Os Filhos de Umbra escrita por Rarity


Capítulo 22
Capítulo Vinte e Dois: 1992 -739 dias antes


Notas iniciais do capítulo

Adivinha quem voltou?
Feliz Ano Novo bb



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 Capítulo Vinte e Dois: 1992 -739 dias antes

A morte é de fato o fim, no entanto não é a finalidade da vida.

Michel de Montaigne

14 de Novembro de 1992

O ano de 1992 estava chegando ao fim e eu era uma das pessoas que mais torcia para que ele passasse rápido, ansioso com as festividades de Natal e Ano Novo –claro, sem imaginar que a minha vida corria como uma ampulheta, quase acabando. Passaríamos o Natal daquele ano em Sococó da Ema mesmo, minha família viria pra minha casa e eu já imaginava o que faríamos junto com meus amigos. Estava louco para apresenta-los à minha família.

Eu já me encontrava de férias, felizmente. O final do ano foi conturbado desde que Amanda nos contou que não seria mais nossa professora no próximo ano, e sim uma novata, chamada Professora Eline. “Uma ótima pessoa!”, garantiu Amanda. Mesmo assim, eu não queria ficar sem Amanda, e pelo visto, ninguém da minha sala queria. Organizamos um protesto no recreio, liderado por mim, com cartazes de folhas de caderno com as frases “Sem Amanda, sem aula!”, “Por uma sala de aula com a Amanda” e “Amanda rainha, Eline nadinha!”. Quando nossos pais foram chamados para dar um jeito na bagunça, acabaram se juntando à causa e a diretora se deu por vencida. Amanda ficou! Fizemos uma grande comemoração com bexigas, fotos e doces, e Amanda agradeceu todo o carinho. No dia seguinte, já estávamos de férias.

Eu e Leo estávamos esperando as férias desde... Bem, as outras férias. Enquanto nossos amigos falavam do que tinham feito em suas férias, eu e Leo sempre imaginávamos o que também tínhamos que fazer. Naquele ano, decidimos que teríamos a mais completa experiência “feriaística” e anotamos tudo que gostaríamos de fazer numa lista. Assim que levantamos para o café, chamamos pai e mãe para uma reunião na sala de casa.

—Obrigado por virem. –comecei. –Eu e Leo-

—Virem no quê? –pai interrompeu. –Só sentamos no sofá.

—Shiu. –mãe pediu. –Eles querem falar alguma coisa.

—Sim. –continuei. –Eu e Leo pensamos muito e decidimos que esse ano teríamos as melhores férias de todas. Juntamos tudo o que queríamos fazer numa lista.

—Eu chamei de “experiência feriaística!” –contou Leo.

1) Dormir apenas quando quisermos.

2) Poder empinar pipa com nossos amigos.

3) Poder acampar.

4) Poder construir uma pista de corrida na varanda.

5) Poder sujar nossas roupas.

6) Comer apenas o que a gente quiser.

7) Fazer um picnic no Lago com todo mundo.

8) Tomar banho só quando a gente quiser.

—Essa foi ideia do Leo. –me justifiquei.

9) Tomar um banho de chuva.

10) Fazer uma guerra de bexigas.

Depois de ler toda a lista, encarei meus pais esperando que eles esboçassem algum tipo de reação. Mamãe ficou parada, olhou meu pai e os dois riram.

—Não tem graça! –exclamou Leo.

—Isso é sério! –complementei.

—É só que –mamãe gargalhava. –Desculpe.

—Vocês realmente acharam que a gente ia deixar? –pai perguntou.

—Sim! São nossas férias fantásticas!

—Feriásticas! –Leo gritou. 

—Algumas coisas dessa lista podem até rolar, rapazes, mas não tomar banho? –mãe fez uma careta. –Depois a gente vê isso, certo? Eu gosto da ideia de um picnic. Por que vocês não vão ver como a Belle e o Pablo estão passando as férias?

Nos encaramos irritados.

—Certo.

(***)

—E aí eles riram! Como se a gente não importasse! –Leo contava à Emily e Mel, as últimas a se juntarem à nós. Henrique conversava animado com Belle atrás de mim, enquanto eu e Pablo falávamos das férias.

Depois que saímos de casa, passamos no chalé de Pablo. Dete avisou que ele estava com Belle, e tivemos que correr para alcançar os dois que estavam indo buscar Mel e Emily. Nós não fazíamos muito a não ser buscar um ao outro. Acabou que achamos Henrique primeiro e ele seguiu a gente, e agora estávamos no caminho do mercado para Emily comprar uma coca.

—Podem me esperar aqui fora. –Emily avisou, toda bem humorada.

—Eu queria poder fazer algo diferente. –reclamei. –Todo ano é a mesma coisa.

—O que não quer dizer que seja ruim. –Mel completou. –Só... Simples.

—Então pense em algo diferente pra fazer, Senhor. –Belle me respondeu, balançando a cabeça. –Ficar em Sococó da Ema vai ser pra sempre essa mesmice, Pedro. A cidade é presa no tempo.

—Isso não é verdade! –Henrique argumentou. –Tanta coisa mudou! A gente pode fazer um monte de coisas!

—Tipo? –Pablo arqueou a sobrancelha.

—Tipo.. tipo... –Henrique pausou. –Tipo o Lago!

—Que original. –Belle meneou a cabeça em decepção.

—Não podemos ir embora. –Leo cruzou os braços. –O que você vai fazer nas férias, Isabelle?

Belle teria o matado com o olhar, tenho certeza, mas só cruzou os braços.

—Vou ficar com minha vódrasta em São Paulo. –ela anunciou.

—Durante as férias inteiras? –olhei pra ela. –Você foi pra lá em Julho, não foi?

—Fui. –Belle olhou pra baixo. –Concordei em fazer uma apresentação lá.

—Em São Paulo? –Pablo reformulou. –Belle, é super longe.

—Eu sei. Vocês não precisam ir. Eu não ligo.

—Eu vou. –Henrique passou um braço sobre os ombros dela. –Estou de seu lado, bailarina.

—Eu vou estar na primeira fila com a Emily. –Mel concordou.

—E não é como se eu tivesse coisa melhor pra fazer. –Pablo piscou.

—Eu também vou! –Leo aplaudiu.

Belle olhou pra mim, e eu desviei o olhar. Uma coisa era ver as apresentações de Belle na cidade e pensar que um dia ela iria fazer coisas maiores, outra era já ter que enfrentar Belle se apresentando em outras cidades agora. Eu simplesmente não gostava de imaginar Belle longe, e apoiá-la nessas coisas era ainda pior.

—Pedro? –Mel olhou pra mim, fazendo um sinal bem nervosa. Do tipo “fala que você vai também, agora!”

—Eu-

—Olha só! Se não é Melissa Barros Bastos! –uma voz gritou, acompanhada de várias risadas.

Mel olhou por cima de meu ombro confusa e eu me virei para entender. Quando vi, desejei ter ficado em casa.

Casimiro, Domingos, Estevão e Firmino Mendes eram quatro irmãos gêmeos muito conhecidos na cidade como Filhos do Diabo. Na época eles tinham uns doze anos, e até que andavam arrumados e eram “bonitinhos”, porém eram esnobes e arruaceiros. Todos tinham cabelos castanho-claros e olhos verdes, o que era muito injusto se me permite dizer. Mas não é como se eu os invejasse. Bem longe.

—Não é mesmo? Olha só, a pequena Mel! Como está a vida de princesa, viúva? Aproveitando o dinheiro da titia? –Estevão (ou Casimiro, não sei dizer) zombou.

—E você? Gastando o dinheiro do papai em doce? –ela retrucou, sem se deixar abalar.

—Olha só, a gatinha tem garras! –Firmino (e esse era mesmo Firmino) apertou o nariz dela.

—Opa, larga ela! –Henrique se intrometeu, agarrando o braço de Firmino.

—E cala a boca, por favor. –Pablo pediu. –Alguém já te disse que você tem voz de menina?

—Anda como uma. –Leo continuou.

—Oras, quem são vocês pra falar alguma coisa, tampinhas? –Domingos defendeu o irmão.

—E quem é você pra incomodar a Mel? –Henrique desafiou.

Oh, Melzinha, me perdoe! Sentimos muito! —Casimiro colocou os punhos em oração, fazendo drama. –E ela é o quê sua, sua namorada?

—Como se ele conseguisse uma. –Firmino riu.

—Ela tem nove anos! –Belle gritou.

—O que vocês querem? –tentei aplacar os nervos.

—Ah, não sei, estamos ouvindo boatos sobre você, Melzinha. –Estevão riu, se aproximando de Mel e apertando a bochecha dela.

Tira a mão da minha prima! —uma voz gritou. E quando vi, Emily estava quase pulando nele, a sombrinha do seu lado.

—Ah é? Vai fazer o quê? Me bater? –Estevão riu.

E foi isso que Emily fez. Meteu a sombrinha na cara dele, e Estevão caiu no chão de dor.

—Ora sua –Casimiro começou.

—Peguem eles! –Estevão gritou.

E aí eu puxei Emily pelo braço e saímos todos correndo rua abaixo gritando, ouvindo os irmãos atrás de nós. Emily se contraía gritando “Me deixa bater neles, me deixa bater!”, mas eu sabia que se a soltasse íamos todos ganhar uma bela surra porque eles tinham quase o dobro do nosso tamanho. Assim que chegamos ao final da rua, nos separamos para correr e assim conseguimos despistá-los. Eu estava exausto. Fui com Leo e Emily até o final da cidade no caminho da casa de Berenice e acabamos nos encontrando ali.

—Belle caiu na caixa de areia do parquinho. –Mel riu de ladinho. –Melhor não provocar ela.

E de fato Bailarina estava cheia de areia nas roupas e pele, principalmente na cara.

—Não. Fala. Nada. –ela avisou.

—Olha, você não prestou atenção. –Pablo acusou.

—Vamos dar um tempo, certo? Chega de brigas. –pedi. Estava cansado. –Podemos, por favor, fazer alguma coisa mais legal e menos dolorida?

—Maria recebeu tintas novas e está jogando fora as velhas. Podíamos aproveitar. –Belle sugeriu.

—Parece bom pra mim. –Leo sorriu.

—É, parece divertido. –falei.

—Caraca. –Henrique expirou, cansado, mas com um sorriso imenso no rosto. –E vocês achando Sococó da Ema chata.

Sorri em concordância.

(***)

Depois de toda aquela correria, voltamos direto para a casa de Belle, que foi reclamando o caminho inteiro sobre areia entrando em todo lugar. Assim que entrou em casa, Belle avisou que tomaria um bom banho antes de considerar fazer qualquer outra coisa, então tratamos de sentar no sofá e esperar. Maria surgiu do meio da casa, de calça jeans, camiseta larga e avental, o cabelo preso num coque e até o queixo sujo de tinta. Maria estava parecendo um arco-íris vomitado, o que é uma comparação estranha. Ela pareceu feliz ao nos ver sentados na sala, nos prometendo um lanchinho e deu altas gargalhadas quando contamos o motivo de Belle estar tomando banho. Ela nos garantiu que os Filhos do Diabo ganharam o título por um motivo e que não devíamos ligar para os problemas de autoestima dos gêmeos, mas pediu que Emily “diminuísse a violência”.

No meio tempo, Maria nos deixou reclamar sobre nosso dia, ouvindo com atenção entre goladas de café. A madrasta de Belle estava de fato juntando algumas tintas velhas quando chegamos, mas parou para nos receber, nos dando a importância que merecíamos.  

Nos sentamos no chão da sala, pegando da mesinha de centro o que queríamos comer. Era sempre um ritual alimentar os convidados, afinal, e nós poderíamos comer até a tinta das paredes se deixasse.

—É só tudo tão chato, Maria. –reclamei. –Todo ano fazemos as mesmas coisas.

—A gente quer aventuraaaaa! –murmurou Leo, abrindo os braços e quase batendo em Pablo.

—Eu acho Sococó da Ema bem legal, Maria. O que mais vocês querem nessa vida? –Henrique levantou as sobrancelhas.

—Hum. –Maria pigarreou. –Eu já morei numa cidade grande, Pedro, e realmente não é tão legal assim. É muito perigoso, não poderiam brincar na rua como brincam aqui. É tanta gente que parece que você nunca consegue conhecer todo mundo, sem falar que não dá para ir em lugar nenhum sem se perder.

Parei para pensar naquilo. Apesar de tudo, eu amava Sococó da Ema em relação aos moradores, eu me dava bem com todo mundo e eu conhecia a cidade como me conhecia. Mesmo que eu morasse em qualquer outro lugar, Sococó da Ema era minha casa.

—No final, o que conta mesmo são as pessoas daquele lugar e não o lugar em si. –Mel completou, um sorriso nos lábios e nos olhos. –A nossa casa de verdade é no coração das pessoas que amamos.

Paramos. Até mesmo Maria arregalou os olhos pela surpresa.

—Que bonito, Mel. –ela elogiou.

—Realmente tocante, princesa. –Henrique elogiou, batendo de leve nela com o cotovelo.

—Pessoal, minha prima. –Emily bateu pequenas palmas.

—Bobos. –Mel riu, parecendo constrangida ao levantar os joelhos para esconder o rosto nas coxas.

—Mandou bem, viúva. –Pablo piscou.

—É. Talvez Sococó da Ema não seja horrível. –concordei.

—Eu acho que eu tô com fome. –Leo falou, completamente cortando o clima e fazendo com que todos nós o encarássemos sem graça. –O quê? Vocês são muito moles.

—Jesus. –Pablo pressionou o espaço do nariz entre os olhos com o polegar e o indicador enquanto Henrique revirava os olhos.

—Bem, Leo, senhoras e senhores. –mexi a mão num sinal de apresentação, e logo estávamos nos alfinetando de novo.

—Ok, chega. –Maria falou, nos fazendo parar. –Eu acho que podíamos-

—PAAAAAAAIIIIII! –a voz inconfundível de Belle gritou. Até mesmo Maria pareceu surpresa. –ME PÕE NO CHÃO!

—É daqui que pediram uma Belle? –Otávio chegou na porta.

Dessa vez Otávio trocou o estilo cowboy por uma blusa leve azul clara com uma bermuda e chinelos, o que fazia sentido já que ele estava dentro da própria casa. No seu ombro ele carregava Belle como um saco de batatas enquanto ela se contorcia e dava socos nas costas do pai.

Belle tinha trocado de roupas e agora usava o que parecia um moletom velho que ela transformou em vestido. Era preto e era folgado e gigante, mas Belle parecia o achar bastante confortável. No final, Seu Otávio jogou a garota no sofá, que se levantou irritadíssima com as bochechas vermelhas. O pai da garota só deu uma risada e um beijo na bochecha dela para acalmar a fera antes de nos cumprimentar com vários toca-aqui.

Seu Otávio era sensacional.

—Como andam as férias? –ele perguntou, dando um beijo na bochecha de Maria antes de se sentar e puxar Belle para ele.

—Ah. Normais. –Respondi.

Meus amigos piscaram sem entender, mas eu só levantei os ombros. O que queriam que eu falasse?

—Belle vai fazer a primeira apresentação dela na cidade grande, sabiam? –ele anunciou orgulhoso. –Dona Vanessa disse que ela tem muito potencial.

—A Belle é muito especial mesmo. –Henrique concordou.

—Eu acho que você tem sorte de já saber o que você vai ser, Belle. –Mel começou. –Eu não tenho a menor ideia.

—Como não? Vai ser empresária, certeza! Administrar os negócios! –Emily brincou, e Mel sorriu.

Mel num terno. Mel num terno dançando com vários homens de terno.

Minha imaginação era uma coisa estranha.

—Pois eu vou ser jogador de futebol. Tipo o Pelé. –Leo anunciou, os pés se mexendo como num gol.

—Olha o menino, vai ser muito rico. –Seu Otávio brincou.

—E eu violinista, obviamente. –Pablo falou. –E estou ficando muito bom.

—É. Você arrasou no dia das bruxas. –Mel elogiou.

—Eu quero ser ou bombeira ou policial. –Emily continuou a onda. –Toda a coisa de salvar pessoas e fazer a diferença no mundo.

—Ótima escolha, Emily. –Maria elogiou.

—Bem, eu gosto de construir coisas. –Henrique entrou na onda. –Estava pensando em engenheiro ou gerente de obras.

—Olha só, planejando o futuro. –Maria riu.

E eu devo admitir que estava surpreso. Jamais havia imaginado que todos os meus amigos, e até o meu irmão, pudessem ter planos tão... objetivos. Eles sabia o que iriam ser, o que queriam ser e como ser o que queriam ser. Eu não tinha a mínima ideia nem de onde começar.

—Pedro? E você? –Pablo me encarou.

Todos os olhos se voltaram para mim com expectativa. Era pra eu ser o primeiro tão certo de tudo.

—Eu não sei. –admiti. –Nunca pensei nisso.

Bem, uma mentira. Eu já havia sim pensado no meu futuro, mas como nunca cheguei numa resposta concreta, era a mesma coisa que nunca ter pensado em nada.

—Eu sempre achei que iria ficar aqui pra sempre. –continuei. –Continuar com a fazenda, casar, ter filhos, e essas coisas.

—E tem algo específico que gostaria de fazer? –Maria perguntou. –Você tem que considerar o que você quer fazer, Pedro, e não o que acha que tem que fazer. É a sua vida.

Franzi as sobrancelhas, pensando. Não era exatamente um sonho virar um fazendeiro, mas eu não conseguia me imaginar fazendo outra coisa. Saindo de Sococó da Ema. Virando coisas tipo cantor ou celebridade. Eu só queria uma vida pacata no interior com minha futura família.

Só queria uma vida.

Mesmo assim, imaginei o que me daria felicidade de fazer. Bem…. Eu adorava falar. Vocês devem ter percebido, estamos aqui há vinte e dois capítulos. Mesmo assim, o que eu ia fazer com isso? Virar jornalista? Péssimo negócio em Sococó da Ema. Ator? Também não em Sococó da Ema. Talvez algo como vendedor ou comerciante? Não era ideal, mas eu gostaria do contato. Professor? Palestrante?

—Eu não sei. –afirmei frustrado.

Maria sorriu doce. –Não fique paranoico com isso agora, Pedro, ainda tem muitos anos pela frente para decidir. Só precisa ter paciência que o que tiver que ser, será.

A respondi com outro sorriso, não muito confiante, mas que mostrava que eu acreditava em suas palavras. Pelo menos na época. Nem eu nem Maria tínhamos um bola de cristal para ver o futuro e descobrir que eu não precisaria fazer essa decisão.

Assombração não era uma profissão de carteira assinada.

—Chega desses papos! –Maria exclamou, se levantando. –Tenho várias tintas velhas que precisam ser usadas agora para evitar o desperdício e espero que eu consiga alguns voluntários.

Oito mãos se levantaram. As nossas e a do Seu Otávio.

—Ótimo. Para o quintal!

(***)

—Então, o que está desenhando? –perguntou Pablo para Leo.

—Um dragão! –Leo respondeu animado.

Eu não conseguia vê-los e nem desejava, muito entretido com o meu próprio trabalho para me preocupar com o que Leo fazia. Mas devia ter me preocupado.

Maria acabou juntando as tintas numa mesinha que ela colocou no meio do quintal e dando para cada uma tela de pintura. Não tinha cavaletes suficientes para todos, então cada um acabou escolhendo um cantinho no chão mesmo e desenhávamos assim.

A conversa sobre futuro acabou me deixando mais encucado do que deveria, afinal meu destino já estava traçado. Mas como a ignorância muitas vezes é um privilégio, eu ainda estava meio chateado com minha falta de posição. Decidi me concentrar na única coisa que eu sabia que queria pra mim daqui dez, vinte, trinta anos e estava representando aquilo. Lógico, dentro das minhas habilidades artísticas de desenhista de palitinhos.

—Leo, eu acho que esse seu dragão ainda vai lhe dar problemas... –Pablo murmurou ao meu lado.

—Vai nada. Ficou bem engraçado! –E Leo riu ao meu lado de uma piada que só ele entendeu.

—Leonardo, Leonardo....

—Você é muito sem-graça.

—Você é um menino morto.

—Estou bem vivo.

—Você vai ser um menino morto.

—Os dois podem calar a boca? –Belle gritou do cantinho dela, parecendo também concentrada.

—Sério, ninguém consegue desenhar com vocês discutindo como maritacas. –Henrique adicionou.

—Tecnicamente eles não estão discutindo, só-

Mel.

—Certo.

O dia estava bonito, estávamos no meio da tarde. Tudo ia dar certo. Maria e Seu Otávio dividiam o único cavalete, mas não pareciam tão concentrados assim em suas pinturas já que vira e mexe eles passavam tinta um no outro ou paravam para um abraço e carinho. Maria, que já estava toda pintada antes, parecia que tinha sido atropelada por um carro de carnaval.

—O meu desenho vai ser o melhor de todos. –Pablo zombou. –Sério, já podem me chamar de Picasso.

—Picasso não era um escultor? –interrompi confuso.

—Também, mas ele ficou conhecido pelas suas pinturas. Na realidade, Picasso até escreveu poesias. –Mel explicou, sempre inteligente.

—Nerd. –Emily alfinetou.

—Legal. Valeu, Mel. –agradeci.

—Ok, todos acabaram? –Pablo questionou.

—Não. –Retruquei. –Quase.

—Podemos ir mostrando os nossos? –Leo perguntou, um sorriso de canto de boca. Ele ia aprontar. Ele ia aprontar e eu ficaria em apuros maiores por ter deixado ele aprontar.

—Eu primeiro! –Henrique levantou a mão.

Ele se levantou, como em uma apresentação. Nossas posições não formavam uma figura específica, mas se assemelhava a um L bem estranho. Mesmo assim, Henrique buscou o centro com a tela virada para ele. Exageradamente buscou um fôlego e decidiu fazer uma introdução.

—Senhoras e senhores, eu decidi por uma obra bastante pessoal. Vocês nunca viram isso antes, eu garanto. Levou muito tempo, mas finalmente, depois de muito suor e sangue que usei para fazer essa maravilha da humanidade –

—Anda logo. –E Emily usou o pincel para jogar um pouco de tinta nele, e honestamente quem deixou um pote de tinta com a Emily?

E quando Henrique virou a tela, eu tombei a cabeça para tentar entender. Era uma espécie de mancha marrom com pontos pretos.

—E isso é? –Mel questionou.

—Eu acho que o Henrique desenhou um cocô. –Leo falou.

—LEO! É UMA BATATA! UMA BATATA! –Henrique rebateu, apontando a figura. –Viu? Uma batata! Super original.

—Parece um cocô pra mim.

Henrique assumiu uma expressão de quem estava pronto para assassinar Leo, então decidi proteger meu irmão dessa vez.

—Beleza, quem vai agora?

—Eu! –Mel se levantou. –Eu não tinha a mínima ideia do que desenhar, então desenhei o que estava na minha frente.

A pintura de Mel era um fundo azul com vários rabiscos verdes. Não foi difícil entender que ela queria desenhar o gramado no qual estávamos sobre, mas valeu a tentativa.

—Ficou fofo. Adorei as borboletas. –Belle elogiou, e Mel pareceu feliz com o comentário. –Tá, eu agora!

—Todos nós sabemos o que você desenhou, Belle. –Pablo revirou os olhos.

—Claro que não!

—Deixa eu adivinhar... Uma bailarina. –Emily comentou.

Belle fez uma cara de horrorizada, a boca aberta. Ao fechar, ela bufou. –Certo. É uma bailarina.

A pintura era da sombra de uma bailarina num palco e várias luzes voltadas para ela. Era nítido que Belle sonhava em ser aquela bailarina. Típico.

—Ok, Belle, teve seu palco. Minha vez. –Emily avisou já se levantando.

—Só porque o Henrique fez uma apresentação não quer dizer que todo mundo tenha que fazer. –revirei os olhos. Que desnecessário.

—Me deixe ter meu momento. –Emily brigou. –Meu desenho representa meu desejo de bater nos Filhos do Diabo.

E de fato uma mini-Emily de palitinhos batia em outros meninos de palitinhos usando uma sombrinha de palitinho.  Era tudo fofinho para um desenho tão sanguinolento.

—Certo... Agora eu. –Pablo gentilmente levou Emily de volta ao seu lugar e todos ignoramos a sede de sangue dela. –Eu desenhei algo que vocês nunca imaginariam.

—Um violino? –Leo perguntou.

—Foi a Dete. –falei. –Ele desenhou a Dete.

Pablo me encarou horrorizado. –Como você sabe?

Sorri. –Chutei.

O moreno revirou os olhos, mostrando o desenho de rosto de sua irmã. Não era lá uma bela obra, mas era o melhor dentro os nossos. Até que tinha ficado bonitinho.

—Eu agora! –Leo exclamou. –Eu desenhei algo da minha vida e que eu vejo muito.

Ele tá muito ferrado.—sussurrou Pablo.

Por quê?—sussurrei de volta.

—Essa é a Emilão ou Dragamily! –Leo virou a tela, e um desenho de Emily verde e cuspindo fogo nos encarou de volta.

Ah. Por isso.

—GAROTO EU VOU TE MATAR-

Emily voou em Leo, o derrubando no chão, e todos nós fomos instintivamente separá-los, tentando puxar Emily de cima de Leo, mas era como tentar levantar uma parede. Emily fazia alguns sons de raiva e Leo já estava tendo dificuldade de respirar.

—Crianças? Tudo bem aí? –a voz de Maria soou ao longe, mas fez com que Emily soltasse Leo.

—Tudo, tia! –a ruiva respondeu. –Tudo ótimo! –ela se voltou para Leo. –A gente se acerta depois.

—Eu disse que ele ia morrer. Foi bom te conhecer, Leo, mas você mereceu. –Pablo deu tapinhas nas costas de Leo.

—Por que não nos mostra o seu, Pedro? –Belle pediu.

—Bem... Ele não está exatamente pronto... –comecei.

—Sem timidez, Pedro, não combina com você. –Henrique apontou.

—Certo. –respirei fundo. –Todos nós estávamos falando de futuro e de como seria o futuro e por mais que eu não saiba o que eu queira fazer, eu sei com quem eu quero fazer.

Virei a tela. E de mãos (de palitinho) dadas, os sete Filhos de Umbra encaravam a paisagem. Eu, Belle, Pablo, Leo, Mel, Emily e Henrique. Ainda faltava os objetos de identificação de cada um, mas... Fazemos o que podemos fazer.

—É com vocês. –continuei. –Afinal, nossa casa é o coração de nossos amigos.

Mel sorriu incrivelmente para mim, tocada.

—Que gracinha! –Belle se moveu para me abraçar, me apertando de lado.

—Sério, Pedro, muito fofo. –Henrique elogiou. -E eu concordo. Eu espero que a gente continue juntos do mesmo jeito.

—Como se eu fosse ficar sem vocês! –Mel exclamou, se aproximando da tela para ver melhor.

—Depois dessa eu nem quero mais bater no tampinha. –Emily falou.

—EI!

—Se reclamar vai apanhar do mesmo jeito.

Mel balançou a cabeça, cansada das brincadeiras desse povo. Ela colocou uma mecha de volta por trás da orelha antes de me encarar.

—Por que não te ajudamos a terminar, hein?

—Eu vou buscar mais tintas. –Belle falou.

—E eu vou deixar esses palitos com um rosto. –Pablo continuou.

—Acho que tem um espaço perfeito aí para desenhar uma batata.

—Henrique!

—Tudo que o quadro não precisa é de cocô, Henrique.

—NÃO ERA UM COCÔ!

—AH, EU TÔ COM FOME!

Senhoras e senhores, meus amigos.


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Notas finais do capítulo

Vocês ainda acreditam na minha palavra? Bebês, eu não presto não....
Sorry?



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