Acordes Perdidos escrita por Gabriel Galvão


Capítulo 1
O Retrato do rio


Notas iniciais do capítulo

Essa história foi encontrada numa rua pequena próxima ao rio Senna, Paris e data mais de 50 anos atrás:



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/568664/chapter/1

Devia ter arranjado um emprego. Mendigar exige uma labutação muito maior que vários trabalhos meia boca por aí. Olhe para mim, sou apenas um indigente cujas únicas coisas pertencentes são as roupas do corpo, um banjo à beira da destruição e um conjunto de papelões que montam um quarto até que bem confortável nas piores noites. Minha casa era na entrada de um esgoto. Muito propício, lhes garanto.

As pessoas jogam uma quantidade tão grande de coisas preciosas fora, rio a baixo, chega a provocar. Quer dizer, eram preciosas em suas razões, mas nada para mim servia. Certa vez encontrei um relógio de bolso prateado muito belo. O Relógio porém não era de nada, a acidez o corroeu. Hoje em dia não se faz mais nada com o desejo de que dure, tanto os objetos quanto as pessoas vão-se e se quebram muito rápido. Fiz que ia jogar o relógio de volta ao rio até perceber um pedaço de papel ali preso. Um retrato, que mesmo queimado nas pontas e amassado não conseguia enodoar a imagem que trazia.

Passava dias pensando como deveria ser o resto da fotografia, pois naquele pedaço pequeno de papel eu só conseguia distinguir uma mulher trajando um vestido azul claríssimo que se confundia com o céu de nuvens belas daquele suposto momento. O rosto da mesma estava ocultado pelos fios de cabelo que lhe dançavam na face, mas por algum motivo, não precisava ver seu rosto para considerá-la de uma majestosidade irreal. Simplesmente a considerava. Voou em minha mente a ideia senil de andar pela cidade em busca dela. Loucura!, disse a mim mesmo repetidas vezes. Já não fez loucuras de mais por uma vida?, e de fato fizera. Fugir da casa dos meus pais? Loucura. Tentar conquistar a mulher da minha vida me tornando artista? Falta de sanidade. Uma mulher num carro esporte não vai olhar para baixo e dar importância para um homem sentado no asfalto desenhando no papel e por vezes no chão com giz até a guarda municipal dar as caras. Arte não compra mais que alucinações confortáveis.

Mais um dia se passava, a noite razoavelmente confortável, sem ceder a sua habitual iniquidade. Encarei o rio, tão poluído, através do encosto de passagem do esgoto aonde eu dormia iluminado pela fraca luz de uma lâmpada de óleo perdida por aí. Me chamou atenção na noite então, uma expressiva mancha boiando no rio. De inicio, não atiçou minha curiosidade, mas ao passar do tempo fui distinguindo seus formatos até decodificar um corpo humano. Corri e peguei a rede grande que usava para “pescar” as coisas da água. Com um trabalho que repudiei, pude tirar o corpo do molhado e ver que quase não respirava com um corte profundo na região do ombro.

- Ah… Ah… - O corpo arfava. Era uma mulher de roupas claras, cabelos negros sebosos e um rosto que eu não conseguia ver no escuro.

- Moça… O que houve? Eu vou arranjar um médico, tá?! - Me desesperei. Não possuía telefone, não me passava pela mente ideias para retirar aquela pessoa dali e conseguir chegar até um hospital.

- Não, eu não quero… - E tentou levantar o braço sutilmente, sem sucesso. Seus cabelos molhados cobriam toda a face jovial - Eu não quero mais viver.

- Como assim? - Indaguei.

- Meu marido me traiu - O som cortante acoplado as palavras dela distinguia claramente um choro, ainda que a modulação controlada de sua voz apresentasse uma calma de discurso, uma tristeza insuficiente para quebrar as barreiras do comedimento naturalizado.

- Isso não é motivo para querer morrer - Havia pouca força de contra-argumentação nos meus motivos para sustentar aquelas palavras de ética viciosa - Pare de chorar! Se continuar falando o ferimento vai piorar! - Revirei as tralhas que eu deixava jogadas no papelão usando de travesseiro. Consegui um pano úmido que usei para estancar o sangramento muito porcamente.

- Eu sabia… Que… Ele faria isso - Suas lágrimas pareceram cessar com uma fala mais controlada.

- E permitiu? - Questionei, prestando atenção mesmo enquanto tentava limpar o ferimento com um pedaço rasgado das minhas vestes.

- Eu… Quis - Fiquei calado esperando uma continuação - Fugi de casa, larguei tudo por ele… Mas sabia que terminaria assim - Ela virou para o lado e cuspiu muita água - Joguei as coias dele fora, todas.

Um pensamento me ocorreu lembrando de tudo o que encontrei beirando o esgoto nos últimos dias.

- Coisas como roupas, sapatos de couro, chapéis, um anel e… Um relógio de bolso de prata?

- Sim… - Sua voz era turva, não conseguia decodificar seus pensamentos pelo tom das palavras tampouco pela expressão facial que eu não enxergava - Me livrei até do revolver…

- Calibre 57 - Constatei.

- Como… Sabe? - Perguntou sem muitas forças.

Não respondi diretamente. Apenas tirei do bolso o pedaço de fotografia que guardava comigo e lhe mostrei:

- Estava muito molhado para eu ver o nome que estava escrito atrás… Mas é seu, não é?

Ela se levantou levemente com minha ajuda e pegou a foto. Desatou em um choro muito mais forte e sonoro.

- Ah… Ah… Ele guardou essa foto! Mas ele disse que tinha queimado! -Tentou secar as lágrimas, mas elas caiam sem fim.

- Essa ferida é de faca, não é? - Recordações me vieram a mente - Tenho diversas cicatrizes por cortes similares, embora devidamente menos fatais.

- Sim, sim, é - Ela confirmou - Obrigado… Por isso.

- Consegue ficar feliz por saber que ele guardou a foto mesmo ele tendo te… - Não tive escrúpulos para usar a palavra “matado”. Não se fala da morte de quem ainda está vivo. Traz mau agouro.

- O que eu posso dizer? Que estou arrependida por algo? Que a conservação desse pedaço de papel muda tudo, expõe o caráter benigno e honesto da nossa relação? Foi tudo um desastre indiscutível. Mas não deixo de concebê-lo como um sonho que nutri e realizei por um bom tempo.

- Sonhos podem se tornar realidades penosas quando transpostos para as vicissitudes de agora, não?

Ela me olhou como se me considerasse, me perguntando com as curva do seu silêncio toda a minha história, o embasamento no qual eu me erguia para dizer tudo aquilo. Eram questões indomáveis que pululavam repentinamente entre nós como se houvesse algo nascendo nos momentos de sua morte.

- Qual o seu nome? - Quis fazer milhares de outras perguntas, mas um último bufado dela indicava seus últimos momentos. Sua salvação não podia ser concebida por um mero sonhador de giz como eu. Meu ofício era a fantasia, meu dever era salvaguardar sua existência no meu estojo de memórias que mais tarde se confundiriam com onirismos.

- Ellouise - Ela sorriu e tirou os fios de cabelo do seu rosto. Era imensamente mais linda que a mulher que persegui em toda minha medíocre vida. As lágrimas não reduziam sua beleza em nada, nem em seu rosto nem em seu nome -E o… Seu?

Mas os hesitantes segundos que demorei para responder me custaram caro. Sua mão caiu repentinamente na beira do rio. Entendi isso como um gesto de despedida. Sem ligar para as manchas de sangue que ficariam impregnadas em minhas luvas de farrapos, peguei seu corpo e lancei-o de volta às águas para um caminho torrencial até o oceano. Com um forte “SPLASH” ela se foi. Batia as mãos e fui voltando para minha cama quando murmurei inutilmente:

- Meu nome é Eustace. Foi um prazer - Pensei em me curvar, mas era idiotice demais, e minhas costas não me permitiriam fazer isto sem lembrar bem mais tarde de forma dolorosa. Fui deitar e consegui dormir com facilidade. Naquele dia, não consegui ter sonho algum.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

As frequências de som só registram até aqui depois de partirem para outros acordes.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Acordes Perdidos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.