O estranho eremita escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 12
Ato 12 - Cidade pineal




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(...) quando perecer um desses lados, o trem sai da reta, e o final do percurso, estará repleto de tnts.


Meus tempos de jovem-adulto trabalhando no porto foram marcados por longas andanças, ia e voltava com passos curtos, mãos nos bolsos, e pensamento longe, só esperava o momento de chegar em casa, e repousar-me dentro de você, por debaixo das fronhas, esconder-me do mundo.
Já era tarde, havia terminado o meu turno, entrei na cabine e peguei meu casaco quente, trajei-o, despedi-me dos humildes trabalhadores e fui para as ruas pujantes da cidade, as luzes dos prédios entregavam os moradores sonambúlicos, os homens e mulheres pilhados e crianças tendo a primeira experiência sexual, algumas com a mão amiga ou com órgãos intrusos, opositores e alguns bem-vindos.
Meus passos transformaram a calçada em pluma, passos lentos, um elemento neutro atravessando a rua, a luz vermelha do semáforo não ofuscava minha escuridão, meu corpo já fazia parte do plano de fundo, passei ao lado de diversas pessoas como um vulto, elas não olharam para trás para averiguar se era real, tinham o pré-conceito que era só mais uma sombra que ganhou pernas e andou.
Nos becos estava refletido a sociedade anômica que tinha cor e cheiro. Lixos esparramados por todo o chão, moradores de rua revirando lixos, outros apenas fitando a Lua pregada entre as estrelas, em um silêncio apavorante, que carecia de um grito. Que não pude dar.
Cabeça abaixada, pernas cansadas, a carcaça externa estava mais apresentável que a interior. Até que, inesperadamente, uma pessoa conseguiu me perceber, não foi na melhor das hipóteses, no entanto ocorreu, quando levantei o olhar, os olhos entreabertos, vi o assaltante empunhando um calibre pesado, com um capuz negro que cobria a face e o igualava a noite instável. Ordenou que passasse tudo a ele, hesitei em tomar atitude, estava impressionado com a personalidade e o medo daquele homem, sua força oscilava entre estrondosa e minúscula, em um momento segurava a arma com firmeza, em outro, deixava-a escapar entre a palma, não sabia se olhava nos meus olhos ou nas minhas mãos, já estava preparado para correr caso algo acontecesse. Se fosse necessário arriscar, diria que não sabia nem que a arma estava travada. Já preparava para tirar as moedas do bolso, até que por um fração de milésimos, encarei-o. Ele arregalou os olhos, conseguiu adentrar o meu misterioso universo que estava na beira dos meus cílios, será que sentiu pena? E não quis arrancar o último pão da mão de um pobre? De espírito e coração? Preferindo ir embora exercitando a misericórdia? Uma inescrutável explicação foi embora com ele, tirei as mãos dos bolsos e deixei-o ir, sem ter a mínima ideia do que havia acabado de acontecer.
Ficou perceptível a minha tristeza contagiante, causei uma reação forte no seu sistema, causei-o uma dor vil em sua mentalidade, antes de chegar em mim com um trabuco de metal nas mãos, tinha crença no capital, depois que foi embora, provavelmente, preferiu a morte do que moedas jorrando ao alto.
O caminho para casa foi repleto de indagações, minha esfumacenta cabeça brotava de inspiração, diante do abajur cor-de-carne escrevi sobre a minha condição, foi mais um questionário, que nessa etapa da vida, ainda não consigo responder.
A incapacidade de entender o mundo e todos a sua volta, mostrou-se presente primordialmente na minha infância, diante de todos os revés, o nocaute lembrou-me um espadachim sedento por sangue.
Era um dia como qualquer outro, o silêncio cheirava os corpos dos meus familiares, o vinho da minha tia esfriava para mais uma noite acalorada e broxante, e o Sol não arrancava a situação mórbida da casa. Por fora do sobrado, dotado de extrema liberdade o mundo era finalmente ilustrado com cores pitorescas e radiantes, entre aquelas paredes cimentadas persistia o azul-cinza, sentia-me preso entre vidros tênues que me separavam do ensino empírico. As correntes não foram maléficas apenas as minhas juntas, também a minha evolução, moral e cívica.
Lembra-se da minha estupefata vizinha? Por quem nutria uma paixão platônica? Houve outro incidente, sorrateiro... Intenso. Foi um sentimento tão indefinido que beirava o sutil, e também o abismo.
Não falta jargões para definir a minha visão. Por detrás do vidro roía meu pescoço. Sangue escorria das minhas juntas, óleo dos meus olhos. Um garoto com lá seus dezesseis anos, agarrado a ela, passando suas mãos por debaixo de sua saia voadora, apertava seus glúteos com fervor, feito um católico fervoroso segurando a bíblia. Suas línguas se tocavam em um gesto mais concupiscente do que afetivo. Igualando-se ao momento do mergulho, descrito anteriormente, taciturno e definhado roguei ao meu panteão para que o tempo passasse com velocidade impressionante, não ocorreu e tive que fixar o olhar até o fenecimento, não segui o antigo mandamento: Se algo faz mal aos seus olhos, arranque-os.
Queria veemente estar no local do privilegiado, queria ser livre e encantador, feito ele. Já teve a vontade enervante de ser outra pessoa, trocar de corpos? A energia que emanava de mim era forte, todavia não o bastante para me fazer explodir.
Eles se despediram, e antes do petiz desaparecer entre a névoa que formava em meu olhar enviesado e perspicaz, avistei-o olhando para trás, para sua amada, eles estavam juntos e não havia nada a se fazer, persisti naquela situação até o fim dos dias, revigorando a cada dia o meu astronauta de mármore que não saia do foguete mesmo em meio ao fogaréu.
A beleza e o horror está na palma de nossas mãos, não podemos fechar um olho e focar apenas na beleza e nem excluí-la de nossas vidas e dar atenção apenas ao horror, devemos estar atentos, e aprender a conviver com esses elementos que nunca nos abandonarão, quando perecer um desses lados, o trem sai da reta, e o final do percurso, estará repleto de tnts.


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