Arranha-Céus Flutuantes escrita por Aphrodite Laclair


Capítulo 1
Parte I


Notas iniciais do capítulo

é assim que funciona meu esquema com longfic né posta uma coisa que mal tem um começo depois faz das tripas coração para honrar compromisso. mas dessa vez já tenho quatro partes escritas e eu imagino que não vá ficar muito mais longa que isso, então vai dar certo! deus é grande!!!! O UNIVERSO HÁ DE ME AJUDAR
essa fanfic foi vagamente inspirada num desafio do tumblr desafios para fics de hetalia, porém tomou um rumo totalmente diferente do proposto então não vou mandar pra lá. mas que os créditos fiquem registrados.



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Arranha-Céus Flutuantes

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A terra foi posta aqui só para alimentar a solidão humana?

Haruki Murakami

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Parte I Jeanne

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Debaixo do sol de verão, foi assim que Francis conheceu aquela que seria a única mulher da sua vida por muito tempo — Jeanne. Ela tinha uma voz curta e seca, se é que uma voz pode ser curta e seca; se expressava de modo agressivo, direto. Seus cabelos eram curtos e seus olhos eram de um castanho brilhante. Sob a luz sua pele amorenada reluzia, resplandecia.

Francis a viu pela primeira vez e ela segurava firmemente um livro entre os dedos de unhas roídas. A capa estava tão surrada, de alguma forma tão maltratada, que daquela distância — ela estava do outro lado daquele canto do parque — era impossível distinguir o título. De qualquer forma, era preto e parecia muito sério. Intimidante. Francis pensou, quase sem perceber, quase sem atentar para o fato de ter pensado: eis uma mulher como todas as outras mulheres do mundo. Uma mulher tão comum e por isso mesmo — por isso mesmo tão especial.

Jeanne levou um dedo até a boca, lambeu e virou uma página amarela. Daquela distância — mesmo longe Francis via, que página manchada. Jeanne obviamente não tinha nenhum cuidado com nada, o que mais tarde se revelaria um prelúdio de sua personalidade autodestrutiva, mas estou me adiantando.

Debaixo do sol de verão, Jeanne virou a página e Francis sorriu. De fato, uma mulher como todas as outras mulheres.

Francis que tinha os cabelos longos, longuíssimos, atingiam naquela época a cintura, sorriu perante o contraste. Ah, os papéis de gênero! Quão ridículos eles podiam ser! Quão divertido podia ser quebrá-los! Levantou-se, espanou os pequenos pedaços de grama do jeans e foi em direção àquela introspectiva desconhecida. Quão bela e estóica ela parecia, ali debaixo da árvore com seu livro de capa preta.

— Desculpe incomodar, — a voz de Francis era baixa, quieta, mas bonita; bonita, mesmo assim — e realmente devo ser um incômodo, portanto não se sinta obrigada a me responder. Mas eu estive te observando (desculpe, de novo, que indelicado) e seu livro… Seu livro me intriga demais. A capa é preta e eu não consigo descobrir o título.

— É A Política, do Aristóteles. — seca, afiada. Se Francis tivesse que descrever a voz de Jeanne diria: navalha. — Mas ele era um misógino.

— Um misógino?

— “Uma mulher — sua voz adquiriu um frio deboche, e eu sorri — é o avesso de um homem.” Um homem do avesso, é ao que o meu gênero foi relegado. Um homem do avesso!

— E mais o quê?

— “Uma mulher é um vaso vazio.”

— Coisa mais horrível.

— Imbecil é a palavra que você está procurando.

— Meu nome é Francis.

— Jeanne.

— Jeanne. Como uma santa.

— É nome de santa, tenho certeza que minha mãe tirou de alguma santa. Da Bíblia, talvez. Você é religioso?

— Não sou religioso.

— Nem eu, mas eu queria saber. Minha mãe não fala. Acho irônico. Meu nome ser de santa, quero dizer.

— Jeanne combina com você.

— Por quê?

— É um nome comum.

— Eu sou uma mulher comum?

— Não sei. Você é?

— Sou uma mulher das multidões. Uma mulher das mulheres.

— Uma feminista.

— Uma feminista! Obviamente!

Ela encarou um maço de cigarros jogado displicentemente sobre sua bolsa amarela e depois o olhou, como se perguntasse: se importa? Fez que não. Ela tirou um isqueiro desses baratos sabe-se lá de onde e acendeu um longo cigarro de filtro vermelho. Francis teve, por um segundo, a nítida sensação que seus cabelos pegariam fogo com a brasa da bituca, mas a ilusão desapareceu com uma piscada.

— Jeanne. — ela o olhou, os olhos brilhantes e interrogativos, intimidantes, meio enevoados pela fumaça. — O que te trouxe aqui hoje?

— O que me carrega para todos os cantos: o vento. A vida. Acontece, não acontece? De a gente simplesmente ir.

— Acontece. — uma pausa, Francis sorriu. A luz incidia de certa forma tão delicada sob a figura de Jeanne (de um jeito étereo e mesmo assim absurdamente fincado na terra) que ele momentaneamente perdeu o ar. — Desculpe. Eu simplesmente cheguei aqui e atrapalhei sua leitura… Onde eu estava com a cabeça! Me desculpe. Na lua, provavelmente.

— Não se preocupe. — ela inclinou a cabeça, e seus cabelos curtos (sujos) não balançaram muito. — O livro estava tão chato, você não faz ideia. Tão chato.

— Chatíssimo?

— Uma desgraça. Uma desgraça misógina, ainda por cima! Não consigo ler uma linha de Aristóteles sem pensar no caminhão de merdas machistas que ele saiu falando por aí. É meu defeito. Não diferencio autor-obra. Pra mim são uma coisa só.

— Não acho que tenha — uma pausa cuidadosa — algum problema. Alguns autores sequer estimulam essa diferenciação… Usam sua obra como forma de exorcismo? Eu diria?

— Uma forma de punição?

— Nem sempre. — silêncio. — Às vezes. Às vezes punição para si mesmo, e para os outros. Mas em outros casos, apenas! Exorcizar. Os demônios.

— Uma desgraça. — ela repetiu, entre um suspiro e outro. E outro. — Uma desgraça. Enfim! Te vi do outro lado desse canto sórdido do parque — uma pausa, uma risadinha cúmplice —, mas não pensei… Sei lá o que eu pensei. O que você está fazendo aqui?

— Tem que ter um motivo para tudo? — uma risada suave, que flutua no ar e dissolve. Resplandece contra o sol como se tivesse embaixo d’água. — Você se importa em caminhar comigo?

— Caminhar? Não me importo.

— Por locais movimentados. Prometo.

— Melhor ainda.

Francis caminha a uma distância de um palmo e meio do braço direito de Jeanne. Ela usa um casaco azul bebê que combina, de alguma forma, com o céu e com o cabelo de Francis — com o cabelo de Francis, sim. Ela obviamente está distraída com alguma coisa dentro de sua própria cabeça, então por dez minutos eles apenas andam em silêncio ao longo do parque e acabam saindo do que Jeanne chama carinhosamente de a parte obscura, a parte onde Jeanne gosta de ler e Francis gosta de observar as pessoas. Dentro de um casulo, de um mundo pessoal, Francis a observa com o canto do olho, o cabelo dela que é tão curto e tão sujo, suas feições que de tão comuns se perdem. Confundem. Ela o atrai irremediavelmente. De uma forma ainda inexplicável.

— O sol está quente, não?

— Você está falando do tempo? — Francis ri baixinho. Ela é de certa forma amável, de algum jeito adorável. Ela segura o livro de capa preta entre os dedos de unhas roídas e sorri.

— Você estava tão calado! E eu falo demais, todo mundo diz. E minha avó sempre diz que quando a gente quer falar alguma coisa, quando a gente precisa falar alguma coisa e não sabe bem o que, a gente fala do tempo. Nem que seja pra dar um pretexto.

— Nem que seja pra dar um pretexto. — caminham, e caminham, e caminham. Doze passos até que ele fale novamente, Jeanne conta. — Você acredita nisso?

— Nisso o quê?

— Que às vezes a gente tem coisas importantes a dizer?

— Acredito. Todo mundo tem coisas pra dizer. Só que nem todo mundo tem alguém pra ouvir, acho. Bom. É isso que eu acho.

— Li um livro uma vez que dizia desse jeito assim: Marina me dizia sempre que a gente só se lembra do que nunca aconteceu.

— Parece verossímil.

— O livro era bom.

— Eu não sei se a gente pode se lembrar de qualquer coisa que seja… Eu não sei se as coisas podem realmente acontecer.

— Como assim, Jeanne?

— As coisas acontecem de verdade? Pra mim, eu não sei, na minha cabeça, de alguma forma, é como se tudo se desenrolasse sem se desenrolar. Resumidamente, as coisas acontecem sem acontecer de fato. Reiniciam. E então? A gente fica se lembrando do que nunca aconteceu. E que nunca vão acontecer.

— Pessimista e confuso.

— Mas não o somos todos!

— Ah, Jeanne, vamos apenas caminhar. — uma risada, límpida, acompanhada da gargalhada cortante e alta de Jeanne. Francis pensou, de novo, o quão amável ela poderia ser?

Vinte e quatro passos no mais completo e confortável silêncio até que Jeanne entrelaçou seu braço direito no braço esquerdo de Francis e ele simplesmente soube, soube que aquela distância vencida era muito mais do que um palmo e meio. Algo estava começando ali, agora. Algo grande, bonito.

Ele até hoje se lembra.

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Do outro lado da cama — o lado direito? — Jeanne jazia adormecida. Profundamente. Seus cabelos escuros como piche estavam ainda mais curtos, e Francis brinca: daqui a pouco não vai sobrar nada para cortar, Jeanne, nada! Ela sempre ri. Jeanne, sua santa. Enfim, ela jaz adormecida. O lençol é amarelo e mais sujo que o cabelo dela costuma ser, mais desleixado que suas unhas. Francis não se importa. Francis ama cada aspecto de Jeanne, Francis ama sua personalidade de zona de guerra.

Ele, ao contrário, permanece acordado, observando cuidadosamente cada traço do rosto, da pele rachada e cheia de cicatrizes de velhas batalhas perdidas, da mão que descansa perto do rosto como uma criança. De alguma forma, de algum jeito, Francis olha para Jeanne e só pensa em amor.

Quando ela abriu os olhos, lentamente, um bater de cílios como asas de mariposa, duas esferas cor de chocolate meio-amargo que o brindaram com uma expressão de sonolenta indagação. Até cansada, seu corpo lhe entregava; até cansada, ela ordenava.

— Francis? — sua voz estava quebrada, seca. — Não fique me encarando assim enquanto durmo, é perturbador.

— Perturbador?

— Parece coisa que aquele tipo de namorado machista que assassina a ex faria. Já posso até ver a manchete: o assassino, companheiro da vítima, gostava de observá-la dormir. — Francis riu, sua voz tem um colorido de sono.

— Como você pode pensar nesse tipo de coisa a essa hora da manhã de um dia tão bonito?

— Pra que tanto bom humor? Que coisa medonha, Francis, me deixe dormir. — seus olhos se fecham de novo, mas ela não lhe dá as costas. Apesar de tudo, Francis sabe, apesar de tudo ela adora quando ele a observa dormir, quando ele decora cada uma das cicatrizes do seu corpo, cada um dos traços do seu rosto. Ela nunca vai admitir, entretanto. Mas Francis não precisa de uma confirmação (o amor é maior, mais aberto e altruísta que isso, ou pelo menos é o que ele acredita), eles fizeram no dia anterior três meses em que eles estão saindo de forma extra-oficial porque nenhum dos dois acreditam realmente em relacionamentos, e Jeanne nunca, jamais, usaria uma aliança no dedo por motivo nenhum. Três meses e eles se divertem tanto, Francis se pergunta se alguma vez ele foi mais feliz. Ele praticamente sabe quase tudo que há para se saber sobre a parte superficial da personalidade de Jeanne, e está começando a desvendar o que realmente lhe intriga, o quão confusa e controversa ela pode ser. Ele nunca disse para ela eu te amo e ela nunca lhe disse eu te amo. Que palavras superficiais são essas eu te amo. Ele simplesmente, quase não se importa.

— Me desculpe, santa Jeanne. — ele diz, a voz baixa para não acordá-la, seu peito sobe e desce de forma regular, mas sua expressão é fechada em seu sono sempre agitado. — Volte a dormir.

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— Estou pensando em deixar meu cabelo crescer, ficar tão longo quanto o seu, só para poder amarrar. Acho elegante. Amarrar o cabelo num coque, como eu faço com o seu, e ficar parecendo uma pintura.

— Mas para isso você precisaria ser bela como eu, Jeanne! — uma risada alta, clara, limpa e divertida. Afetuosa. Ela sorriu de volta, os lábios torcidos mais em reprimenda que empatia. — Meu deus, como eu minto. Você é a mais bela. Mas você tem tanta preguiça, Jeanne, tanta preguiça de cuidar desse seu cabelo, o que será de você?

— A verdade é que você tem razão, mas é bonito! Que é bonito, é. Você obviamente não sabe, sempre teve esse cabelo aí.

— Não é verdade. Você sabe que não foi sempre. Você é dada ao exagero, é dramática como uma grega.

— Uma grega?

— As antigas, antes do Império Romano.

— Dramática como uma grega, gostei. — o sorriso se espalhou, preguiçoso, pelo rosto dela, iluminando-lhe as feições, incidindo a alegria sob os olhos e as bochechas altas, os lábios se tornando um risco vermelho. Francis pensou, consigo mesmo, quase sem notar que pensou, que era a primeira vez que ele sentia tanto amor por alguém. Que antes dela, o amor era um conceito totalmente diferente — antes dela, o amor não existia.

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Marina sempre me disse que a gente só se lembra do que nunca aconteceu… As palavras escritas na letra cuidadosa, delicada e redonda — quase feia — de Jeanne lhe inspiraram um sentimento profundo de afeto. Talvez fosse a referência, talvez fosse mesmo a letra, mas Francis pegou o post-it amarelo que estava pregado no espelho do banheiro do quarto e guardou no bolso. Nunca mais devolveu, se é que isso agora interessa. Do bolso serviu a vários propósitos, de marcador de página até enfeite, até seu final derradeiro — a lata de lixo — quando Jeanne foi embora, quase três anos depois.


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Notas finais do capítulo

só deixando avisado, para quem não me conhece de outras fic e provavelmente não está informado, que eu não respondo review. quer dizer, eu adoro recebê-los, mas tenho crises sérias de ansiedade sempre que sento para respondê-los então já não faço isso há um tempo. vou entender 100% se vocês não quiserem mandar, não posso pedir isso sabendo que não vou responder nunca, mas se vocês quiserem mesmo assim eu vou ficar feliz. ♥