrimento que escolhe a dedo suas vítimas. Um sistema mascarado pelo interesse, que um dia, seria destruído pelas garras que ficavam cada vez maior dentro da garota, sedentas de vingança.

– Eu acolho ele.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado :3



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Base" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.