Uma dose de café escrita por Whoops


Capítulo 1
Uma introdução a metodicidade




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Mais um dia da minha vida iniciava da mesma forma monótona, me pergunto quando minha rotina iria mudar, acontece que eu não via nenhuma necessidade sincera que isso acontecesse.

A música do meu despertador começou a tocar exatamente no horário de sempre (afinal é esse o objetivo de um relógio que apita: explodir uma música que você irá odiar e fazer isso exatamente ao mesmo horário todos os dias), pensei um pouco se eu deveria mudar o toque para a minha nova música favorita, mas a conclusão foi que ela não merecia ser estragada com uma coisa tão ruim que é acordar às seis horas.

Estiquei meu braço para pegar meu celular no criado mudo, eu deveria ter aberto os olhos para fazer isso porque logo depois de tatear um pouco pela superfície do móvel deu para ouvir aquele som doloroso que é o celular caindo no chão, instantaneamente o despertador parou de funcionar, respirei fundo e me levantei da cama para ver o estrago que havia sido feito, juntei as partes do meu celular (a bateria tinha voado para o outro lado do carpete), enquanto ele ligava fui me arrumando para ir trabalhar, mesma rotina de sempre: acordar, checar as mensagens (o que ainda não tinha sido feito hoje), me vestir, ir para o trabalho, almoçar com o Thomas, voltar para casa, e então entrar no meu mundo encantado que é o Wizard Rainbow, um jogo novo que só tem servidor na Dinamarca mas que já tinha conquistado uma boa parcela de fãs na América Latina.

Seis mensagens não lidas. Quatro delas eram de Thomas, uma da minha colega de trabalho e a outra era um aviso da operadora me alertando que os meus créditos estavam acabando, porque em vez de colocarem mais créditos ficam me mandando mensagens? Mensagens não pagam o meu 3G.

O trabalho foi tão normal quanto qualquer outro, o que diferenciava uma segunda de uma terça nas minhas semanas eram as conversas que eu tinha com Thomas durante o almoço, a gente já fazia isso a mais de quatro meses, sempre íamos ao mesmo lugar, sentávamos no mesmo pedaço da bancada e pedíamos as mesmas coisas mas nunca era igual, cada dia era diferente do outro, a conversa era variada, os sentimentos se misturavam, as inseguranças se juntavam nas nossas loucuras, nós não estávamos namorando, nem ficando, e nem nenhum outro termo que possa existir para uma relação física, só eramos amigos, e não tenho certeza se eu gostaria de ser mais que isso, acredito em uma amizade homem-mulher sem um interesse sexual e carnal envolvido.

– O que vai pedir? Hoje é por minha conta. - Thomas disse arqueando uma sobrancelha a espera de uma resposta, nós já estávamos sentados a cerca de cinco minutos na bancada mas só agora o atendente havia percebido a nossa presença.

– Hoje já é quinta? Acho que não, hein. Hoje é o meu dia de fazer a cortesia. - Abri um meio sorriso já pegando a minha carteira na bolsa, eram essas brincadeiras que me animavam para o restante do dia e boa parte da noite.

– Meu deus Emma! Pare de ser tão metódica, não temos que basear nossos dias em rotinas semanais. - O atendente deve ter percebido que a conversa iria longe, pois já tinha saído para atender alguém. Thomas levantou a mão e prontamente uma menina que eu nunca tinha visto veio perguntar o que queríamos. Eu apostaria que ela era nova lá, estava com uma expressão de nervosismo e seu sorriso de 'quero-deixar-o-cliente-alegre' estava ocupando todo seu rosto. - Quero dois refrigerantes de latinha, pode ser Coca e, hm, o que você nos recomenda?

Aquilo parecia uma brincadeira de mal gosto com a garota, que de acordo com o crachá se chamava Raphaela, dei um tapinha de brincadeira no ombro de Thomas, e tomei a palavra já que ela já estava sem saber o que responder:

– Um sanduíche de pernil para mim e acho que ele vai com a Salada Saudável de Batata Frita. - Ela me sorriu agradecida saindo para buscar nossos pedidos e Thomas soltou uma risadinha questionando o que eu havia pedido para ele. A refeição fazia parte de uma das nossas piadinhas internas, de um dia em que estávamos avaliando o cardápio e reparamos em vários pratos contraditórios e um tanto loucos: Frango de Bacon, Churrasco com Chocolate e o Incrível-Sushi-Não-Cru, que na verdade era apenas peixe frito com alface.

– Você tem visto a Mel? - Thomas me perguntou com a expressão um tanto séria, Melina era uma ex-namorada dele que foi a ponte que fez nós dois nos conhecermos, ela trabalhava na papelaria junto comigo e fomos informalmente apresentados em uma festa de inauguração da nova filial. Depois disso ele me procurou algumas vezes para saber mais sobre a Mel, o relacionamento ainda estava no inicio e com muitas falhas... infelizmente elas não foram superadas mesmo com a minha mais integra ajuda e eles se separaram, mas isso já fazia quase um ano. Raphaela voltou com os pedidos.

– Não falo com ela desde que ela se demitiu para cuidar do avô, mas pelos boatos lá na loja parece que ele piorou e está na UTI, estavam pensando em fazer umas cartas de incentivo para ela e ir entregar no hospital. - Respondi mordendo o meu sanduíche que estava, sinceramente, um pouco seco.

– Você vai fazer uma carta?

– Não.

– Mas... Por que não?

– Bem, infelizmente no inicio do ano eu não reservei um tempo do meu cronograma mega-metódico para fazer cartas. - Falei ironicamente e abri um sorriso.

– Você é impossível, mas agora falando sério... Por quê?

– Ah, é que não é ela quem está doente. Ela não precisa de incentivo, quem precisa é o avô dela, e não é como se cartas fossem melhorar o tratamento médico dele ou coisa do tipo, seria muito mais correto ir fazer uma visita, mas não se pode visitar uma pessoa que está a beira da morte mas que você nunca conheceu durante a vida. Por isso que eu não irei fazer uma carta e nem nada referente.

– Odeio e amo o modo como você é tão centrada. - Ele disse revirando os olhos e logo depois me fitando por alguns segundos.

– Devo considerar isso como um flerte? - Falei enquanto roubava uma de suas batatas fritas nem um pouco saudáveis.

– Eu até deixaria considerar, mas não flerto com pessoas que me roubam. - A resposta veio junto com um roubo-vingança de um pedaço do meu sanduíche.

Cheguei em casa jogando minha bolsa no sofá e fazendo minhas sapatilhas voarem longe pela sala, pude ouvir minha mãe gritando alguma coisa que não deu muito bem para entender, mas não pedi para ela repetir, estava claro que era ou 1) me mandando fazer alguma coisa, ou 2) brigando por conta de algo que eu fiz. Fechei os olhos um pouco para mentalizar o que eu ainda teria que fazer durante o dia, me dirigi até o meu quarto e sentando na escrivaninha tentei me conectar em Wizard Rainbow, só tentei mesmo, fui longe de conseguir.

– Mãe, a internet não está funcionando! - Gritei na esperança que ela ouvisse, esperei alguns segundos e nada.

– Mãe! - Mais alguns segundos.

– Mãe! - Dessa vez ela abriu de repente a porta do meu quarto e ficou olhando para mim pelo espelho da parede.

– Emma! Que foi? - Ela falou de roupão e com a toalha na cabeça, aparentemente ela estava tomando banho, pensei em pedir desculpas e me sentir meu culpada, mas meus problemas eram outros naquele momento.

– A internet.

– O que tem a internet?

– Sinal de rede indisponível.

– Mas foi o que eu te falei. - Ela disse um tanto impaciente, dava para ouvir o barulho do chuveiro que ainda estava ligado, litros de água sendo desperdiçados.

– Você não me falou nada. - Disse em defesa.

– Como não? Assim que você chegou eu falei que o técnico da internet vem amanhã e que eu iria tomar banho. Mas você nunca me escuta! Não sei mais o que fazer com você. - Pensei em algo para responder a ela, mas antes que eu pudesse abrir a boca ela já tinha saído do quarto e voltado para o seu banho.

Desliguei o computador, ainda eram três da tarde, pensei em ligar para o Thomas mas essa mudança repentina de rotina estragaria a minha divertida reputação de metódica. Decidi quebrar minhas regras pessoais sozinha. Peguei um dos meus livros novos na estante, minha mãe tinha me dado ele de natal a três meses atras, mas eu ainda não tinha tido animo para abri-lo e começar o que eu achava que seria uma leitura cansativa.

*****

Sobre o livro? Eu estava tremendamente enganada, não julgue o livro pela capa, o conteúdo era envolvente e me fez viajar como se eu estivesse na internet ou conversando com o Thomas, pensei em ver se achava algum outro para ler, mas o relógio já marcava dez da noite e também não havia mais nenhum livro não lido no meu quarto. Acho que eu deixaria para desenvolver um tempo no meu calendário metódico para leitura em outro momento.

Tomei banho, tendo que arrumar a bagunça que minha mãe tinha feito no banheiro com a tintura loira dela. Depois de me vestir para dormir, peguei meu celular e deitei na cama, tinha mais uma mensagem do Thomas, esta estava desejando 'Boa noite', digitei a resposta com uma carinha feliz e alguns corações, e em vez de aparecer o sinal de 'mensagem enviada' apareceu um alerta que me lembrou que os meus créditos tinham acabado. Suspirei com raiva e dormi implorando por 1) créditos, 2) internet e 3) livros.


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