Os Garotos Perdidos escrita por Pinguim Pirata


Capítulo 1
Isso aqui não é a terra do nunca.


Notas iniciais do capítulo

Escolhi os temas polêmicos:
—Drogas
—Prostituição
—Transexualidade
—Homossexualidade

espero que gostem.



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É Natal hoje. Ande pelas ruas cheias de neve, e verá as casas enfeitadas com luzes coloridas, uma mais extravagante do que a outra. Caminhe mais um pouco e ouvirá canções natalinas sendo cantadas por vozes infantis e outras meio bêbadas. Sinta o cheiro, estão assando biscoitos. O vento está frio, a neve está pesada, mas aquelas famílias têm lareiras acesas e cachecóis em volta dos pescoços.

Nós poderíamos estar em casa também. Bem pelo menos a maioria poderia. Nem todos tinham uma casa confortável, brilhante e cheirando a biscoitos, e alguns não seriam bem recebidos se aparecessem na porta de casa agora. De qualquer jeito, estar na rua foi escolha nossa.

Foi por livre e espontânea vontade que aquele grupo de adolescentes bêbados e barulhentos atravessava aquele bairro de classe média, andando próximos uns aos outros na esperança de obter algum calor. Nuvens brancas saiam de nossas bocas cada vez que alguém soltava uma risada exageradamente alta, e se misturava á fumaça dos cigarros que alguns de nós carregavam.

Nenhum de nós teve uma ceia de Natal propriamente dita. Alguns ali dividiram pães murchos e com sorte algumas fatias de queijo duro, e outros trocaram a refeição da noite por mais algumas gramas de qualquer que fosse a droga que usavam, mas ninguém se preocupava agora. Afinal, até aqueles que estavam supostamente perdidos tinham o direito de festejar.

A noite de Natal era uma das únicas do ano em que ninguém vigiava a pista de patinação. Não foi difícil arrombar o portão, visto que alguns ali tinham experiência em abrir fechaduras e entrar sorrateiros no meio da noite.

Alguns anos atrás, uma versão fresca e sorridente de mim passava por aqueles portões, segurando a mão da mãe de um lado e do pai do outro, mas aquela garota está morta. Eu a matei na primeira vez que injetei heroína na veia do braço esquerdo, e cuspi sobre seu túmulo quando saí da casa de classe média de meus pais para viver num apartamento encardido com minha namorada, tão viciada quando eu.

Pergunto-me o que meus pais conservadores e religiosos diriam agora, ao ver sua filha que antigamente fora motivo de orgulho invadir uma propriedade privada com um grupo de adolescentes decrépitos e depravados. Nosso triste grupo se resumia uma travesti de apenas dezoito anos, três prostitutas com menos de dezessete anos, dois trombadinhas e três traficantes, entre eles eu mesma. A garota que amei estava morta há três meses, por causa de uma overdose.

Olhe bem para nós. Ninguém aqui parecia ter nenhum motivo para sorrir, mas mesmo assim nossas gargalhadas ecoavam pelo grande salão. Ríamos porque finalmente tínhamos algo para nos distrair da miserável vida que levávamos. Ríamos para disfarçar o medo de sermos de repente e levados para uma delegacia. Ríamos por medo de deixar que o silêncio tomasse conta. Ríamos para fingirmos que estávamos felizes. Ríamos para que ninguém precisasse chorar.

Deslizamos por cima do gelo brilhante, caindo, se levantando e caindo de novo, deslizando apenas de meias, porque não podíamos estragar os sapatos que tínhamos e ninguém quis se arriscar a disparar um alarme se tentasse pegar os patins. Eu e Thalita seguíamos de braços dados, tentando obter algum apoio na outra. Thalita era a travesti. Era mais alta do que a maioria dos meninos ali, mas tinha cabelos escuros mais compridos do que os meus, e o corpo por baixo das roupas finas tinha um formato feminino, não sei se por hormônios ou cirurgia. Um de seus olhos estava roxo e perdendo o inchaço, seu sorriso era triste e frágil, mas sua risada era doce a cada escorregão que levávamos. Ela era uma das melhores pessoas que eu já havia conhecido, e também uma das mais sofridas.

Não sei dizer quanto tempo passamos lá, esbarrando uns nos outros, caindo e arrumando mais hematomas para acompanhar os que já tínhamos. Logos, nossas meias estavam encharcas e rasgadas tremíamos de frio, mas ainda sorríamos, porque agora havia motivos para isso.

Depois de todos saírem da pista, subimos para o telhado. A neve havia parado de cair, mas ainda sim estava frio. Comecei a me questionar quantos de nós pegariam uma gripe por causa dessas poucas horas de diversão infantil, e quantos sobreviveriam a essa gripe, mas no momento em que me deitei no concreto, olhando para o céu acima de mim, todos esses pensamentos sumiram.

Nenhuma estrela estava á vista, apenas a lua, grande, branca e brilhante, como um diamante pousado em cima do veludo negro que era o céu da madruga. As casas ainda brilhavam com suas decorações estúpidas. Minha antiga casa também brilhava, provavelmente. Será que alguém daquela casa se lembrava de mim naquela noite, ou eu era só uma sujeira que eles varreram para baixo do tapete e esqueceram? Será que oravam por mim?

Olhei há minha volta, para meu triste bando deitado no concreto, sentiam frio, fome, e aquele velho conhecido de todos, medo. Olhe para Thalita, que encarava o vazio parecendo sonhadora, e para as três garotas prostitutas, com almas feridas e corpos abusados, a mais nova devia ter treze ou catorze anos. Olhei para os trombadinhas, todos magros e pequenos, como pequenos ratos que se esgueiravam pela cidade. Olhei para os outros traficantes, com olhos fundos como os meus e corpos fracos como o meu. Alguma oração poderia realmente nos salvar?

Nessa época do ano, as pessoas se tornam impregnadas de uma religiosidade enorme, uma vontade hipócrita de fazer o bem. Elas fazem suas compras de Natal, passando por nós e fingindo que não estamos lá, depois se enfiam em suas casas com suas fartas ceias e nos atiram as migalhas pela janela, só para limparem a consciência, e depois rezam pelas “pobres almas perdidas”, porque é claro, o cara lá de cima se importa conosco tanto quanto eles, e então nos esquecem até o ano seguinte.

Acho que uma parte da garota que eu fui ainda vive em mim, porque ela deseja com toda a força que aquele ser místico e arrogante exista, e que ele seja atingido por uma compaixão que nunca teve antes para nós e atendesse ás preces vazias daquelas pessoas hipócritas. E eu nem peço muito. Não exijo nenhum milagre que nos devolva sãos e salvos para as casas que deixamos, ou que nos entregue uma cura para todas as angústias de nossas curtas vidas. Só quero que esse momento dure para sempre.

Essas pessoas sujas e melancólicas são uma família, que se ajuda a se mantém de pé, por mais difícil que seja, e continuamos caminhando, lenta e dolorosamente em direção ao esquecimento. É triste, eu sei, mas inevitável. Essas pessoas me mantêm indo. E agora eu olho para todos eles, e eles têm algo um momento real para aquecer o coração, estrelas na mente, gelo nos pés e sorrisos idiotas e sinceros no rosto. Eu só quero que isso nunca acabe.

Podemos fazer desse telhado nossa ilha da terra do nunca. Seremos os meninos perdidos, e com o tempo vamos aprender a ser de novo as crianças que deixamos para trás. Com o tempo aprenderemos a não nos preocupar e ser idiotas como eu sinto falta de ser. Um dia, nossos corpos serão puros de novo, como nunca deveriam ter deixado ser, e nunca mais precisaremos forçar um sorriso. Só precisamos desse pedido atendido, e seremos jovens para sempre.

Mas depois de tudo o que vivi, é idiota fazer pedidos como esse. Quando o Sol começa a nascer, nos levantamos para irmos embora, antes que alguém chega à pista de patinação. A realidade nos atinge com força assim que chegamos à rua. Vejo os sorrisos serem tirados de meus amigos com um tapa forte da vida, e sinto a bofetada em mim mesma também. Ah, o que eu não daria para poder cuidar de cada um deles, mas nem de mim mesma posso dar conta.

Cada um segue seu caminho. Thalita e as prostitutas estarão atendendo clientes até o cair da noite. Os ladrõezinhos estariam correndo com o dinheiro de alguém nas mãos até o cair da noite. Eu e os outros traficantes estaríamos em nossos pontos de costume, esperando os mesmos viciados familiares, um mais acabado do que o outro, para revender-lhes mais algumas de morte até o cair da noite. Todos nós podemos estar mortos antes do próximo amanhecer.

Afinal, isso não é a Terra do Nunca, mas ainda somos os garotos perdidos.


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