Com Os Braços Bem Abertos escrita por FreudDepre


Capítulo 1
Feliz Natal, Rino!




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São dez da manhã. Mais uma vez eu acordei sem ter o sono interrompido por uma mãe reclamando que eu durmo demais, ou um pai criticando essa postura no mínimo folgada. O motivo? Bem, minha mãe morreu no meu parto, e meu pai, bem, ele não para muito em casa.

Aliás, quando foi a última vez o que o vi mesmo?

Bem, isso não vem ao caso. O natal se aproxima e não acredito que ele seria workaholic o suficiente para me abandonar até nessa data. Pelo menos daqui a dois dias eu o verei, e eu já tenho tudo planejado: ficarei emburrado até que ele me dê atenção perguntando o que houve. Criticarei-o dizendo que prefere o trabalho a mim, ele desmentirá com um abraço, e essa contestação me confortará ao menos nesse dia.

Não é como se eu sentisse falta de uma família. Eu na verdade acredito nunca ter tido uma. Eu tenho mais curiosidade em saber como esse lance funciona mesmo. Quando nasci, fui para a casa da tia Mako, onde fui criado até os três anos de idade completos. No dia seguinte, pela manhã, ela teve um infarto fulminante e eu então morei com o meu pai até completar sete.

Com essa idade ímpar fui apresentado ao mundo dos internatos. Confesso que na época a ideia me animou. Eu era muito caseiro por falta de amigos. Não conseguia fazer muitos amigos na escola, e então pensei que um colégio interno acabaria me forçando a desenvolver amizades.

Uma pena que pensei da forma errada. Nos oito anos em que fiquei lá tive uns cinco ou seis amigos, e mesmo esses eram amigos de recreio. Sabe aqueles que parecem só existir na mesa do almoço, para você não pagar mico? Esses mesmos.

Talvez Nicolas, que era um ano mais velho quando eu já tinha os meus 13, pudesse ser o mais merecedor do título de amigo. Todo dia antes de dormir eu pegava um livro para ler. Eu dividia o quarto com ele e mais dois, e meu amigo Nicolas todas as noites perguntava o que eu estava lendo. Muitas das vezes comentava que já havia conhecido essa ou aquela história, e quando notava que eu as terminava, vinha perguntar o que eu havia achado sobre elas.

Ou Nicolas tentou ser meu amigo ou era tão sozinho quanto eu a ponto de usar literatura como ponto de ignição para sair do ostracismo social.

Mas bem, voltando ao meu histórico de moradias, aos 15, ao terminar o ensino médio, retornei para a casa do meu pai, onde já estou há cinco meses sem fazer absolutamente nada. Me considero muito novo para fazer vestibular, acho que mereço um descanso de tudo: das pessoas, da literatura, e principalmente da vida. Eu estava apenas aguardando o natal, data onde pediria ao meu pai o mais absurdo dos presentes: que ele volte a se envolver com mulheres.

Desde que mamãe morreu ele parece ter canalizado esforços para não pensar em amar outra mulher, e com isso o trabalho se tornou sua paixão, mas isso também o tirou de mim. Eu acredito que mesmo que não tenhamos os melhores vínculos familiares eu, como seu filho, posso abrir seus olhos para seus reais problemas.

Depois de repassar todo o plano de natal na minha cabeça vou para o computador jogar, e quando menos espero, já é noite e então vem o grande dilema: jantar um talo de alface que está na geladeira ou sair e fazer compras?

O mercado está cheio. Mal entro e já noto filas absurdas e um trânsito digno da famosa Avenida Paulista de São Paulo, no Brasil, nos corredores de todos os setores.

Eu avanço com calma com uma pequena cesta nas mãos, mas um elemento mal encarado parece estar indo tirar a mãe da forca e avança rapidamente até inevitavelmente esbarrar em mim.

Sem um pedido de desculpas, olho para trás e vejo o brutamontes que deve ser um pouco mais velho que eu seguir seu caminho rumo ao resgate da matriarca. Noto então que ele para bruscamente e olha para trás.

Fodeu. Eu odeio quando isso acontece. Odeio olhar alguém e esse alguém perceber. Não havia interesse nenhum nesse caso, só estava encarando por ele ter tido uma atitude grossa, mas não importava. Ele não sabia das minhas intenções e essa situação me incomodava.

Ele então volta um pouco e me diz:

– Estou ansioso para te conhecer.

Eu fico vermelho na hora. O que ele quis dizer com aquilo? Ele tá me achando com cara de gay? Ou foi uma ameaça de morte velada? Só sei que não tive tempo para raciocinar. Eu deixei minha cesta ali no chão mesmo e saí correndo do mercado para o mais longe que eu pude.

Já cansado, acabo dando de cara para uma pizzaria. Bem, se ele estava me seguindo para cometer um homicídio, acreditei que não o faria se eu estivesse em um lugar bem povoado. Entrei, matei minha fome, e ao não notar nenhum sinal de perigo voltei para casa.

A primeira coisa que fiz quando cheguei foi mandar uma mensagem ao meu pai perguntando quando ele retornava. Sem resposta, virei e dormi.

– Rino, acorda.

– Hã?

– Sou eu, filho.

Abro meus olhos espantado com o que vejo. Era meu pai com um embrulho embaixo dos braços. Eu esperava vê-lo só no dia seguinte, isso com sorte. Mas não, ele veio na véspera, e fiquei um pouco animado.

– O que faz em casa? - Pergunto como se não fosse normal.

– É véspera de natal. Precisamos preparar tudo, e precisamos conversar também.

– Mas antes posso abrir meu presente? - Pergunto deixando-me ser levado pelo meu espírito de criança.

– Só no natal.

– Sério?

– Estou brincando. Claro que pode. Inclusive é importante que você o abra antes de prosseguirmos.

Sem entender nada eu abro o embrulho. Era uma pequena pintura da minha mãe já grávida de mim. Presumi que fora pintada por meu pai, um arquiteto que amava transmitir em seus pincéis o mundo que enxergava.

– Rino, eu quero que saiba que reconheço que nunca fui um pai presente, mas foi a forma que encontrei de lidar com a morte da Margot. Por muito tempo eu pensei que nunca mais amaria outra mulher e me sentia extremamente culpado pelo o que ocorreu a ela. Por isso eu mal conseguia te encarar. Eu te peço desculpas, pois eu não deveria nunca ter me afastado do maior presente que alguém nesse universo poderia me dar: você.

Com as lágrimas retidas nos olhos, o abracei e pela primeira vez reparei no calor humano que aquele gesto de afeto que comumente fazíamos gerava e eu não reparava.

– Eu o conto isso e entrego essa pintura que quero que guarde com você pois eu resolvi seguir em frente, mas sinto que só poderei fazer isso com o seu aval.

– Do que está falando?

– De alguma forma eu sinto que você vai me apoiar e gostar do que tenho para te falar agora.

– Pai, você está me deixando muito curioso. Diga logo.

– Desça as escadas comigo para entender.

Quando descemos, havia uma linda mulher no sofá que aparentava ter a idade do meu pai e um menino um pouco mais velho do que eu de cabeça baixa.

– Rino, essa é a senhora Nakamura e esse é Takeshi, seu filho. A senhora Nakamura em breve será a senhora Kapa, e Takeshi seu irmão e melhor amigo.

Eu gelei. Fiquei meio tonto com o tanto de informação que deveria estar processando mas não conseguia. A começar por Takeshi, que quando levantou sua cabeça para me dizer "oi" mostrou ser ninguém mais ninguém menos que o garoto do supermercado. E que história era essa de senhora Kapa? Eles estão noivos, é isso?

– Eu sei, é muito para processar. Eu e a senhora Nakamura nos conhecemos há dois anos em uma conferência da empresa em Hokkaido. Há onze meses ela se mudou para o escritório da firma aqui na região, e então pudemos nos conhecer melhor.

– É por isso então que esse garoto falou comigo no mercado ontem. Ele já sabia.

– Não é "esse garoto", é Takeshi. E em breve ele e a senhora Nakamura irão morar conosco. Eles passarão o natal com a gente também.

– Ah, me desculpe se soou rude. Não foi a intenção. Eu fico feliz com tudo, de verdade, é surpreendente que as coisas mudem radicalmente da noite para o dia aqui. Até hoje a casa estava vazia, e hoje sou notificado até de que ganharei um irmão.

– Enfim, sejam bem vindos. - completo

– Nós ficamos muito felizes que nos aceite, Rino. Esperamos ser uma ótima família para você. - diz a senhora Nakamura quase senhora Kapa.

– Estou ansioso para te conhecer melhor, Rino. Não sei você, mas eu sempre quis ter um irmãozinho para cuidar - diz Takeshi em um tom que pareceu deboche.

– Irmãozinho? Você tem quantos anos? - pergunto.

– 17. E até onde seu pai contou,você tem 15. Perdeu a majestade! - diz Takeshi em um tom que confirma seu deboche.

– Rino, porque não apresenta a casa para Takeshi? Vamos precisar ampliar isso aqui e mexer em alguns cômodos, mas faremos um quarto para ele perto do seu. - diz meu pai.

– Claro, mostro sim. - respondo querendo dizer um "até que eu entenda qual é a desse cara, não me deixem sozinho com ele, por favor."

Subimos então as escadas e apresento o meu quarto.

– Nossa, mas que bagunça, Rino.

– É que eu não ligo para arrumação. Uma hora estaria tudo bagunçado de novo, não faz sentido arrumar.

– Vendo por esse lado até que sim, mas também mostra como você é um baita preguiçoso. - retruca Takeshi.

Eu o olho meio torto e começo a sentir que o clima entre nós poderá não ser um dos melhores. Mas talvez ele estivesse me testando.

Somos interrompidos pelo meu pai nos chamando de volta.

– Eu e Nakamura fomos chamados com caráter de urgência no escritório. Voltaremos logo. Então até lá, se deem bem.

– Eu preciso voltar para casa e terminar de arrumar algumas coisas. - diz Takeshi.

– Então podemos te deixar no caminho.

Me despeço da minha nova madrasta, meu novo irmão, e de meu pai. Observo todos eles indo embora no compacto carro prata que sempre me deixava feliz quando eu o via se aproximando de casa.

Volto para o quarto, me jogo na cama e tento então começar a absorver o que foi aquela última hora ali em casa. Minha vida praticamente deu um giro de 360 graus! Não, isso significaria que ela girou e voltou pro mesmo lugar. Digamos que foi um giro de 180.

Ainda preciso descobrir as intenções de Takeshi e se ele fará da minha vida um inferno, mas é certo que o natal não passarei sozinho e nem precisei pedir meu presente para que meu pai o desse. Amanhã teremos companhia para a ceia? Bem, nunca fiquei tão ansioso com uma data comemorativa.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo já está escrito e sai na quarta =) Tentarei manter um ritmo semanal. Peço desculpas por eventuais atrasos.



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