Ethereal escrita por Ninsa Stringfield


Capítulo 3
Segundo




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ANTES

O ar gélido penetrava em seus pulmões e fazia com que ela respirasse com dificuldade. Ficou encarando as chamas por tempo suficiente para que pontos escuros começassem a aparecer em sua visão. Suas mãos estavam tão geladas que ela mal podia sentir seus dedos; se não entrasse logo morreria ou desistiria, e eventualmente acabaria morrendo. Olhou ao redor como se algum estranho pudesse aparecer ao seu lado e oferecer uma terceira opção.

Ninguém apareceu.

Levantou a barra de sua saia e começou a andar. Não fazia um belo trabalho, considerando que seus pés se enterravam nos montes de neve e acabaria com frio e molhada de qualquer jeito. Tentou ignorar o estado de suas roupas enquanto abria a porta e via seu peito se enchendo de uma sensação acolhedora. Ficou surpresa com a agitação do lugar, parecia tão quieto do lado de fora.

Mulheres com decotes exagerados serviam as meses cheias de homens bêbados e histéricos; e um homem parecia fazer uma tentativa de canto em cima de um palanque improvisado, sua melodia nada atrativa. A gritaria parecia reinar sobre aquele lugar, como se ninguém ali soubesse o tom de uma conversa civilizada; mas mesmo assim, tudo ali era tão...convidativo. Observou ao redor. Todos estavam tão felizes...tão à vontade, queria se juntar a eles, dançar e cantar como se não houvesse amanhã. Mas também havia aquela sensação incomoda por debaixo de sua pele, o perigoso peso da culpa.

Avistou a bancada da qual todas as garçonetes saim com seus pedidos em mãos, uma mulher baixa e robusta se encontrava no outro lado anotando pedidos e xingando clientes enquanto recebia os pagamentos. Sua pele brilhava por causa do suor, tão negra quanto a noite e tão esplendorosa quanto o céu estrelado, que justapunha-se com a alegria presente em seus cabelos encaracolados, presos num coque apressado e vivos no ar. Diane desejou que não tivesse a aparência tão morta do jeito que tinha, e se aproximou do balcão.

A mulher não pareceu perceber sua presença nem mesmo quando Diane pigarreou alto, o som sendo abafado pela gritaria e a cantoria do homem desafinado. Ela esperou que a mulher acabasse de dar ordens a uma das garçonetes e se jogou para cima dela assim que a outra foi embora antes que perdesse sua chance. A mulher atrás do balcão deu um pulo para trás, as mãos segurando o coração.

— Puta merda, garota - xingou ela - Quase tive um ataque do coração!

— Me desculpe - se apressou ela a dizer - Me desculpe, por favor, não era minha intenção.

A mulher se recompôs e jogou os cabelos para trás como se assim recolhesse sua dignidade.

— Apenas saia da minha frente, está atrapalhando a circulação.

Ela não havia percebido a moça parada atrás dela com uma bandeja de um metal retorcido vazia em mãos. Deu passagem, enquanto pedia perdão.

— Me desculpe - tornou ela a dizer, mas a mulher já não mais prestava atenção nela - Senhora, por favor, só preciso de um minuto.

A mulher exasperou. Revirou os olhos e encarou Diane, dispensando a garçonete atrás dela com um aceno impaciente das mãos.

— O que deseja, pequeno bezerro? - ela parou um segundo para observar o estado da garota. Seu olhar se alternava das manchas de sangue para os rasgos nas laterias de seu vestido. Assumiu uma expressão verdadeiramente preocupada, saindo de trás do balcão por uma portinhola que Diane nem reparara - Oh, céus! O quê aconteceu contigo, garota?

Diane balançou a cabeça, querendo evitar o olhar de preocupação da mulher.

— Foi atacada, é isso? - havia realmente uma sombra de pena em seu olhar, misturada com uma espécie de raiva e solidariedade - Pobrezinha, eles te feriram muito?

— Não.. - começou ela - Quer dizer, sim. Mas não foi nada demais. Consegui escapar, eles estavam muito bêbados - a mulher ergueu uma sobrancelha, outra garçonete se aproximou mas ela também a dispensou - Mas isso não vêm ao caso, não é a verdadeira razão de eu estar aqui.

— Não? Então o que quer?

— A senhora seria a Bev? - perguntou a garota - A dona desta hotelaria?

A mulher deu um sorriso orgulhoso.

— Sim, essa seria eu mesma.

— Ouvi dizer que precisa de uma nova funcionária - começou ela - Posso fazer qualquer coisa. Servir mesas, arrumar quartos, limpar o chão...qualquer coisa desde que me ofereça um lugar para dormir.

Bev a estudou com olhar. Ainda havia os traços de bondade que ela demonstrara há pouco, mas agora também parecia desconfiada. Deu um passo para trás, tirando suas mãos dos ombros de Diane.

— Quem foi que disse?

— Um dos funcionários da taverna local.

Engoliu em seco se lembrando do ocorrido. O modo como o garoto que parecia tão inocente e amigável a levou para fora e comentou sobre a hotelaria apenas para depois empurrá-la para uma parede e tentar arrancar suas roupas. Diane ainda conseguia sentir o pânico na pele. Outros três homens saíram de dentro da hospedaria e tentaram tirar proveito dela, mas estavam tão bêbados e desorientados que ela conseguiu usar isso ao seu favor, confundindo-os e escapando do grupo por um triz. Seu irmão a havia alertado sobre os perigos. Mas ele não sabia o que estava em risco, ela sabia. Diane passaria por tudo aquela humilhação mil vezes se assim pudesse ajudar sua família.

Bev pareceu ficar mais relaxada com a resposta, mesmo que ainda houvesse a sombra de um ceticismo em seu olhar. Diane apenas engoliu em seco.

— Infelizmente - começou a mulher - A vaga já foi preenchida, sinto muito.

Ela começou a ir para trás do balcão novamente, mas Diane a seguiu.

— Por favor, nem precisa me dar comida, me alimento de qualquer resto que encontrar - sua voz transparecia seu desespero. Aquela era sua última chance - Só preciso de um lugar para dormir, por favor.

Bev suspirou derrotada.

— Sabia que você pede muito por favor? É irritante - ela permaneceu calada, piscando avidamente com o olhar - Tudo bem - cedeu. Diane quis gritar de tanto alívio, abraçar a mulher se possível - Mas não fique tão animada, o trabalho não vai ser nada fácil.

— Eu não poderia pedir que fosse, muito obrigada mesmo.

— Isso é o que veremos - ela gritou por uma das garçonetes. Uma garota com uma aparência tímida e com certeza muito mais nova do que ela (uns catorze anos no máximo) se aproximou da dupla. Seu cabelo loiro-desbotado estava preso em um laço frouxo - Brielle, leve nosso novo bezerro para os fundos. Ela vai começar a trabalhar servindo as mesas, explique para ela todo o processo.

E foi isso, simples assim e Diane tinha conseguido um emprego.

Seu sorriso durou menos do que um minuto. A tal de Brielle, que parecia não ser de falar muito, começou a bombardeá-la com todo tipo de informação possível. Destacou a importância de nunca errar o pedido de um cliente e ressaltou - numa demonstração demorada - o jeito certo de se segurar uma bandeja. Diane não via onde o modo que carregava aquele pedaço de metal retorcido fosse fazer alguma diferença, mas não discutiu. Não tinha posição alguma para reclamar.

Meia hora depois lá estava ela servindo mais bebidas a homens que vomitavam de tão embriagados, escapando de seus gracejos e sorrindo como se realmente estivesse apreciando tudo aquilo. Foi pedida em casamento pelo menos umas três vezes antes que o nível da multidão começasse a abaixar. Brielle a tinha alertado do fato de que o bar nunca ficava realmente vazio, a garota suspeitava de que os mesmos homens estavam sentados naquelas mesas há anos.

Não fazia deia de que horas eram quando a porta da hotelaria abriu mais uma vez. Desta vez de fora para dentro. Diane já se via cansada encostada no balcão com muitas das outras garotas - percebendo que elas não se falavam muito entre si -, e seus olhos já estavam quase se fechando para uma soneca proibida quando ele chegou. Não tinha reparado que já tinha amanhecido, mas quando a porta se abriu e revelou o sol da manhã, e se viu cega quando a única coisa entre ela e o raio da morte eram a forma de um homem que projetava uma sombra em seu rosto.

Ela teve que piscar diversas vezes até se acostumar com a luz incomoda, e só depois de esfregar os olhos - tanto para espantar o sono quanto para desaparecer com os pontos negros que apareciam mais uma vez em sua visão - foi que entendeu porque a multidão do bar parecia ter ficada quieta tão de repente.

O homem que projetava a sombra em seu rosto se revelou por ser nada mais nada menos do que um garoto, talvez alguns anos mais velho que ela, mas ainda sim um garoto. Seu maxilar era sério demais para a idade, realmente, mas seu olhar era tão...jovial. E seu cabelo era, bom, no sentido literal da palavra, como lâminas de espada derretida, num prateado tão vivo e intenso que a fez questionar se estava delirando. Seria muito mais fácil confirmar qual era a verdadeira cor de seu cabelo se o garoto não tivesse o cabelo cheio de sangue. Na verdade, o garoto todo estava banhado em vermelho, como se tivesse mergulhado em um rio de sangue.

E o mais estranho de tudo, o mais estranho de tudo mesmo - contando com o sangue e a cor misteriosa de seu couro cabeludo - era o sorriso. Sim, o sorriso. Porque por baixo das camadas de líquido escarlate ele exibia um sorriso tão perverso e ao mesmo tempo autêntico e escárnio que Diane simplesmente não pôde acreditar.

Sentiu uma vontade inebriante de tirar aquele sorriso de seu rosto. Era tão errado. Tão patético. E tão lindo. Ela não conseguia desviar o olhar, não conseguia não reparar em cada detalhe de seu rosto. No modo como seu corpo parecia em perfeita harmonia, tão perfeitamente desenhado. Ela conseguia ver os traços de seus bíceps por debaixo do tecido fino e encharcado de sangue, e se sentiu temporariamente sem ar, mesmo que o ambiente todo parecesse muito mais cheio de oxigênio quando todos seguraram a respiração.

O garoto parecia não notar o alvoroço que causara, ao invés disso correndo os olhos pelo salão como se estivesse à procura de algo.

E ele continuou procurando até que seu olhar recaiu sobre Diane e ela congelou.


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