O Vírus Isaac escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo 1 - Gi




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Palavras saem do meu cotovelo. Umas verdades bobas que eu escondi quando era criança. Algo sobre a prova de matemática que colei do garotinho que comia cola e o caso do hamster “desaparecido” da minha irmã, mas já estou acostumada com elas. Meu problema é bem pior agora.

A garota que eu ainda não estou muito acostumada a ser me encara de volta do espelho. Um corpo escultural e sedutor digno de uma criança desnutrida, de cabelos loiros e crespos arreganhados para o alto, onde talvez possa estar escondido o meu celular ou a cura da gripe do caranguejo. Em quinze anos de vida eu nunca passei mais do que três minutos de rápida fiscalização por manchas de pele na frente do espelho do banheiro, mas a minha presença hoje já há três horas aqui tem motivos fundamentais de análise e pesquisa laboratorial.

Devagar, eu levanto a camiseta do meu uniforme. Minha barriga côncava em medidas negativas da dieta saudável baseada em uma mãe que não sabe cozinhar e muita promoção de banana doce enlatada sujeita a botulismo brilha com o bronzeado de lâmpada fluorescente. Bem na minha costela está marcada uma frase nova. Exatamente como eu vi mais cedo. Droga.

“Eu quero que você fique”

A verdade nova brilha como se tivesse sido escrita com pó de estrela bem na pele sobre um dos ossos. Ao redor dela frases soltas sobre as bonecas desaparecidas da minha irmã e sobre a gloriosa semana sem tomar banho dos meus cinco anos passam até as minhas costas caminhando feito formiguinhas pela pele.

Isso só pode ser culpa do Isaac, meu melhor amigo, que brevemente vai ser retirado do cargo por ineficiência. Marcando viagens no meio do ano assim, do nada, como se todos os dias qualquer um pudesse acordar, colocar pó de achocolatado no copo antes de se dar conta de que está sem leite na geladeira e decidir chispar pro Grande Norte. Aquele estúpido. Eu senti minhas costelas formigando quando ele contou sobre as malditas passagens compradas ontem pra maldita viagem pro maldito outro lado do mundo, mas tinha esperança, muita esperança, de que isso em mim fosse apenas uma micose de pele. Eu passaria pomada e ela iria embora. Do mesmo jeito que Isaac vai. Ele e a micose que viajem de mãos dadas em um desses aviões que caem o tempo todo, quer saber? Eu não me importo nem um pouco.

Não consigo acreditar que logo isso ficou marcado em mim. Nem é uma verdade tão verdadeira assim. Quer dizer, é claro que está escrita em mim, mas só pode ser algum engano. Meu organismo claramente está pifado. Talvez eu esteja com câncer ou algo assim.

“Eu quero que você fique” continua lá nas minhas costelas, me desafiando. Eu puxo a camisa até a cintura de volta, pra não ter que olhar mais esse descaramento imoral impresso no meu corpo. Tem alguma coisa errada, sem dúvida! Essa não é a verdade, com certeza não é! Meu Deus, eu preciso de um médico. Será que a nossa família ainda tem plano de saúde? Ou plano de ligação interurbana?

Eu disco o número que sei de cabeça no telefone da cozinha. “Eu quero que você fique”, que grande idiotice! Isso não é verdade digna de um ser humano! Mais parece fala de mocinha insossa e desesperada desses filmes de romance insossos e desesperados que as pessoas só assistem quando a internet não quer funcionar.

— Consultório da doutora Veiga, boa tarde. — A secretária nova e insossa, que com certeza assiste aqueles filmes insossos e desesperados mesmo quando tem internet, atende do outro lado da linha.

— Eu preciso falar com a Gi, agora.

— Quem fala?

— Só passa pra ela.

— A doutora está ocupada no momento, quer deixar recado?

Misericórdia, toda vez é essa mesma enrolação. Quando essas secretárias vão entender que uma emergência é uma emergência?

— Escuta, fofa, isso é bem urgente. Entende, meu marido está sangrando já há algumas horas e se não parar logo temo que essa poça toda de sujeira vá acabar chegando até o tapete da sala. O meu tapete é persa, fofa. Você sabe como é difícil tirar manchas de sangue de um tapete persa? Difícil à beça.

A secretária engasga do outro lado da linha.

— Desculpe?

— Eu não tive escolha, entende. O que mais se pode fazer quando seu marido chega em casa e no punho dele está escrito que está há nove meses está saindo com uma bunda mole por trinta reais a hora? Obviamente, tive que cortar a mão dele fora. Cortei o piupiu também, mas esse foi por capricho. Pode passar para a doutora agora? Estou planejando costurar um no lugar do outro e preciso fazer isso antes que ele desmaie por falta de sangue.

Silêncio do outro lado da linha, o que provavelmente deve ser a secretária nova e insossa prendendo a respiração diante da confissão mais monstruosa que consegui inventar em quinze segundos – e que, por acaso, se parece muito com o episódio da série policial com a albina e o cigano que eu assisti terça-feira passada.

— Alô? Tem alguém aí?

— E-eu vou passar para a doutora, por favor, s-só um minuto.

A ligação nem cai na espera antes que a importante doutora atenda, com sua voz de profissional de alto escalão do ramo da saúde que precisa beber café ainda no banheiro porque não tem tempo sobrando pra viver.

— Pois não?

— Você precisa me ajudar. Eu vou morrer.

Ela reconhece minha voz no mesmo instante, mesmo que esteja fora há uns quatro meses.

— Sofia, é você. — Ela suspira e, na minha opinião, deveria mostrar um pouquinho mais de animação, já que eu sou sua adorável e única irmã favorita e uma pessoa incrível que com certeza deixa todo mundo que viaja pro outro lado da Terra com saudade (TODO mundo MORRENDO de saudade, entendeu bem, Isaac?) — O que você inventou dessa vez? A Lara ficou branca feito papel. Será que não pode deixar minhas secretárias em paz?

Não tenho tempo pra falar mal de todas as cabeças de vento que fazem cursos estúpidos como História da Arte Subaquática que minha irmã pega pra serem secretárias e que provavelmente ainda acreditam no Papai Noel bonzinho. Ou sobre como é ridículo que elas tentem me fazer marcar hora pra falar com a minha própria irmã mais velha toda bendita vez. Eu tenho um assunto muito grave pra tratar e talvez pouco tempo de vida pra reclamar.

— Isso é muito, muito importante, ok? É sério. Tem algo de errado comigo.

— O que é dessa vez? Não é sobre as suas melecas estarem brancas outra vez, é?

— É claro que não, Giovana — eu censuro, usando o nome inteiro dela e o tom de voz da mamãe, porque é isso o que as pessoas fazem quando estão sendo sérias. — É muito pior. Tô falando sério. E melecas pálidas podem significar anemia, sabia?

— O que aconteceu agora?

— Uma verdade errada apareceu escrita em mim. Acho que é algo com defeito no meu sistema nervoso. O que você acha? Já registraram mais algum caso assim? É uma epidemia, não é? Pode contar, eu aguento.

— Não existem verdades erradas, Sofia — ela corrige, usando o tom de voz da mamãe também. Aparentemente ensinaram por aí que, quando se quer falar sério, a gente precisa soar como se tivesse parido a outra pessoa e por isso ela nos devesse muito respeito.

— Mas essa está! — Insisto. — Eu tenho certeza que está. Eu juro, é tão errada que chega a ser obscena. Horrorosa.

Enquanto falo, volto pro espelho e levanto a blusa outra vez, só pra ter certeza se aquela frase sem vergonha ainda está lá. Está.

— Está bem. Quando ela apareceu?

— Ontem de noite. Está em cima das minhas costelas. Só pode ser câncer pele. Posso me despedir dos nossos parentes ou é contagioso?

— E o que ela diz?

Droga. Se eu contar sobre o “eu quero que você fique” ela vai rir da minha cara até o próximo natal.

— Umas coisas bem erradas — eu sussurro no bocal do telefone.

Minha irmã suspira pesadamente do outro lado da linha. Talvez ela finalmente tenha entendido a gravidade da situação e esteja tentando conter as lágrimas. Ela não pode acreditar que vai perder a irmãzinha tão linda assim tão cedo na vida. O que será da nossa família? Vão sentir tanta falta de mim. Coitados.

— Sofia — ela diz, depois de um tempo. — Você se lembra da história do Peludinho?

É claro que eu lembro. Peludinho era como minha irmã chamava o hamster gordo dela. Eu sempre chamei de Capitão Roedor, porque é um nome muito mais legal. Não sei porque ela iria citar isso agora. Provavelmente é pra comparar como ele não está mais entre nós e eu não estarei mais entre nós e como é doloroso que as pessoas que amamos vão embora tão cedo. Ela vai chorar tanto no meu enterro.

— Você se lembra — ela continua — que um dia ele sumiu e o procuramos por toda a parte e ninguém conseguiu encontra-lo, até que mamãe leu o seu cotovelo quando foi te dar banho?

Ah, claro, tinha isso também.

— Foi um acidente!

— Você jogou o hamster na máquina de lavar, Sofia.

— Ele queria tomar banho!

— Você ligou a centrífuga, Sofia.

— Parecia divertido!

— A questão é que — ela insiste, com a voz mais grave pra me fazer calar a boca — você continuou insistindo que não foi você quem pegou o Peludinho, mesmo depois que lemos seu cotovelo e encontramos ele na máquina de lavar. Você dizia que o Papai Noel escondeu o Peludinho lá e escreveu no seu cotovelo com tinta mágica pra culparmos você. Lembra?

Estranhamente, ninguém acreditou em mim. Nem quando eu subornei com dois reais um Papai Noel do shopping pra que ele dissesse pra minha irmã que era tudo verdade das verdadeiras.

— É claro que eu lembro. Aquele Papai Noel safado. — Que tipo de Papai Noel se deixa subornar por uma criança com dois reais?

Ainda não assumi a culpa pelo homicídio do hamster pelo simples fato de que: a) foi um acidente então, b) de certa forma eu não estava mentindo e c) tecnicamente essa mentira deslavada no meu cotovelo devia ter sumido há muitos anos atrás.

— O que estou tentando dizer é que não importa o quanto você tente convencer os outros e se convencer do que é a verdade ou não. Você já teve biologia na escola, não foi? Sabe bem como o nosso sistema nervoso funciona. Nada vai ficar gravado na sua pele a menos que seja o que você está sentindo. Seja adulta e assuma as suas verdades. Eu tenho certeza de que nada está errado com você e que não está morrendo agora como não estava semana passada e nem nas últimas quatro vezes que ligou esse mês.

— Mas...

Quero falar sobre o quanto ela está errada, o quanto Papai Noel pode ser um velho ordinário, o quanto dessa vez eu estou falando realmente sério e o quanto, com certeza, tem alguma coisa muito errada e estranha acontecendo comigo. Ela me corta antes que eu tenha chance.

— Isso não tem nada a ver com aquele garoto Isaac, tem?

É claro, ela precisava botar o Isaac no meio. É incrível o quanto a sua família pode ficar associando tudo o que acontece com você a uma única pessoa desde que você e o tal condenado andem juntos aproximadamente vinte e quatro horas por dia desde os cinco anos de idade, o que totalmente significa mais uma absurda falta de escolha do que interesse pessoal.

Quero gritar com Giovana e dizer que o maldito hamster sempre gostou mais de mim mesmo, mas ela me corta outra vez com o seu novo tom de adulto superocupado.

— Escuta, eu adoraria conversar com você sobre sentimentos e biologia e tudo mais, mas tenho uma consulta marcada pra dez minutos atrás. Aliás, o Julian ligou praí esses dias? Esquece, depois eu falo com ele. Não posso deixar minha agenda atolar. Você entende, não é? Manda beijo pra mãe.

Ela desliga e volta pra sua vida no consultório lá pelas ilhas do Sul, onde mocinhas adoráveis que fazem curso de esculpir santos em sabonete fazem rodízio pra serem suas secretárias insossas e tentarem fazer a família marcar hora pra ser atendida em uma emergência com risco de morte, e eu fico sozinha no telefone, no meio da cozinha da nossa casa.

Eu entendo. É claro que eu entendo.

Eu entendo que Giovana é uma bobona ingrata que nunca me perdoou por causa daquele rato peludo estúpido, que nem nadar sabia, e vai me negar um diagnóstico decente e me deixar pra morrer toda rabiscada de verdades absurdas. Como ela pode não ver que as coisas não estão normais por aqui? Como Isaac pode ter a cara de pau de chispar pra outro lado do mundo antes das nossas provas finais? E sem nem me dizer o motivo? Quem aquele animal pensa que é? De quem diabos ele espera que eu consiga as respostas da prova de legislação doméstica se ele não está aqui?

Mamãe ainda está trabalhando e todo barulho da casa vem da televisão da sala que eu sempre deixo ligada como minha trilha sonora quando estou sozinha, para dar mais emoção ao meu cotidiano. Na tela que ocupa metade da parede umas garotas jogam vôlei na praia só de biquíni, sem nenhum rabisco nos traseiros. Eu nunca vi ninguém usar tantas poucas roupas assim pessoalmente, só nos livros suspeitos do namorado da Giovana. É quase estranha a ideia de pessoas irem à praia sem o super traje de férias, cobrindo das clavículas até o tornozelo. Do jeito que as meninas pulam eu posso ver exatamente o lugar onde em mim a nova frase apareceu escrita. Posso vê-la como se estivesse em toda a parte. “Eu quero que você fique”.

O nome da mega empresa de corretivo corporal aparece em um letreiro iluminado e as meninas sorriem como se alguém tivesse oferecido chocolate antes do almoço. Eu desligo a televisão, cato minhas chaves e jogo a mochila da escola de volta no meu ombro.

Se minha irmã não vai me ajudar a descobrir o que tem de errado comigo, eu arranjo quem me ajude.


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Notas finais do capítulo

Eu tenho essa história escrita há mais de um ano no computador, e venho trabalhando nela minuciosamente praticamente todos os dias. Eu realmente não tenho a sensação de que esteja finalmente terminada, e pretendia somente postar depois de ter todos os capítulos escritos para fugir do meu constante pesadelo de "abandonar-histórias-por-incapacidade-de-fazer-um-final", mas me veio a urgência de postar. Não posso atribuir tamanha urgência hoje, agora, à outra coisa senão às quatro provas que eu vou ter daqui a dois dias e para as quais estou procastinando a beça. Então, agradeçam à minha faculdade, porque se eu não tivesse a obrigação e reponsabilidade massiva de estudar pesando nos meus ombros feito nove quilos de farinha de trigo, provavelmente vocês continuariam sem ter o que ler. Muita coisa mudou na história com o tempo, exceto a ideia principal: um mundo onde o que você não diz se escreve no seu corpo e você que se vire com isso. Então, e você? O que você faria se aquilo que você não tem coragem de dizer aparecesse escrito no seu corpo?