Viva?

Hook

Presente

Eu quase havia me esquecido que tinha um cachorro.

Isso não parecia importante agora, eu sei. Mas a conexão com esse animal doméstico, com este ser que todos afirmavam ser “irracional” era importante para mim nesse momento.

–Como você está, Hope?- Indaguei para o animal. Se tratava de um Border Collie puro, portador de uma pelagem macia e agradável, que afundava seus dedos quando você a tocava. As cores negra e branca combinavam em parte com ela. O branco, certamente. A luz, a paz, a sensação de esperança e fé. Uma cor ideal.

Mas o negro? Não. Aquela parte sombria combinava perfeitamente com o dono.

–Você acha que aquele velho sabe de alguma coisa?- Passei a mão em sua cabeça, bagunçando os fios emaranhados.

Ela latiu baixinho, a língua prontamente pendendo na lateral, fazendo um único fio de saliva mucosa escorrer de sua boca escancarada.

–E se ele tiver alguma informação?E se ele a encontrou?

Seus olhos castanhos estavam fixos em mim, fofos e relaxantes. Piedosos, como os de um preso a caminho de sua sentença de morte.

–Tenho que parar com isso- Sorri, olhando para aquela piedade e inocência real. Algo que era impossível ser carregado por um homem bípede e racional, não importa se era de contos ou nativos e moradores desta terra real. Todos estavam marcados, todos estavam feridos com maldade.

–Pelo menos posso confiar em você- murmurei, levantando-me lentamente. Em pé e ereto, olhei prolongadamente e demoradamente para Hope, meditando aquele minuto de calmaria e conforto. Um luxo que eu sabia que não era digno de usufruir.

Com uma mão no bolso (a única alias) comecei a me distanciar de minha casa. Estava com pressa, estranhamente ansioso. Emma... Ele sabia algo sobre Emma... Ela... Ela...

“Você vai ficar bem, certo?” Uma lembrança, minha voz juvenil ressoando como um eco no fundo daquelas memórias cinzentas e frias, fragmentos de algo que nunca quis que tivesse existido “Eu prometo. Nada vai acontecer com você!”

Mas aconteceu.

Mas aquilo não iria se repetir... Eu... Jamais iria perder alguém tão importante novamente. Nunca. Não. Eu não iria perder mais ninguém.

Não que a integridade de Emma já tivesse custado alto. A vida de Belle French foi um preço muito alto para pagar. Um preço que mesmo que já houvesse pago e manchado, não era algo que saberia como conviver depois.

Claro, assim que minha namorada estivesse bem e integra, Storybrooke ficaria no passado. Iria para qualquer lugar alem do oceano, onde noticias e relatos sobre mim seriam impossíveis e meus únicos registros de vida ficassem naquele maldito livro de contos de fadas. Não iria ter mais contatos ou mesmo meios de me comunicar com a pessoa que me importava. Jamais conseguiria encarar ela, ou qualquer um depois do que eu fiz.

E era por isso que precisava encontrar David. Se ele tivesse achado um meio mais fácil e sem sangue, sem mortes desnecessárias para encontrá-la, seria muito melhor não somente para o mundo, mas para minha integridade mental. Qualquer outra morte ou tarefa sanguinária iria deixar marcas ainda mais profundos no meu consciente e subconsciente. Algo irreversível que acho que jamais estaria pronto para suportar.

David... Ele era minha única saída.

Mesmo não nos dando muito bem, tinha consciência de seu sofrimento. Seu contato com Emma, seu laço com ela, era muito profundo. Não somente pelo laço sanguíneo, mas pela separação de vinte e oito anos. Um tempo longo demais, com horas e momento que jamais poderiam voltar.

Ele a perdeu uma vez. Perdê-la novamente deveria estar o deixando à beira da loucura.

Claro, depois dessa noite, acredito que David estava muito melhor do que eu mentalmente.

Senti uma gota de água caindo na minha cabeça. Chuva. Ótimo. Eu não havia trazido nada para me proteger. Nada de capa ou menos um simples guarda chuva.

“O mundo deve me odiar...”

“Provavelmente. Mas... Eu... Gosto de você” Ela murmurou, seus dedos se entrelaçando com os meus, forçando minha pele e aquecendo-a, moldando-a e formando como brasa, dando origem a um sentimento desconhecido e estranho.

Lembranças... De uma garota...

Uma garota que não era a minha atual namorada.

Por que eu ainda me lembrava dela?

Não. Por que eu me lembrava dela agora?

Devia ser minha mente. Eu havia brincado demais com ela. Aproveitado demais. O resultado eram esses lapsos sem sentido e expulsos sem nexo, como se por impulso. Aquela era a única explicação para aquilo.

A única explicação de sentir meu peito doer ao pensar nela mesmo após tanto tempo do ocorrido.

Será que eu a amei?

Ou será que foi somente uma paixão que nunca teve a chance de chegar ao amor?

Olhei para o chão, para as pequenas e assimétricas pedrinhas escuras que se amontoavam sobre as cinzentas, sobrepostas pela terra e pela lama. Elas não deixavam rastros explícitos com o tempo. Daqui uma dezena de anos, elas se manterão iguais ou com uma diferença pouco indicativa. Sem assinaturas ou modos para identificar que humano ou criatura a cruzou. Quem a tocou ou arrastou. Que história ou marca ela trazia consigo. Quem ela amou ou odiou...

Será que foi isso que ela se tornou? Um rastro esquecido?

Não. Eu ainda me lembrava dela. Embora meus pensamentos estarem voltados nesse período quase exclusivamente a Emma... Ela ainda existia nas minhas lembranças.

Fechei os olhos, sentindo gotas de água entrar em meus lábios. Não era salgada como o mar, mas também não era ausente de sabor. Ela tinha um gosto especial. Não doce ou salgado, não afundado no amargo.

Era apenas... errado.

Na verdade tudo parecia errado ali. Uma atmosfera artificial, construída. Algo falso e armado. Não sabia exatamente o que é ou como poderia descrever em palavras.

Mas eu era um pirata. Um homem vil, afundado numa vida de mentiras.

E eu podia reconhecer uma quando encontrava.

Parei, precipitado, as botas afundadas na lama e na pedra, perscrutados no seu ponto de apoio principal. A respiração estava acelerada e os olhos focados.

Eu estava pronto para olhar para trás. Pronto para descobrir o que estava acontecendo...

E então... Dor...

No começo não percebi o que era. Simplesmente meu cérebro estava desconectado. Frio e intocável perante o que se sucedera.

Tive que olhar para baixo, para meu próprio tórax para perceber o que ocorrera.

Uma flecha.

Uma flecha ... Longa e pontiaguda, feita rusticamente com pedras afiadas e polidas. Um instrumento secular e imemorial, que agora se fixava dentro minhas vísceras, fazendo um punhado leve e conspícuo de sangue desfilar pelo ferimento e se destacar das roupas e da chuva.

Dor...

Quanta dor...

Eu podia sentir que caia. Como um boneco de madeira cujas cordas foram brutalmente partidas pelo seu mestre. Cortada com fogo ou por uma adaga... O corpo sem sustentação não suportando mais a si mesmo.

Era assim que me sentia, surpreendentemente. Um pedaço de madeira caido no chão, não sabendo mais como se levantar.

Mas eu precisava... Eu tinha...

–Hook!- Uma voz feminina gritou a plenos pulmões, rasgando a noite vazia como uma dezena de corvos.

–Não!- Murmurei, sentido a voz falhar e se perder. Uma agulha em um palheiro. Um passo para a escuridão.

Não... Não era possível...

Como ela... Como ela poderia estar...

Viva...