Os Filhos de Umbra escrita por Rarity


Capítulo 2
Capítulo Dois: 1986 – 3189 dias antes


Notas iniciais do capítulo

Okay, eu não esperava receber apenas um comentário, porque dá muito trabalho de escrever.. Só que eu amo esses meninos demais



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Capítulo Dois: 1986 – 3189 dias antes

Neste mundo, nada pode ser dado como certo,

A exceção da morte e dos impostos.

Benjamim Franklin

02 de Março de 1986

Eu estava sentado na cama, com Leo adormecido na cama ao lado. Não conseguia dormir. Não poderia dormir. Mamãe e papai estavam na mesa da sala, sabia pela luz acessa da sala. Estava tarde, eles vão dormir bem cedo, já que acordam antes do sol.

Só que desde um tempo eles parecem ir dormir mais tarde, acordam mais cedo, andam com um semblante preocupado, e eu queria saber o que estava acontecendo. Se eu estivesse indo com mamãe à cidade, não seria difícil descobrir. Mas não, vamos deixa-lo com Pablo!

E desde o dia 28, para ser mais exato, a última sexta feira, que venho ficado quase o dia todo com Pablo, a mãe, Dete e as crianças das quais a mãe de Pablo cuida, trabalhando como babá. Ela havia me colocado, inclusive, para fazer algumas coisas paras as crianças!

—Mas eu não sei fazer “mamaneira” ... “Madaneira” ... Esse negócio aí! –lhe disse.

—Ora bolas, e como vai aprender? Um dia precisará cuidar dos seus filhos! –ela me respondeu.

—Eu não vou ter filhos! - quase gritei para ela, que revirou os olhos.

—Não me responda, e vá pegar o leite. Tenho certeza de que terá filhos, e mais de dois. Só quero saber quem será a mãe... Que tal a Belle? –ela implicou, e eu cruzei os braços, verdadeiramente bravo.

—Eu nunca vou casar com a Belle, e nunca terei filhos! –exclamei antes de ir pegar o leite.

Leo estava amigo de Dete, afinal, tinham a mesma idade. Descobri que ela gosta de coisas redondas e preferencialmente, de vidro e que se mexam. Ela quase comeu o globo de neve de Pablo, que basicamente deu um ataque quando a viu com seu globo de um boneco de neve na boca.

Dete também era estranha. Algumas vezes, ela conversava sozinha ou olhava fixamente para um ponto, como se visse um fantasma. E quando perguntava, ela confirmava, e balançava a cabeça como se saísse de um transe.

E-S-T-R-A-N-H-A.

Porém, lá, as coisas pareciam mais normais. Na casa de Pablo, tudo continuava o mesmo, e eu ainda não tinha visitado Belle desde o dia em que a conheci.

Eu não estava curioso.

E eu não queria vê-la.

É ruim que alguém dia eu vá ficar andando com menininha por aí.

Papai e mamãe continuavam seu fuxico na sala. Eu ouvia, mas não distinguia as palavras, só as vozes. Papai estava explicando algo, era o que parecia, e mamãe discordava. E assim ficavam por vários minutos, assim como tem sido nas últimas noites.

Porém hoje eu faria diferente.

Assim que fiquei 100% certo de que Leo estava dormindo (como uma pedra, vale ressaltar), saí do quarto e fiquei atrás da parede do corredor, perto da porta da sala, onde eu conseguia ouvir e entender o que estavam falando.

—Olavo, tem que ter outro jeito! –mamãe argumentava.

—E que jeito? Está aí, ou vendemos alguns cavalos e porcos, ou iremos passar fome! Já estou arrumando um jeito de conseguir outro emprego para a noite, mas não minta para mim, a maior parte dos seus clientes já teve que dispensar o serviço... –e a voz de papai morreu.

—Eu sei, não nego. –minha mãe respondeu, nervosa –Eu só não quero abandonar meus bichos...

Como assim, vender os meus bichinhos? Por quê?

—Querida – papai chamou, bem calmo –Esse Plano Cruzado pegou e quebrou todos nós. Aquele cachorro sarnento do Sarney é um grande culpado, mas se nós não abandonarmos alguma coisa, Leo e Pedro irão passar fome.

Mamãe soltou um soluço, que me fez perceber que ela estava chorando em silêncio durante a fala do papai. Passar fome? Por que eu passaria fome?

—Eles podem ajudar... Vou levar Leo comigo para a ferraria, ele ama aquele lugar e ama ficar perto do fogo. Você pode levar Pedro até a cidade e fazê-lo conseguir clientes... Nem vendendo os bichos conseguiremos esses Cruzados o suficiente para poder comprar comida. –papai continuou a falar, enquanto eu continuava confuso.

Eu mal consigo amarrar o cadarço, quanto mais arrumar clientes! Eu arrumar o quarto é meio que um milagre!

—Tudo bem... O importante é não deixar nada faltar pro Pedro e pro Leo. –mamãe terminou quase que num sussurro, e quando veio um tempo de silêncio, imaginei que eles se abraçaram. Porém, quando escutei os primeiros passos, corri pro quarto e me sentei na cama, não daria tempo de fingir que estava dormindo.

—Pedro? –mamãe questionou assim que me viu sentado na cama. –O que faz acordado?

—O que está acontecendo? –perguntei, e enquanto um brilho passava pelos olhos de mamãe, ela manteve o sorriso doce enquanto sentava na minha cama. –O Chocolate vai embora?

Chocolate era um potrinho, mas eu já o considerava meu cavalo. Tinha ciúmes dele até com Leo, e não suportaria vê-lo ir embora.

—Sim, meu amor, o Chocolate vai embora. Mas não fique com essa cara, vai ficar tudo bem... Mamãe ama você, entendeu? –ela acariciou meus cabelos castanhos bem claro, quase que loiros, enquanto me dava um beijo na testa. Sorriu, eu deitei e ela me cobriu.

Ainda assim, dormi infeliz, insatisfeito e com uma incrível sensação de perda.

(***)

Na manhã seguinte, recebemos uma visita logo de manhã. Mamãe estava terminando de arrumar as roupas no cesto quando duas figuras chegaram no portão.

—Quem será? –minha mãe perguntou à si mesma, e foi atender enquanto eu e Leo terminávamos o café.

Então, quando ela voltou, estava acompanhada de um homem de cabelos pretos com suas calças justas, camiseta xadrez de botão, botas e um chapéu palha, além da menina que eu conhecia bem, com os cabelos pretos caindo no rosto, uma blusinha branca e uma bermuda de bolinhas, além dos sapatos pretos fechados.

—Pedro, Leo, cumprimentem o senhor Lopes e a Belle. –mamãe mandou.

—Bom dia, senhor Lopes! –eu e Leo falamos ao mesmo tempo, com a boca cheia de pão.

—Fiquei invisível? –Belle perguntou, meio brava.

—Bom dia, Belle. –eu lhe disse, e Leo foi até ela abraça-la. Puxa saco.

—Bom dia, meninos. –ela respondeu.

—Pedro –mamãe falou, vindo até mim- O Otávio veio comprar o Chocolate.

Então, meu mundo caiu. Apesar de nunca ter sido birrento, eu caí no choro, gritando para ele não levar o Chocolate, e batendo na mesa. Belle e Leo pareceram se assustar, enquanto mamãe tentava me acalmar.

Mamãe me abraçou e me pedia para parar, mas eu não parava. Então, ela me abraçou até que eu parasse.

Não me culpe, eu tinha três anos.

—Não leve o Chocolate. –pedi para Otávio, que me pareceu desconfortável.

Mamãe me mandou um olhar bravo.

—Venha, Otávio, vou te levar até o Chocolate. –mamãe falou e saiu com Otávio. Deitei minha cabeça na mesa, ainda chorando.

Uma mão tocou meu ombro, com cuidado. Provavelmente Leo, achei. A mão começou a fazer um carinho no meu braço, e eu levantei a cabeça.

Belle me olhava com seus olhos azuis-de-vários-tons, e eu puxei meu braço com força.

—Sai de perto de mim, garota! –gritei para ela, que recuou um pouco assustada. –Eu não gosto de você e não quero ser seu amigo! Quer saber, eu odeio você! Vocês estão levando meu Chocolate!

—Pedro, olha... –ela começou, porém a cortei.

—Eu não quero saber. Quero que você vá embora. –eu lhe disse, mais calmo.

Belle mudou o olhar de pena e pesar para um olhar de raiva.

—Está me mandando embora? Sem me deixar explicar? –ela quase berra, eu só acenei e fui para o meu quarto, me certificando de bater a porta do meu quarto bem forte.

Da janela do meu quarto, porém, eu conseguia ver o portão e vi Otávio saindo com Chocolate e o Rubi –outro cavalo, bem mais velho -sendo puxados, além da minha mãe, e novamente quis chorar.

Não o leve, por favor... Não o leve embora.—pensei.

Belle saiu correndo da casa, e foi para perto do pai. Não pude observar sua expressão por conta dos vários fios em seu rosto, já que estava ventando. Eles se despediram no portão, e vi Otávio colocar Belle em cima de Chocolate, que tinha a minha idade, já era quase um cavalo –só que na minha cabeça, era meu potrinho. Belle ficou meio desajeitada, mas se despediu com um aceno. Otávio montou em Rubi e então, foram embora, até que saíram completamente do meu campo de visão.

Sentei no chão e voltei a chorar, só que silenciosamente, como mamãe havia feito essa manhã.

Queria sair de lá, ir até Belle e Otávio e manda-los me devolverem meus cavalos. Eram meus, eles não podiam pegar! Mas continuei lá, num canto, chorando.

E Chocolate subia a rua com uma ladra.

(***)

Mamãe me deixou com Pablo novamente, mas levou Leo com ela.

“Vou deixá-lo na ferraria com seu pai, para ajudá-lo, porém acho melhor você descansar hoje.”, foram as palavras dela.

Tentei de tudo. Bolinha de gude com Pablo, balançar chocalhos com Dete, até ajudei a mãe de Pablo em algumas coisas, mas nada tirava o Chocolate indo embora da minha cabeça.

—Então você está me dizendo que a Belle tomou o Chocolate de você? –ele perguntou. –Espera, qual é o Chocolate mesmo?

—É o mais novinho. –expliquei. –O que nasceu com aquele problema que faz com que as orelhas fiquem grandes demais.

—Ah –o olhar dele clareou –O jumento.

—Ele não é jumento!

—Não. –ele continuou- Eu falei do seu amor pelo jumentinho, que é o seu cavalo-jumento. E comentei que ele estava à venda, aí ela foi conversar com sua mãe. É só o que eu sei.

Fechei o punho com força.

—Aposto que ela só comprou porque sabia que ele era importante para mim.

Pablo tombou a cabeça, parecendo pensar.

—Sabe, Pedro, eu tenho passado muito tempo com a Belle ultimamente, e ela é realmente legal. Ela não faria isso. –ele me falou.

Torci o nariz, irritado com ela. Muito. Nunca tinha ficado tão irritado com alguém.

—Do que vocês dois tem conversado? –indaguei do nada.

—Nada especifico. Ela veio me mostrar a sapatilha de balé que a madrasta fez pra ela, foi a própria Maria que fez. Belle parecia tão feliz com as sapatilhas rosas... –ele comentou.

Olhei para ele, e bastou um segundo para que ele traduzisse meu olhar. Pablo fechou a cara rapidamente.

—Não mesmo. –avisou. –Nem conte comigo. Sou amigo da Belle.

—Mas é meu amigo muito antes de ser amigo dela! –retruquei.

—Pedro... Eu não vou fazer isso. É errado.

Me levantei irritado.

—Fique aqui, então.

E saí correndo da varanda, subindo a rua.

(***)

Sabe quando aquele vozinha irritante fica sussurrando no seu ouvido quando está fazendo algo errado? A minha faltava berrar, “Okay, chegamos, hora de ir, game over!”. O pai dela não estava, a caminhonete não estava na garagem. Na cozinha, uma mulher loira com o cabelo preso num coque lavava a louça, e Belle havia colocado um balanço de pneu numa árvore, onde estava agora, brincando.

Chocolate e Rubi estavam perto dela, grandes vasilhas de feno e água não muito distantes deles. Falando neles, percebi que agora a casa tinha um estábulo – o pai dela ser marceneiro provavelmente ajudou, já que era de madeira. Ainda assim, me senti com ciúmes dos meus bichinhos.

Indo pela parede, já que as casas da época não tinham muro*, eu entrei pela primeira janela que vi que não era da cozinha. Devido ao meu tamanho, coloquei as mãos na janela, coloquei os pés na parede para me segurar, e fui subindo. Caí no quarto num batuque, e várias partes do meu corpo doeram com a batida. Mas eu precisava fazer isso. Para a minha sorte, acabei num quarto vermelho cheio de desenhos de bailarinas, com uma cama com um lençol rosa, um guarda-roupa rosa, um tapete de borboleta, cortinas de borboleta, uma mesinha de borboleta cheia de papéis, uma prateleira com alguns livros e ... um par de sapatilhas rosas.

Peguei as sapatilhas. Eram pequenas, mas delicadas, exatamente como as de bailarinas. Entendi naquele momento o porquê de Belle ter se apaixonado por aquelas sapatilhas, elas eram realmente lindas e pareciam ter sido feitas à mão.

Com as sapatilhas nas mãos, peguei uma cadeirinha do quarto e a coloquei perto da janela, para sair com mais facilidade, e tomei novamente o caminho da casa de Pablo.

(***)

—Eu não consigo acreditar que você realmente pegou as sapatilhas da Belle. Você tem que devolver. –Pablo recriminou, assim que voltei com as sapatilhas.

—Só quando ela devolver meus cavalos. –falei.

—Eu não considero Chocolate exatamente um cavalo, mas tudo bem. –ele brincou, no que eu mostrei a língua.

—Quanto tempo até ela descobrir? –me perguntei.

—Rápido. Belle ama essas sapatilhas. –e Pablo deu de ombros. Logo, ele voltou com uma bola de futebol, e fizemos um gol a gol usando garrafas vazias para marcar o gol. Ainda estávamos aprendendo, dominando essa coisa de “movimentos”. Eu honestamente, achava que poderia vir a ser um jogador algum dia, só preciso de muita prática.

Belle chegou correndo na mesma roupas na qual a vi hoje de manhã, só que com os olhos vermelhos. Ela primeiramente, se voltou para mim.

—Eu sei que você pegou! Onde estão as minhas sapatilhas? –ela gritou.

—E eu sei? –me fingi de bobo.

—Pablo, você não pegaria, não é? –ela olhou para o moreno, que assentiu. Belle novamente olhou para mim, os cabelos pretos tampando o lado esquerdo de seu rosto por causa do vento. –Pedro, se você pegou, por favor, devolva.

Pablo me mandou o olhar antes de falar.

—Pedro, devolve. –ele mandou.

Grande amigo.

Não era algo que eu faria com Pablo, mas irritado com ela, peguei as sapatilhas rosas que deixei no quarto de Dete –caso a mãe de Pablo encontrasse, iria disfarçar, e quando voltei, as balancei na mão.

—Essas aqui? –perguntei sorrindo, vendo Belle estar à beira do desespero. Ela correu até mim, e o que fiz?

Saltei da varanda de Pablo e corri também, subindo a rua –mas tomando um caminho diferente, para não passar pela casa de Belle.

Belle até que era rápida, quase me alcançava. Quase. Entrei na floresta, um atalho que levava ao lago e depois à cidade. Não era muito difícil andar lá, já que eram árvores grandes, mas bem separadas umas das outras, e o chão era coberto daquele troço verde... Líquen? Era esse o nome? Eu particularmente, gostava de lá. Era bem reservado- ótimo lugar para um esconde-esconde.

Tentei manter uma distância segura de no mínimo, um metro de distância, para chegar sem demora ao lugar em que eu estava pensando. Belle gritava para que eu parasse e devolvesse as sapatilhas dela, mas eu nem ligava. Estava quase rindo da minha arte.

Então, cheguei. O penhasco à beira do lago que ficava no caminho para a cidade –um atalho para lá. Me aproximei da beirada, balançando o par de sapatilhas. Belle faltou morrer.

—Pedro, volta pra cá! Você pode cair daí! –ela avisou, se aproximando devagar. Eu gargalhei.

—Vai pegar, Isabelle. –provoquei. E então, joguei o par de sapatilhas pelo penhasco.

—NÃO! –ela berrou. Então, ela chegou perto de mim, olhando o sapato se afundar na água. –Por que você fez isso?

—Você levou o meu cavalo. –respondi, e embora não tenha dito exatamente as palavras, o significado real quase que tomou forma entre nós.

“Você tomou algo meu. Agora, tomei algo seu”.

Belle olhou para mim por alguns minutos, e sabia que estava quase que com uma cara de ódio.

—Você não me deixou explicar. –ela falou. –Eu não levei seu cavalo.

—Levou sim!

—Não. Pablo me falou do seu cavalinho, e eu achei fofo, mas a maior parte das pessoas não quer um cavalo deficiente. Quando perguntei à sua mãe, ela falou que não achasse alguém para comprar, ela teria que vende-lo para alguém fora da cidade, e você ficaria arrasado, já que não o veria nunca mais. –ela começou –Meu aniversário é daqui uma semana, no dia nove. Eu troquei a minha escola de balé, Pedro, pelo seu cavalinho. Porque eu queria ser sua amiga. Pedi ao papai que comprasse o Chocolate, assim você ainda poderia visitá-lo e brincar com ele quando quisesse. E quando contei para Maria, ela ficou feliz e sugeriu que eu fizesse uma surpresa. E como uma recompensa, ela mesma fez aquelas sapatilhas.

Quando ela terminou de contar, os olhos de Belle brilhavam pelas lágrimas que ameaçavam cair, e por isso ela ficou olhando para baixo, para o lugar onde as sapatilhas afundaram. Olhei para baixo também, muito envergonhado.

—Desculpe. Eu não sabia... Belle, me perdoe. –me desculpei, sem olhá-la. Estava me sentindo muito mal para fazê-lo.

—Agora não importa mais. –ela enxugou algumas lágrimas teimosas – Porque eu não quero mais ser sua amiga, Pedro.

Eu ainda ouvi seus passos se retirando da beirada, e levou um minuto para que uma sensação horrível cair sobre mim e eu fosse atrás dela.

—Belle, eu realmente sinto muito! –falei atrás dela.

—É, eu também. –respondeu.

—Belle...

—Isabelle. É Isabelle pra você, seu idiota! Não adianta, Pedro, agora eu não quero ser sua amiga, não gosto de você, posso até dizer que te odeio! –ela berrou, e eu parei.

Observei Belle- ou Isabelle, tanto faz- ir embora, entrando na floresta de novo. Me perguntei porque eu passei a me importar tanto com a amizade dela. Porque queria tanto que ela me desculpasse, porque queria ir até ela e implorar que me perdoasse.

Bem, crianças são idiotas. E eu cometi umas das maiores idiotices da minha vida naquele dia, com a pessoa mais incrível do mundo. E agora eu vou concertar isso...

(***)

O caminho do lago até a casa de Berenice foi rápido, embora o terreno não colaborasse. Eu consegui correr até lá, onde Analícia brincava no quintal com várias bonecas de pano.

Por que tudo estava normal fora da minha casa?

E onde eu estava com a cabeça de ir procurar Berenice? Ah, é. Ela me ajudaria.

Berenice era uma mulher magra, aos seus 30 anos, de cabelos pretos curtos e um sorriso inocente e acolhedor, a mãe de todo mundo- além de ser a mãe da Analícia.

—Analícia? –chamei.

—Sim? O que faz aqui? –ela respondeu. Analícia não era exatamente simpática, apesar da sua aparência de loirinha fofinha com olhos azuis e sorriso branquinho, além da ligeira obsessão por fadas.

—Sua mãe está? –perguntei educado. Os olhos dela se apertaram.

—O que quer com minha mãe? –retrucou.

Então, a figura familiar de Berenice saiu da casa.

—Pedro, que bom ver você! Venha cá, ande! Vem Analícia, venham os dois! –ela falou animada, me puxando pela mão para dentro da casa –Eu fiz alguns doces, venham comer.

Minha barriga roncou só de pensar, e ela deve ter percebido. Sorriu docemente e puxou uma cadeira de madeira bem simples na mesa da cozinha para que eu sentasse, e Analícia sentou do outro lado da mesa, claramente incomodada com a minha presença. Berenice pegou uma fornalha de biscoitos do chocolate com formato de anjos e os colocou na minha frente.

—Pode comer. –e ataquei.

Os biscoitos estavam incríveis, e as gotas de chocolate derretiam na minha boca. Fazia quanto tempo que eu não comia um doce? Estava crocante, e bem doce. Eu poderia comer a fornalha inteira, mas comi apenas 8 de toda a fornalha, embora Berenice tenha me oferecido mais.

—Na verdade, Berenice, eu queria te pedir uma coisa muito importante para uma amiga. –pedi, e ela arqueou a sobrancelha. –Você ainda trabalha fazendo sapatos?

Sim. Berenice, apesar de não ser seu trabalho “oficial”, Berenice sabia e vendia sapatos para muita gente da cidade. Eu tinha alguns pares de tênis que ela havia feito, e eram muito bonitos. Porém Berenice seria a única que me daria um par de sapatos sem pedir dinheiro em troca, porque ela era realmente uma pessoa boa.

—Muito pouco, Pedro... Acho que você ainda não entendeu o que está acontecendo, não é? O presidente aprovou uma coisa chamada Plano Cruzado, e isso desestabilizou todos nós financeiramente... Eu não estou sofrendo por causa das poupanças que fiz ao longo dos anos, só que muita gente foi pega desprevenida, e não podem mais gastar dinheiro com algo além do necessário... Você entendeu?

Tombei a cabeça para o lado enquanto tentava entender o que ela havia dito.

—Então o papai e a mamãe não tem dinheiro? –eu tentei fazer um resumo do que ela havia dito na minha cabeça, sem ter entendido nada.

Berenice suspirou. –É por aí.

—Berê, mas mesmo assim, eu queria muito que você fizesse um par de sapatilhas de balé por mim. –pedi.

—Sapatilhas de balé? –Analícia estranhou.

—São para Belle... Berenice, você poderia fazer sapatilhas rosas de balé para mim por favor? São importantes... –disse.

Berenice sorriu.

—Claro, pequeno, mas por que quer dar as sapatilhas de balé para Belle? –ela indagou, enquanto se levantava da mesa e me indicava um caminho para a sala. –O pé da Belle é mais ou menos do tamanho do da Analícia?

—Acho que sim, não sei... E Belle está brava comigo, preciso pedir desculpas para ela.

—Sei... Espere aqui na sala, enquanto eu faço a sapatilha da Belle com a medida da Analícia. –ela orientou.

Sentei na sala, com a loirinha me olhando.

—Sabe, você podia tentar se relacionar com as outras crianças... Você só fica aqui com sua mãe... –tentei iniciar uma conversa.

Analícia sentou na cadeira de balanço da sala, onde se balançou, sem me responder.

—Eu gosto de ficar aqui com a mamãe... E o papai fica o dia inteiro no trabalho.

—Talvez seja por isso que ela gosta de ter você aqui. Precisa de companhia. –comentei, não ligando muito. Analícia não me deu nenhuma resposta ou oposição sobre isso, dessa vez.

Ficamos num silêncio desconfortável, ela balançando na cadeira e eu sentado, esperando. Analícia não parecia muito disposta a conversar, mas vamos lá. Eu sou comunicativo.

—Não quer brincar de nada enquanto esperamos? –sugeri. Analícia sorriu.

—Sabe brincar de casinha?

Oh, não.

(***)

Eu não quero falar muito do assunto, mas sim, eu brinquei de casinha com Analícia. Não sei se fico surpreso por ter brincado de casinha ou por ter brincado com Analícia. Nós pegamos algumas panelas, pratos, talheres e etc., de brinquedo claro, e no caso, eu era o pai e ela a mãe.

Que ridículo, vocês gostam de brincar disso?

Enfim, não foi completamente ruim. Analícia pareceu a mãe de Pablo, me ensinando a cuidar do bebê- só que os dela eram de verdade, e o de Analícia era de pano. “Nosso” bebê chamava Liza, e deve gostar muito de colo, porque Analícia me fez ficar com ela o tempo inteiro.

As partes ruins foram que Analícia só aceitava se você fizesse exatamente o que ela queria na brincadeira, tudo era do jeito dela. Eu concordava, porém a maior parte das crianças não iria, e Analícia ia acabar ficando sozinha. Isso que dava ficar o dia inteiro com a mãe que gostava de mimar.

No final, Berenice me salvou, aparecendo na sala com um par muito bonito de sapatilhas de balé cor de rosa claro.

—São de couro, coloquei duas solas para ficar macio na hora de fazer os passos. E não é de ponta. –ela avisou. –Tem dois elásticos e aposto que ela vai amar as fitas rosas.

O par era realmente muito bonito. Abracei Berenice bem forte, agradecendo muito.

—De nada, Pedro. Se precisar sabe que pode contar comigo. A Belle deve ser importante para você... –ela riu, enquanto eu fechava a cara. Eu e a Belle? Nunca. –Agora, para garantir que ela irá te perdoar...

Berenice pegou uma vasilha, uma tupperware, e colocou os biscoitos que sobraram nela. Logo depois, me entregou.

—Leve para ela. O pai de Belle está trabalhando até nos finais de semana agora, Belle estar sentindo a falta dele ... Pelo que sei, ela não se dá bem com Maria. –ela me sugeriu.

—Muito obrigada, Berenice. Você é incrível... Sabe, você devia fazer doces para doar... Se a situação está ruim não só para papai e mamãe, muitas outras crianças devem estar sentindo fome, sem comer um biscoito há bastante tempo. –pensei em voz alta para ela, que surpreendentemente, pareceu levar a ideia em consideração.

—É uma boa ideia. Agora vá pedir desculpas à sua amiga. –ela falou, me levando até a porta.

—Obrigada de novo, Berê. E até, Analícia. –me despedi, e corri para a casa de Belle.

(***)

Belle estava montada em Chocolate quando cheguei. Parecia estar tentando aprender a andar de cavalo, e usava a rua de terra para ir de uma ponta até a outra. Chocolate estava escovado, selado e não parecia infeliz quando cheguei. Quanto à Belle, ela estava melhorando.

E a madrasta dela, uma loira muito bonita, com regatas brancas, uma calça justa, botas de couro e cachos loiros num coque, a Maria, estava sempre perto, para garantir de que ela não ia cair. Como Belle cavalgava devagar, era fácil. Não parecia má, na verdade. Ela sorria e incentiva Belle, dizendo que ela estava indo bem. Por que Belle não se daria bem com ela?

—Belle! –gritei, à alguns metros de distância dela. Belle torceu o nariz quando me viu, e Maria a ajudou a descer.

—Belle, eu vou guardar o Chocolate, tudo bem? –Maria avisou, e Belle assentiu.

—Oi. –comecei, e ela me olhou irritada.

—O que você quer? –ela me cortou.

Mostrei os biscoitos e as sapatilhas, que eu havia escondido nas costas. O rosto de Belle brilhou de felicidade. Rapidamente, ela pegou as sapatilhas, passando-as nas mãos.

—São lindas... São pra mim? –vi os olhinhos azuis dela brilharem, seus estranhos olhos azuis de vários tons.

—São... Me perdoa? –pedi.

Belle sorriu.

—Está perdoado. Onde arranjou? E os biscoitos?

—Berenice que fez: as sapatilhas e os biscoitos. São para você me desculpar. –e ela riu.

Fomos para a varanda dela, onde eu me sentei na escadinha. Belle trouxe uma toalha e eu a estiquei no chão da varanda, e depois ela voltou com uma jarra de água de coco. Juntos, nos dois comemos os biscoitos deliciosos de Berenice e tomamos água de coco.

—Pedro... Obrigada. –Belle agradeceu do nada. Antes eu olhava para a paisagem da varanda de Belle, mas passei a olhar para ela.

—Obrigada, Belle. –disse para ela.

Terminamos de comer na sombra da varanda de Belle, e eu agradeci imensamente já que não havia almoçado. O sol estava fraco, mas o vento continuou. Quando acabamos, ajudei para que ela levasse as coisas de volta para a cozinha, me despedi dela e voltei correndo para a casa de Pablo, que me esperava na varanda.

—Cara –ele disse quando cheguei –Você tem muitas coisas para me contar.

E foi assim que eu ganhei a minha melhor amiga.


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Notas finais do capítulo

Tia Rarity também é cultura, então...
No dia 28 de fevereiro de 1986, o então presidente José Sarney aprovou o Plano Cruzado, que foi quando a moeda brasileira virou o Cruzado, e deixou de ser os Cruzeiros, sendo 1 Cruzado = Mil Cruzeiros. Deu certo? NÃO! O dólar e a libra subiram muitos, o salário mínimo caiu, os preços ficaram congelados, vendas pioraram, etc, etc, etc. Por que eu acho isso importante? Porque eu acredito que foi um dos motivos da Berenice começar a distribuir os doces: as coisas não estavam boas e tinha crianças passando fome. E a Analícia não pode ser toda mal desde o começo, eu acredito que todos nascemos bons e vamos ficando maus conforme o tempo. Minha menina do Lago é uma vaca? É. Mas não nasceu assim.
Esse capítulo, na verdade, eram dois que eu juntei em um, para trazer a Viúva mais depressa. No próximo capítulo teremos o pai do Pablo, a avó e a tia da Viúva, a escola de balé da Bailarina, e etc. Depois vem a Viúva *0* Tadinha gente, eu vi aquela menina sorrindo, com seus cabelos lisos e mandando um olhar pro Absinto e quase ri.
Aquela não é minha Viúva. Vocês vão me odiar, mas a minha Viúva tem um motivo pra ser chamada de Viúva. Ela se casou? Claro que não. Mas tem uma razão.... La la la la lá.
Caso não tenham entendido a parte do Plano Cruzado (que eu nem tentei explicar já que quem narra é o Porta Voz com 3 anos, então ele não ia entender nada mesmo), procurem no Google.
FATOS ADICIONAIS:
1- O Chocolate (que vai ser bem importante na história quando a rixa BelleXAnalícia começar a surgir) foi comprado em cruzeiros ainda, porque o pai da Belle não é rico nem nada. Na verdade, ele é bem pobre (todo mundo nessa merda é pobre, com exceção da Viúva, ela tem mais condição financeira que o resto dos amigos). Os pais do Porta Voz o venderam assim porque precisavam fazer uma venda rápida.
2- Na verdade, esse plano da Belle foi uma ideia primeira da Maria. Como assim? A Maria casualmente falou que se a Belle pedisse o Chocolate de aniversário, ele seria salvo e o Pedro ficaria feliz. Então a Belle repetiu saporra como ideia dela.
3- A imagem do capítulo não seria a Belle, na verdade, é um que pretendo colocar mais pra frente: o globo de neve do Pablo. Mas como eu foquei mais nesse início de uma das amizades mais lindas que eu já vi, optei pelo olhar que de cara me lembrou o da Belle.
Qualquer outra curiosidade que queriam saber, perguntem, que eu não lembro mais :v E na imagem, reparem no olhar e na expressão da Isabelle, é o olhar da Belle quando o Pedro chega na casa dela depois deles brigarem. E pensem bastante na Dete, a irmã do Violinista, ela não lembra ninguém? E o Chocolate?
Vocês realmente tão achando que essa conta é pra morte deles? KKKKKKKKKKKK sabe de nada, inocente! A história não acaba quando eles morrerem! Termina com uma cena muito linda que eu estou planejando, depois da morte deles, da Belle entregando o crânio pra Dona Morte e tal, mas chega de spoiler e depois, um epílogo sobre como seria a vida deles se nada tivesse acontecido, eles tivessem crescido.... A fic termina com o final que eles merecem.
COMENTEEEEEEM!