O estranho eremita escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 13
Ato 13 - Lágrimas Cáusticas




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“O que seria mais justo agora? Ainda resta uma bala no tambor.”


Careço de vozes, de cantigas de ninar esperando-me para deitar, os deuses estão tirando tudo de mim, provavelmente não terei mais audição para ouvir o vento carregando poeira de alto mar.
O inverno dura 365 dias e se renova no último minuto. Meus pelos não voltam ao tecido epitelial, planam sobre minha pele para uma proteção mais efetiva. Minha válvula de escape permanece sendo esse papel, hodiernamente, o meu único modo de salvação.
Os moradores que desvaneceram nessa ilha permanecem aqui, vagando dementes em busca de alguém para ouvir suas histórias, não conseguiram suprir essa necessidade inata ao homem e além da vida persistem na busca exacerbada por um ouvinte respeitoso. Sempre tentei ser esse homem, com bons ouvidos, e que sentisse a tristeza e a felicidade dos outros como se fossem as dele, renascer das cinzas, renovar-se em busca de novos ideais.
Estava sentado, escrevendo a você, como faço agora. Na primeira instância não acreditei no que ouvia, o ruído parecia estar dentro do meu crânio. Um choro, um bebê derramava-se em lágrimas muito próximo a mim, quando me dei conta do que ouvia, levantei-me e abri a porta, tentando triangular de onde vinha o som.
Corri até a origem, olhei para os lados, procurava algo ou alguém, tinha certeza absoluta que o som estava vindo dali, quando voltou a acontecer, voltei o foco ao chão, o pranto estava vindo por debaixo da terra, tornei correr até o casebre, peguei uma pá e voltei ao local, cavei acreditando que aquilo valeria a minha vida.
Surpreso e desconfortável, não avistei uma criança, e sim fotografias em tamanho grande e um baú. Peguei-os e antes de começar a interpretar, voltei ao aconchego para não necrosar-me sujeito ao frio atrito.
Sentei diante da escrivaninha e depus as relíquias. Peguei a primeira foto das três. Um homem com roupas de turista desavisado, com um sorriso estampado no rosto, com o braço envolto a uma bela garota, uma menina de no máximo sete anos, cabelo curto, sem alguns dentes, na flor da idade, com tudo a ganhar, ao lado, uma mulher sem forçar o sorriso demonstrando toda a sua felicidade, que esbanjava-se através da janela da alma e também de seus dentes esbranquiçados. Uma lágrima intrusa procedeu outras quinhentas, levei uma das mãos a boca, para abafar os flagelos. “O que perdi? O que aconteceu? Somos pessoas tão más assim?”.
Diante dos fatos, farto e trincado, irreparável, derramei meus horrores e desencantos, uma felicidade extrapolava, dado os acontecimentos recorrentes de um passado, onde a felicidade, mesmo incomum, existia.
Retomei o fôlego, peguei com cuidado a outra foto, trêmulo e tristonho deixava a melancolia varrer meus braços e o mundo que ali estava. O horizonte usado como plano de fundo, a menina de braços abertos com um sorriso de rasgar o rosto e o meu coração, suas roupas sendo levadas pelo vento, e o Sol abençoando mais um dia que demoraria findar honrando seus visitantes.
Tantas crianças sofreram, infâncias indignas, educação precária, pais e mães não ensinando mais o filho a amar, e sim sobreviver, matar se for necessário, no fim da peste, tudo estava escasso, havia duas alternativas além, litigiar pelo resto ou morrer degolado para servir de alimento. No meu ponto de vista, não sei o seu, as duas pareciam cruéis, fomos acoimados, estancados com garras de ferro. Calados.
Também não podíamos pensar que poderíamos estuprar, abusar, pisar e cuspir em um patrimônio da humanidade, a lei de causa e efeito sempre foi implacável e ela simplesmente não deixou ser mutilada por ingratos e arrogantes, todos temos culpa. Não importa de onde veio essa maléfica doença, e nem de quem a criou ou enviou, e sim os motivos, o que levaria um extermínio eclodir? Para morrer, basta estar vivo. Clichê. O mais puro clichê.
A última fotografia, segurei forte, marcando-a com o meu dedo, a claridade do Sol das outras imagens estáticas havia sido substituída por uma imensidão preta e branca, um cenário de guerra, o local nitidamente deserto. Surge-me a pergunta, de qual seria a finalidade de enterrar aqueles momentos felizes, acredito que não foi apenas por um bom funeral. Também para reaver a esperança de que alguém visse aquelas passagens felicitas e remetesse a lembrança que o mundo não foi sempre assim.
Se esse foi o intuito, meus parabéns, eles conseguiram.
Restava o baú, tirei a terra que estava aglutinada entre suas frestas e abri-o, meus olhos avermelhados se arregalaram astutos e desprovidos de senso, não havia uma rosa. Um papel escrito e um calibre, anos atrás usado, ainda mantinha sua quentura, a fumaça parecia sair do bico como se os três tiros haviam sido disparados naquele instante.
Boquiaberto, com o maxilar descontrolado, retirei o revolver de cima da carta e o pus na mesa, pegando a carta amassada que era guardada por um metal resistente, usado em guerras contra os próprios irmãos.
Segure-se na cadeira, redigi-la-ei, espero que não te entristeça:
“Não sou bom com palavras, e nunca esperava ter que escrever uma carta para explicar meus motivos. Foi uma decisão que tomei sozinho, não consultei minha mulher, mas prefiro abnegar esse mundo a eles, do que vê-los morrer diante dos meus olhos e não poder impedir. Viemos para essa ilha em busca de paz e prazer, os cartões postais eram tão indignos, não representavam nem um quarto da beleza mundana desse lugar. Decidimos ficar por aqui, esqueci meu trabalho de fotógrafo e preferi o bom grado de viver em um âmbito ameno e com essa fragrância que plana pelo ar. Quando homens e mulheres pegaram barcos e saíram desesperados, não tive tempo de reação, só havia restado nós, aguentamos por um bom tempo. Até que as terras inférteis nos denotavam fome e pavor. Quando ouvi minha filha chorar esfomeada pela manhã, e a minha mulher com as mãos na testa sem saber o que fazer, peguei o metal gelado em minhas mãos, e morrendo antes do disparo, percorri o corredor até a cozinha, primeiro as duas olharam para minha face, partiram o meu coração, depois voltaram os olhares a minha mão que segurava firme a pistola, minha mulher recuou e a minha pequenina gritou: “Papai!”. Atirei contra elas, fazendo o sangue manchar a parede.
Chame-me do que quiser, monstro, pérfido, besta... Tomei a melhor das piores decisões. Levei seus corpos, uma a uma, até o precipício, o oceano se confrontava por debaixo da minha visão, lancei-as à deriva, deixando-as voltarem a imensidão e serem eternizadas pelo meu ato vil, porém necessário.
Guardei a arma no baú, as melhores fotos selecionei e irei enterrá-las, por favor, peço com todo o amor, quando terminar de ler, eleve os pensamentos aos deuses e peça misericórdia aos meus anjos, se fizer esse bem a elas, estará fazendo a mim. Desde já agradeço, irei voltar as águas junto as minhas amadas, a mais digna morte que posso oferecer, a mim e a elas”.
O que seria mais justo agora? Ainda resta uma bala no tambor.


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