Acordes Perdidos escrita por Gabriel Galvão


Capítulo 23
A aria da andorinha


Notas iniciais do capítulo

Frequência encontrada numa casa de madeira próxima ao Lago Pielinen, Finlândia:



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A andorinha detida, exaurida de protestar vociferante, escreveu uma carta. Enquanto seu piado se extinguia de tanto forçar a voz para que alguém do lado de fora viesse e lhe resgatasse, ela começou a pensar. Pensar em como amava o mundo. Não entendia muito sobre o mesmo, mas adorava como naquele espaço entre quatro paredes podia ver tantas coisas novas, diferentes, únicas. Devido a sua situação, não pode experimentar diferentes cenários que seriam evocados posteriormente pelos sonhos de fuga. Mas a sensação que lhe preenchia com essas palavras eram mais coloridas do que a realidade que lhe aguardava.

Fossem lugares que apareciam em imagens mágicas da televisão, fossem as pessoas que sempre entravam pela porta de correr. Se admirava com o inédito que fertilizava sua criatividade inocente. Também podia ver as expressões do céu - criatura certamente fictícia, tendo em vista que sua existência é gigantesca demais para se considerar real - através da janela. Podia ver quando chorava, quando estava pensativo, quando estava fulgurante. E quando dormia com um sorriso minguante.

Diziam por aí que suas asas eram feitas para voar. Será? O espaço que lhe era concedido - do qual não ousava reclamar, afinal os suprimentos vitais para sua sobrevivência lhe eram providos por aquela casa - era por demais pequeno para permitir esticar as asas. Seus membros alados eram cobertos de tecido e manchas. Os humanos, reis do mundo, chamavam aquilo de ferida. Será que sem elas, o mundo seria maior? Impossível! O mundo que a andorinha via já era absurdamente grande. Não poderia ser maior… Poderia? A duvida consumia o pássaro ao mesmo tempo que o excitava com um deslumbramento infinito que mau cabia em sua respiração.

Não, não há como, pensava. Fora do recipiente, morreria. O lado de fora era o recipiente dos humanos. Poderia eles se sentirem tão enclausurados vez ou outra como a andorinha se sentia? Queria poder descobrir os limites da vastidão que se alastrava pelos seus sonhos, mas a andorinha sabia sem se dar conta que aquela magia só poderia existir enquanto não experimentada.

Agora estava sozinha. O mundo dela se tornara menor a medida que menos pessoas existiam nele. As visitas eram menos escassas. Os móveis espalhados pelos cômodos eram os mesmos há décadas desmontadas. O homem grisalho não se levantava mais da cadeira de balanço, os candelabros já se apagaram há tanto tempo que mesmo o dia se confundia com a noite. O ultimato fora quando os andarilhos de branco hermético vieram e carregaram o homem para fora, talvez para colocar numa gaiola maior.

Estava sozinha, muito sozinha. Solidão era uma palavra a qual a pequena ave não sabia colocar um significado. Era confuso demais para sua compreensão e presente demais para se distinguir. O céu chorava continuamente. Nem a lua aparecia mais com um sorriso. Aparecia cheia, circunspecta, como uma imensa boca estirada ao máximo para lhe devorar.

Por não domar a utilização das palavras, ela tentou mais uma vez cantar. Sua voz não mais saía. Deixara naquele pergaminho mofado pelo menos o que era suficiente para se entender de quem ela estava se despedindo. Seria difícil se desfazer de cada momento que viveu, de cada pessoa que observou rir. Então apenas deixou uma sentença:

Adeus, mundo que eu amo.

Ciente de que deixava uma mensagem de agradecimento, com asas que não voavam escapou da gaiola e se lançou pelas frestas da janela, diante de um espetáculo que lhe convinha assistir para sempre.


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