Inconfidentes escrita por Leticia Cavaliera


Capítulo 14
Cicatrizes visíveis e invisíveis...


Notas iniciais do capítulo

Olá, você!



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Jonathan chegou à escola atrasado, de novo. Acabou dormindo na casa de Heloísa e saiu cedo para ir em casa se arrumar, mas a demora foi inevitável ao ter de parar para procurar suas coisas. Por ser seu terceiro atraso no mês, foi direcionado à direção. Bufou ao se jogar na cadeira, do lado de pelo menos mais quinze alunos.
Esperava que Hello estivesse melhor, ela até aparentava certa tranquilidade quando saiu de lá. Não sabia que ainda se importava com a ex depois de tanto tempo distantes, devia ser uma daquelas ligações cheias de boas memórias que às vezes ficavam para sempre.
Depois de quase meia hora, o que o atrasou mais, Jonathan foi chamado. O garoto nunca tinha visto lógica em fazer os atrasados se atrasarem mais, mais esperto seria se anotassem os nomes e chamassem no intervalo ou na hora sa saída.
— Bom dia, diretora. — Cumprimentou ao se sentar na cadeira acolchoada.
— Boa noite, Jonathan. — Jonny sorriu, olhando para baixo, se levantasse o olhar ia focar na cicatriz que ficava no rosto da mulher. — Terceiro atraso e ainda é a segunda semana do mês. — Eliana suspirou. — Vou ter se ligar pro seu pai.
— Desculpe, diretora, não era minha intenção me atrasar.
— Você sabe que toda vez que vem aqui fala a mesma coisa, não sabe?
— Sei, sim. — O menino riu, olhando o céu pela janela. — Meu pai tá viajando pra capital, não adianta ligar que ele não vai atender. Acho que só vai chegar amanhã.
— Você está sozinho em casa? — A diretora perguntou, aparentando preocupação.
— Tenho dezenove anos, não é crime. — Estava tão calmo, sua voz não mostrou cinismo ou gracinhas durante toda a conversa, franziu o cenho para si mesmo, mas estava tão em paz que não conseguiria agir de outra forma.
— Vou tentar ligar pra ele mesmo assim, me passe o número, por favor. — O garoto ditou o contato e ficou aguardando enquanto ela tentava, sem sucesso, falar com seu pai. — Hm, bem, então só hoje lhe deixarei entrar, mas se acontecer de novo você vai pra casa.
O menino apenas assentiu, ainda olhando pela janela, o céu estava de um azul bonito, claro e com poucas nuvens. Se levantou, pronto para ir embora desde que entrou.
— Jonathan, não quer reconsiderar ir para o convênio A? — Escutou ela estalar a língua. — Suas notas são de turma específica, você teria um melhor rendimento lá.
O menino começou a negar com a cabeça, mas lembrou que Sol estudava nessa turma e, se quisesse ter alguma chance com ela, de ganhar a aposta, teria de passar mais tempo com a menina. Suspirou, não queria ir para a turma dos nerds, fazia três anos que recusava as ofertas da diretora e sua vontade de ficar entre os favoritinhos dos professores não havia aumentando em nada.
— Posso ficar lá só por um mês? — Perguntou. — Se eu não gostar volto pra minha turma normal.
— Claro. — Diretora respondeu, a voz num tom de surpresa e alegria. — Pode ir direto pra lá hoje, vou pedir para avisarem os professores.
Eliana havia sido amiga da mãe de Jonathan antes de tudo, tinham estudado juntas ou algo assim. Depois da morte de Rafaela ela ficou indo a casa de Jonny por algumas semanas, ajudando a cuidarem de tudo, e passou a usar o preto como principal cor de vestuário. Às vezes o loiro achava que a diretora se sentia meio responsável por ele.
Olhou no relógio, reparando que mais meia hora e já seria o intervalo. Suspirou, pegando a mochila e foi em direção à porta.
— Jonathan. — Ela chamou e, de forma inevitável, o menino a encarou, sem poder desviar o olhar da cicatriz. — Pode colar isso no mural, por favor? É a lista de inscrições para as aulas opcionais.
Eliana havia perguntado, mas não queria uma resposta, pois estendeu o papel sem esperar uma afirmativa. Jonny o pegou e fez menção de sair, mas parou e, num impulso, fez a pergunta que sempre quis.
— Por que nunca tirou a cicatriz? Os procedimentos de hoje podem amenizar isso. — A diretora o encarou com surpresa e o loiro se arrependeu se imediato da pergunta estúpida. — Deixa pra lá.
— Jonathan, volte aqui. — Apenas a voz autoritária da mulher o fez dar meia volta. — Pela pergunta é óbvio que sua mãe nunca contou o que aconteceu. — Eliana fez uma careta e suspirou. — Sua mãe e eu éramos amigas desde que nos entendemos por gente, ela sempre foi uma rata de biblioteca e, sim, eu gostava de ler, mas não tanto quanto ela, minha dedicação era para lutas. Eu fazia karatê, kung fu e capoeira e amava. Um dia Rafaela e eu voltávamos para casa e três homens estavam cercando uma menina, sua mãe começou a ligar para a polícia, mas não ia dar tempo... Não... — Ela parou e respirou fundo, se recompondo. — Eu sabia o que fazer, então fiz. Defendi a menina, um deles tinha uma faca e acertou meu rosto, mas eu não desisti, e venci. — Eliana deu um sorriso. — Toda vez que me olho no espelho, lembro desse dia, lembro que não posso desistir e, quando um de vocês me encara, sei o que vêem. Uma deformação, uma marca feia, esteticamente indesejável, socialmente asquerosa... num mundo onde todos querem a perfeição, esse é meu silencioso e incômodo ato de rebeldia. — Ela abriu mais o sorriso. — Toda cicatriz tem uma história e, seja bonita ou feia, ela existe. Eu carrego a minha com orgulho.
Jonny engoliu em seco, sua garganta estava travada. O menino não sabia o que falar, jamais... jamais imaginou que isso houvesse acontecido.
— Pode ir, não precisa falar nada, eu já sei. — Ele virou e saiu, atordoado, sem saber o que pensar. Sentia-se como se houvessem lhe dado um soco no estômago de surpresa.
Andou até o mural da escola e pregou os papéis com as tachinhas. Quando terminou, se escorou na parede ao lado, digerindo a história que acabara de ouvir. Era tão... estranho, principalmente por sua mãe nunca ter falado nada.
Lembrou-se que era obrigatório se inscrever em pelo menos duas aulas extra curriculares. Suspirou e foi até o quadro, só precisava escolher uma, visto que esportes era uma das matérias e ele já estava no futebol. Analisou quais estavam disponíveis naquele ano: Desenho e pintura? Não, tinha tentando no primeiro ano, foi um desastre, nem os pintores abstratos iam querer Jonny. Teatro? Não! Canto? Não pretendia matar ninguém ainda. Dança? Riu só de imaginar. Música? Já havia feito, no ano anterior e, apesar de boa, a aula era limitada, então já havia aprendido o que precisava nos instrumentos. Só sobrava o Clube de Ciências e o de Leitura.
Jonathan desprezava os dois. Ciências, por não ter nenhuma aptidão para a área, mesmo com seu leve interesse por física, e Leitura, pois já era obrigado a ler e não fazia nenhuma questão de aumentar isso. Decidiu tirar um tempo para escolher, apesar de imaginar se seria assim tão ruim voltar para música.
A segunda aula já estava no fim, então preferiu não interromper, indo até o banheiro para mijar e pensar na vida, enquanto levava um pedacinho de papel de um canto do mictório até o ralo.
A história de Eliana não saia de sua cabeça e sua cicatriz havia adquirido uma beleza estranha para o menino. Lembrou do que Hello havia falado sobre as cicatrizes que Sol tinha, essas que ela escondia. É claro que nem todo mundo tem a coragem da diretora, mas… mas o que? pensou.
Jonny estava pesaroso, sem saber o porquê, entretanto, se cicatrizes contavam histórias, Sol não queria ninguém sabendo as dela, por isso havia mentido o nome, certo? Por isso ninguém sabia nada dela além do superficial. Riu para si mesmo, era bem provável que estivesse inventando coisas, como no dia em que achou que ela estava em perigo ou que era ladra, caso contrário... Que garota interessante eles haviam escolhido para ser a caça.
Caça essa que tá te chamando muita atenção, né, Jonnyzinho?, ignorou o pensamento e terminou, indo lavar as mãos.
A campa do intervalo tocou, porém decidiu dar mais um tempo no banheiro, molhando o rosto e pescoço e depois arrumando seu cabelo com cuidado para cima, num topete moderninho. Não demorou para o banheiro encher, só então saiu, indo até sua nova sala de aula. Riu ao chegar na porta, notando que sete alunos estavam por ali, /na hora do intervalo/, lendo ou escrevendo coisas, esses que o olharam estranho enquanto entrava e jogava a mochila em uma cadeira vazia no fundo, sorriu para eles, cínico.
Saiu, andando com calma pelos corredores apinhados de grupos conversando. A maioria acenava ou dava tapinhas em seu ombro, coisas que ele retribuía. Chegando no refeitório reparou que seus amigos não estavam no local de sempre, olhou em volta, procurando, mas nada. Estava para perguntar quando Heloísa apareceu ao seu lado e bufou.
— Eles estão lá fora — olhou para Jonathan uns segundos e continuou — brincando.
Brincando? — Perguntou, incrédulo.
— Vai lá ver você. — Ela apontou para o jardim.
Jonny se deparou com um cena muito peculiar. Seus amigos estavam correndo na grama, rindo, gritando e brincando de algo que parecia uma mistura de futebol americano com pique-pega. Sol também estava ali, correndo sem sapatos, com os cabelos voando em todas as direções e uma bola nos braços.
Ela desacelerou quando o viu, mas Eddie, que devia ser do time contrário, a agarrou pela cintura e saiu correndo com ela pendurada em seu ombro, rindo. Jonathan levantou uma sobrancelha para a cena, nada contente. Eduardo era o maior e mais forte entre eles, afinal, quando não estava na escola, nem no futebol, costumava se exercitar e praticar parkou, para se preparar para o Apocalipse Zumbi. O loiro viu seu amigo levar Sol até a outra extremidade do jardim, desviando ou empurrando os outros, e a colocar no chão ao seu lado, levantando o punho em vitória, mas Luís passou correndo por trás dele e pegou a mão da menina, que correu junto dele e depois pulou em suas costas, sem parar de rir, enquanto ele corria de Eddie e tentava desviar dos outros.
— Isso é ridículo. — Heloísa apareceu ao seu lado de novo, os olhos queimando de ciúmes.
— Parece que eles tão se divertindo bastante. — Jonny estava sério, a testa franzida e a boca do estômago apertada.
Percebeu, com certa surpresa, que algumas pessoas tinham ido assistir o jogo também. Bufou, bando se desocupados. Voltou os olhos àquela partida de alguma coisa bem quando Luís chegou na parte que deveria, mas Sol não estava mais com a bola e o menino pareceu bem frustrado com isso. Sol assobiou, pedindo tempo, rindo e recuperando o fôlego, correu até Jonathan.
— Você não foi. — Acusou, feliz, tentando ajeitar o ninho que havia virado o cabelo.
— Desculpe, fiquei ocupado. — Ele queria, queria de verdade, ficar sério, mas não conseguiu e acabou sorrindo para ela.
— Tudo bem, vai na próxima. — Sol olhou dele para Heloísa por alguns segundos e deu um sorriso menor. — Querem brincar?
Não! — Hello foi enfática. — Posso quebrar a unha, cair e me machucar, sujar meu cabelo com terra, soar… enfim, as possibilidades são muitas. — Ficou bem óbvio, pelo tom da loira, que detestava Sol, mas esta pareceu não notar.
— Pode ficar no time do Luís. — Comentou, como quem não quer nada e sorriu de novo.
Heloísa, dessa vez, parou, surpresa e com uma expressão quase assustada. Olhou para Jonny, que também sorriu e assentiu. A menina pensou mais alguns segundos, e riu, balançando a cabeça como se não acreditasse no que estava fazendo, enquanto tirava os sapatos e fazia um rabo de cavalo, correndo até perto de Luís e, uau, ficando tímida.
— Então você sabe deles. — Jonathan voltou os olhos para Sol.
— Luís me contou, ele precisava de conselhos. — Deu de ombros e o encarou. — Vai jogar?
— Não conheço esse jogo.
— Bem, foi inventado agora, então ninguém conhecia mesmo, mas não é difícil. — Avisou, o puxando pelo braço e dando um sorriso doce. — Têm dois times, as posições são sorteadas e estamos apostando dinheiro, um real cada vitória. Existe uma bola, que no caso era eu, e um pegador de cada time, que eram Eddie e Luís, o resto do pessoal são atrapalhadores, que são divididos pelos dois times, eles têm que impedir que o pegador do time contrário me leve até a área que faz ponto, toda vez que um pegador consegue fazer ponto o pegador do time rival muda pra alguém que só vai se revelar quando me pegar, mas a vitória no final é individual e recebe mais pontos o pegador que ficou mais partidas intacto. E a bola ganha se conseguir passar dois minutos inteiros sem ser pega por nenhuma das bolas do time.
— Uau, quem inventou o jogo? — Sol abaixou a cabeça e deu de ombros.
— Eu inventei a base e os meninos completaram o resto. — Fez um gesto de descaso e olhou para ele de novo, os olhos negros brilhando. — Então, vamos jogar?
— Ok, me convenceu. — Sol deu um enorme sorriso e começaram a caminhar juntos, mas ela parou e deu meia volta.
— Vai indo lá que eu já vou. — Falou, mas Jonathan parou, vendo ela ir até duas garotas.
Uma tinha os cabelos pretos e lisos, com traços faciais asiáticos e a outra era loira, de cabelo crespo e rosto repleto de espinhas. A loira saiu de perto, parecendo com raiva, entretanto a outra ficou e, parecendo feliz, começou a seguir Sol também para o meio do gramado. Pararam ao chegar perto de Jonny, e a desconhecida corou.
— Jonny essa é a Anna, e Anna, enfim, já sabem os nomes um do outro. — O loiro sorriu, educado.
— Prazer, Anna. — Apontou para o grupo no meio so jardim. — Vai jogar também?
— E-eu… — A menina começou, mas parou, corando mais e encarando o peito dele. — Sim, vou sim.
— Explica o jogo pra ela, que eu vou ali falar com o Eddie. — Sol disse, com um sorriso de menina levada.
Jonathan explicou o jogo da mesma forma que Sol tinha feito, mas a tal Anna não olhava para ele de jeito nenhum, chegava a ser engraçado. Já ia perguntar se ele por acaso tinha alface no dente ou se a havia ofendido algum dia, mas estavam chamando.
O jogo ia recomeçar.
.
— Acabou o tempo! — Sol gritou, exatos sete minutos depois, com as bochechas coradas de tanto rir. Não havia jogado na segunda vez, para que Anna pudesse jogar. A tal amiga asiática era tímida, mas rápida e esquiva como nenhum deles, Jonathan ficou surpreso. — Se não pararmos agora não vai dar tempo de comer e, acreditem, já perdemos quinze dos nossos vinte minutos de recreio.
Jonathan soltou uma risada e Sol o encarou com uma sobrancelha erguida.
— Intervalo, recreio é coisa de criança. — Explicou e Matheus concordou com a cabeça, Sol deu um sorriso de canto.
Re cre i o. — Repetiu, com postura e expressão que o desafiavam a rebatê-la, não o fez, apenas riu.
Sol virou para falar com sua amiga, então Jonny pôde notar a fina, mas longa, cicatriz que ia do maxilar até atrás da orelha. Era quase invisível e como geralmente a menina usava os cabelos soltos, desaparecia, mas estava ali.
Sol foi comprar seu lanche de braços dados com Anna, e, ainda andando, virou a cabeça, o encarou e sorriu, baixando os olhos em seguida e voltando a olhar para frente. O garoto sentiu um calor lhe invadir do estômago até o peito, descendo até...
— Andem mais rápido que eu tô morrendo de fome.— Eddie falou, jogando os braços pelos ombros de Matheus e Jonathan. — Esse jogo é legal pra caralho.
— É, a gente podia marcar um dia à tarde quando não tiver treino e jogar lá no campo. — Math disse.
— Olha só, o moleque tá ficando esperto. — Eduardo deu um tapa na nuca de Matheus, que revidou com uma cotovelada no abdômen. — Mas, sério, a Sol é foda, e eu quero aquela japinha no meu time, ela corre pra porra, parece o Bolt.
— Ela é a menina do handebol, né, não? — Matheus parecia pensativo.
Ah! — Jonny e Eddie lembraram, juntos, que Anna era a capitã do time de handebol, não era o esporte mais popular da escola, mas iam bem também. — Agora tudo faz sentido.
— O que as moças vão fazer durante o feriado de carnaval? — Eduardo refletia.
— Sei lá, tava pensando em acampar. — O loiro deu de ombros.
— Mamãe me inscreveu num retiro. Vou passar quatro dias lá, rezando. — Matheus respondeu, fazendo uma careta, enquanto seus amigos riam. Chegaram na fila e compraram seus lanches.
— Bora chamar todo mundo pra acampar. — Eddie deu a ideia.
— É uma boa, mais tarde a gente fala com o pessoal. — Carlos passou por ali, os encarou, mais a Eddie, e depois saiu. — Ele tá evitando a gente desde a balada, né? — Matheus balançou a cabeça em afirmativa.
— Ele ficou com um cara lá. — Falou, de boca cheia. — Deve tá com vergonha.
— Ué, mas isso não é motivo pra vergonha. — Jonathan crispou os lábios e Matheus deu se ombros. — Você deveria e falar pra parar de frescura. — Apontou para Eduardo, que se manteve calado a conversa toda.
— Ah, cara, cê sabe que eu não gosto dessas coisas. — Eddie falou, olhando para seu hambúrguer.
— Não precisa gostar, quem tem que gostar é o Carlos, sua função é só não ser otário e respeitar a opção do seu melhor amigo.
— É, o Jonathan é gay e eu amo ele mesmo assim. — Matheus jogou um beijo no ar para o amigo, que só revirou os olhos e riu.
Eddie levantou da mesa e foi para outra, parecendo muito irritado com o rumo da conversa.
— Isso é babaquice. — O tom de voz de Jonny era reprovador.
Matheus só deu de ombros.
— Todo mundo é babaca de vez em quanto. — O loiro não pôde discordar.
— A Sabrina me brigou quando eu falei que ser gay era opção.
— Ah, sério? — Jonny franziu o cenho.
— É, ela disse assim — Matheus se aprumou e fez uma pose para imitar a amiga dele — "se ser gay é opção, quando foi que você escolheu ser hétero?"
Jonny parou para pensar e riu. A menina estava certíssima.
— O que cê respondeu?
— O que cê acha, babaca? Nada, não tinha o que responder.
Jonny lhe deu o prazer de ver seu dedo do meio e o amigo lhe mandou um beijo. Os dois riram e voltaram a comer.

.

O clique ecoou pela construção abandonada, assustando alguns pássaros que dormiam nos ninhos feitos com tanto cuidado em buracos na parede. Sol analisou a imagem por um segundo, ajustou a lente e bateu outra foto. Aumentou a saturação para capturar a parede sem reboco.
Suspirou e se sentou num banco semidestruído. Tirou mais algumas fotos desse ângulo, da destruição ali presente, do local vazio de humanidades, mas cheio de vida selvagem e pura. Já tinha batido foto do lado de fora, arruinado, das outras casas palacianas, da rua limpa, de paralelepípedos. Era uma dicotomia interessante.
Aumentou o contraste da câmera e conseguiu mais algumas boas imagens. Faria uma colagem bonita, mas nada demais. Não estava em seu melhor momento, parecia às vezes que tinha perdido a prática e isso a frustrava. Sua capacidade de guardar também estava um pouco prejudicada.
Guardou a câmera na case e, enfim, admirou o local diretamente pelos olhos. As paredes rachadas, o teto abobado e caído pela metade, o mato que crescia entre rachaduras na parede e no chão, a madeira bonita e cara cheia de cupins. Sorriu. Ninguém dava a mínima para aquilo tudo. Ninguém ligava. Nem para um antigo bem humano, cheio de histórias para contar e rastros do calor que já teve, e nem para a nova vida que havia se instalado ali com o passar dos anos de abandono.
Seu sorriso caiu. Sol fechou os olhos e inspirou, se preenchendo com o sabor da presença daquelas vidas, se conectando com aqueles seres que lhe deixavam mais confortável que qualquer humano. O sentimento de união era único. Seu desejo era se deitar no chão e esperar que, com o passar dos anos, também fosse coberta por eles, virando parte daquela ruína, parte da natureza.
Os seres humanos há muito já tinham se separado de tudo aquilo, ela sabia, e se reconectar com a vida natural era impossível.
Talvez fosse por isso que as pessoas estavam sempre inquietas. Nos tornamos tão humanos, tão civilizados, tão racionais, nos tornamos tão não animais que agora não sabemos mais nosso papel no mundo, e as pessoas ficam tão desesperadas tentando se encaixar, quando na verdade o elo já foi perdido, o estrago já foi feito. Destruímos o local que nos deu vida e agora temos de viver sabendo que a natureza não dá mais espaço para nós. Temos de procurar outros lugares (no espaço, ou mesmo em outra pessoa) para nós sentirmos em paz.
Sol tocou no peito, sentindo seu coração bater. Ao menos ela sabia que era vazia e não fazia questão de tentar preencher isso. Conhecimento é uma bênção e uma maldição, pensou. Deu mais atenção as batidas, fortes, vigorosas. Aquilo provava que estava viva, mas não de verdade. Nunca estaria viva por inteiro de novo.
Nunca.
Jamais.
Por que você finge, Sol?
Você sabe o porquê, respondeu, não está no momento de morrermos ainda.
Eu sei, mas… Como e quando esse vazio vai acabar?
Nunca, suspirou, e é por isso que vamos conhecer todos os lugares e vamos viver como se pertencessessemos à cada um deles.
Sim, se não podemos ser de um lugar, podemos ser do mundo.
E somos.

E ela era.


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Notas finais do capítulo

Gente, não sei se alguém está lendo, não tem comentários e, enfim, nada. Nenhum feedback aqui.
Agora ficarei só no wattpad, se alguém quiser continuar lendo: https://www.wattpad.com/story/34685688-inconfidentes



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