Uma dose de café escrita por Whoops


Capítulo 2
Ir às alturas




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Eu já tinha passado por aquele setor antes, tenho certeza disso. Um problema de lojas que são de apenas um tipo de produtos, no caso jogos, é que todo corredor que você vai parece ser exatamente igual e se torna praticamente impossível para pessoas não detalhistas saber se já passou por ali ou não. Eu me sentia andando em círculos, o que poderia ser completamente plausível se não fosse o fato que a loja era um retângulo (dos grandes, mas continuava sendo um retângulo).

Eu ainda estava analisando a terceira estante do novo corredor que eu havia entrado, os barulhos no chão indicavam que alguém estava se aproximando de onde eu estava, como toda pessoa completamente social que eu sou, logo coloquei os fones de ouvido e encarei o mais naturalmente possível a capa de um jogo aleatório que eu estava segurando. Não estava tocando música alguma, então deu para ouvir a voz feminina me chamando a alguns metros de mim.

– Emma? - Disse afim de conferir se era realmente eu, infelizmente a pessoa estava certa, tentei não dar atenção a esse fato e estava lendo pela quarta vez o aviso de epilepsia do jogo. Uma mão tocou meu ombro e meus reflexos me denunciaram, virar o rosto foi automático e eu briguei mentalmente comigo por causa disso. - Emma! Oi!

– Mel! Tudo bem com você? - Falei com a voz mais sincera que eu conseguia, mas acho que ficou claro que aquela pergunta fazia parte do repertório de coisas-educadas-a-se-perguntar-para-uma-pessoa-desagradável-mas-que-você-tem-que-ser-simpática.

– Ah, eu vou bem. Consegui esse trabalho de meio-período, não paga tão bem quanto a papelaria mas é bem perto do hospital. E você? O que tem feito? - Pensei em algo do tipo "ah, eu tenho consolado o seu ex-namorado que você deu um pé na bunda no dia do aniversário dele e que amanhã fará mais um ano de vida e por isso estou aqui para comprar um presente para ele", mas acho que o bom senso não me permitia.

– Trabalhando seis horas por dia na papelaria, dormindo oito horas por noite, respirando oxigênio misturado com poluentes vinte quatro horas... O de sempre.

– Ai Emma! Você é impossível! Haha! - A risada dela parecia sincera, carregada de dor, mas genuína, por alguns momentos deu para me lembrar de quando eramos amigas no ensino fundamental, isso foi antes de pararmos de nos falar por uns três anos e logo depois acabarmos trabalhando no mesmo local onde acabamos virando apenas conhecidas. - Bem, em que posso ajudar?

– Estou procurando a parte de jogos para Xbox 360, algo de estratégia.

– Acho que tenho o jogo perfeito para você - Ela disse me arrastando por alguns corredores e logo depois parando para me entregar um jogo de capa escura que eu não me prendi muito para observar - Meu irmão ganhou um desse semana passada e está completamente viciado, é sobre uma loja de armas que fica escondida em uma concessionária de fachada e você tem que abastecer a cidade obscura de armamento sem deixar que a polícia perceba, tem um modo legal que você faz parte da polícia e mesmo sabendo que a loja é fachada você tem que reunir provas, evidências e coisas do tipo.

– Parece realmente legal, eu vou levar.

– Ai que máximo! Meu primeiro produto vendido! Como será feito o pagamento? - Ela falava enquanto seguia saltitando pelas prateleiras de jogos e chegando até o caixa para passar o jogo, ela realmente parecia com a Mel que eu conhecia, as lembranças vinham como explosões na minha mente.

– Dinheiro. - Disse enquanto abria a carteira na minha bolsa e pagava. - Tem como embrulhar para presente?

– Mas é claro! Aniversário de alguém especial, ou só quer ter o prazer de abrir a embalagem? - Mel soltou uma risadinha nas últimas palavras.

– Aniversário de um amigo meu... - Deixei a frase no ar, e pelo olhar pude perceber que ela entendera de quem se tratava mas disfarçou com mais uma risadinha, dessa vez mais forçada.

– Bem aqui está. - Me entregou uma sacolinha e me deu um beijo na bochecha. - Foi ótimo te ver. Um bom aniversário para o seu amigo.

– Foi bom falar com você. Tchauzinho. - Falei saindo da loja e levantando um aceno no ar

O clima havia ficado tenso de repente, foi extremamente aliviante cruzar a rua e ver Thomas na frente do nosso restaurante de sempre esperando para almoçarmos juntos. Decidi comigo mesma que eu não mencionaria que tinha encontrado com a Melina. Guardei o pacote na minha bolsa, e fui atravessando a rua gritando com um taxista que havia acelerado no sinal vermelho.

– Vem comigo - Ele disse antes mesmo que eu terminasse de atravessar.

– Não vamos almoçar aqui?

– Pensei que poderíamos dar uma variada. Novos momentos não surgem de memórias antigas.

O conceito de mudança com certeza não era o que mais me agradava, estava longe de ser o meu favorito no dicionário, as coisas variavam e com isso vinha a incerteza e chance de coisas que davam certo comecem a dar errado. Eu não estava preparada para coisas dando errado. Fiquei em silêncio enquanto seguia Thomas por alguns desvios estreitos pela calçada.

– Para onde estamos indo? - Depois de dez minutos caminhando se tornou inevitável questiona-lo. - Eu estava programada para ir almoçar e não para fazer um passeio a pé por ruas nojentas da cidade.

– Calma princesa, o mundo não é tão programado quanto você. Se deixe levar de vez em quando.

– Me responde.

– Eu não sei.

– Não sabe o que?

– Para onde vamos, ué.

– Mas... O que você está fazendo, afinal? - falei não acreditando na inocência com que ele havia me respondido, eu sempre soube que ele tinha as ideias meio bagunçadas, e isso o tornava uma pessoa louca e genial, mas as vezes essa minha incompreensão da mente dele me fazia sentir um pouco de medo, não dele, mas das situações imprevisíveis em que ele ocasionalmente me colocava.

– Me deixando ser levado. E te levando junto para que possa ir às alturas comigo.

– E está me levando junto com que direito? - Aumentei um pouco a seriedade no meu tom de voz.

– Bem, eu pedi que você viesse comigo e você veio, não te obriguei, então pode voltar e não ser levada a hora que quiser. - Ele disse abrindo um sorriso, por alguns instantes pensei em fazer isso, mas eu não poderia nem se eu quisesse, eu não saberia dizer nem metade dos atalhos que ele tomou. Ele virava nas ruas sem nem pensar, era difícil acreditar que ele não sabia para onde estava indo.

– Fique comigo que você ficará bem, eu te ajudo com os seres malvados. - Ele se virou para me encarar e eu revirei os olhos para aquela afirmação, ele começou o que eu poderia chamar de gargalhada frenética.

– Não preciso de ajuda e não entendi o motivo da risada.

– É que você não está se vendo.

– Mesmo se eu estivesse. O que eu tenho demais?

– Um bicho no seu cabelo. - Aquela frase foi o suficiente para me fazer começar um surto que mais parecia uma dança da chuva, me sacudi para todos os lados. Ele esticou a mão e tirou uma formiga do meu cabelo.

– Ai ai, depois fala que não precisa de ajuda. Parece que saiu de uma relação sexual com esse cabelo todo bagunçado. Chegamos. - Ele disse fazendo uma reverência a uma parede com uma porta no meio - Pode abrir.

– Depois ainda me fala que não sabe para aonde está indo... - Falei puxando a maçaneta, a porta se abriu dando visão a uma escadaria com vários lances de degraus. - Imagino que o objetivo é subir, certo?

– Certo.

– Olhe para mim, o que você vê?

– Vejo uma Emma.

– E o que 'uma Emma' está vestindo hoje?

– Hm, 'uma Emma' hoje está usando um vestido estampado de gaivotas, um colar que eu presumo que seja bijuteria, brincos que não combinam com o colar-bijuteria, um prendedor de cabelo de R$1,99 e sapatos altos de cor marrom escuro.

– Ótimo! Sabe o que não irá subir essas escadas? Esse par de sapatos altos de cor marrom.

– Sem problema, pode ficar descalça. Eu não vou me importar. - Thomas abriu um sorriso de orelha-a-orelha se sentindo vitorioso pela sua defesa bem preparada, pensei em insistir um pouco mais na conversa, mas antes que eu pudesse pensar em uma resposta à altura ele se posicionou de costas para mim e se abaixou um pouco. - Sobe.

– Quê? Sério?

– Sim, princesa. Não irei te levar ás alturas sem um transporte apropriado.

Subi nas costa dele e a nossa caminhada pelas alturas começou em seu primeiro degrau, digo isso tanto literalmente (a escadaria era enorme), como metaforicamente. Acho que no geral escapar um pouco para um mundo de loucuras na vida real não é tão ruim e fazer isso com ele parecia incrivelmente gratificante.

*****

Estávamos no topo de um antigo prédio abandonado, romântico de uma forma clichê, e eu não sabia muito o que eu esperar, afinal, não sei se devo esperar uma história de amor saindo da nossa amizade, ou talvez uma conversa de 'manos' em um lugar que poderia ser local de boas lembranças, tudo muito confuso, e pela primeira vez eu estava disposta a arriscar. Essa minha história já não era mais sobre o mundo, era só sobre duas pessoas, uma história de amizade e de amor em diferentes modos, entende?

– Como encontrou esse lugar? - Perguntei me sentando ao lado de Thomas que arfava com o esforço que tinha tido para subir todas as escadas daquele lugar carregando uma garota de setenta quilos nas costas.

– Aqui nem sempre foi abandonado. - Aquela frase veio carregada do que pareciam ser lembranças marcantes. Decidi seguir minha intuição para formular uma resposta.

– Achei que novos momentos não vinham de memórias antigas. - me encostei no ombro dele e olhei para a paisagem que se esticava ao nosso redor, aquele parecia ser um dos prédios mais altos da região.

– Mas os novos momentos podem substituir antigos. Achei que esse lugar era bom demais para não ter boas lembranças, pensei que poderíamos cria-las.

– E como pretende fazer isso? - Falei despreocupadamente ainda fitando a selva cinza de concreto que era a cidade.

– De uma forma clichê e fofa retirada direto dos filmes americanos. - A frase não fez muito sentido para mim e eu me virei para questiona-lo com o olhar, me pergunto se caso eu soubesse o que aconteceria em seguida se eu teria feito algo diferente, talvez virado de forma mais teatral ou correspondido com mais fervor. O que é realmente relevante é que deu para sentir os lábios dele tocando os meus e isso acontecia de uma forma desesperada e quente, dava até para pensar que pertencíamos um ao outro, porque era exatamente isso que estava acontecendo, durante aqueles poucos segundos nós nos pertencemos, sem medos, sem inseguranças, sem as nossas loucuras, estávamos ali nas formas mais puras dos nossos corpos. Lentamente ele se distanciou do meu rosto e eu não consegui deixar de olha-lo perplexa, tinha sido repentino e apaixonante, e isso eram dois conceitos que eu não estava acostumada.

– Por que fez isso? - Falei um tanto boquiaberta ainda vendo se a ficha havia caído.

– Achei que merecíamos um pouco de felicidade e loucura. - Ele deu de ombros e fui obrigada a me questionar se nós nos sentíamos da mesma maneira.

– Não seja tão Hollywood agora. Converse comigo de forma clara.

– O que deseja saber?

– Por quê?

– Porque eu gosto de você, e você gosta de mim. Não havia motivos para não te beijar, afinal, estamos em um lugar perfeito em um oportunidade promissora e quebrar a sua programação do dia é totalmente estimulante. Acho que em Adventure Time você seria uma Princesa Relógio... - A risada dele naquele instante foi encantadora, ele passou a mão pelos cabelos escuros e sorriu para mim de uma forma que eu nunca tinha visto antes, fiquei sem palavras. - Fiz algo errado?

– Fez certo. Mas por tempo insuficiente. - Ele abriu um meio sorriso um tanto pervertido e me puxou para um segundo beijo e dessa vez foi de maneira completa, pelo tempo que tinha que ser e com todos os sentimentos que uma pessoa poderia sentir.


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