A Inútil Capacidade de Ser Indiferente escrita por Fabrício Fonseca


Capítulo 2
Um




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O mínimo que eu esperava da minha madrasta em uma segunda sem aula era que ela me deixasse dormir até a hora do almoço – eu nem me preocupava com o café da manhã, podia apenas acordar e já partir para o almoço –, mas ela geralmente não faz o que eu espero, então me acorda ás sete da manhã para que eu possa ir á feira com ela. E como meu pai já foi trabalhar eu não posso reclamar com ele. Como se meu pai fosse realmente ficar do meu lado e não do dela, penso enquanto me levanto e vou em direção ao banheiro.

Escovo os dentes no ritmo desanimado de sempre, lavo o rosto e volto para o quarto para trocar de roupa; estou fazendo tudo com tanta calma que logo Eliza, minha madrasta, vem me apressar.

–Se você continuar com essa lerdeza não vamos conseguir chegar a tempo de comprar as melhores verduras. – Ela está com uma daquelas sacolas sustentáveis na mão direita.

–E eu nunca vou me perdoar se fizer você se atrasar, Eliza – digo com ironia, mas acho que ela não entende já que apenas diz para eu me apressar.

Assim que termino de me arrumar pego meu telefone e nós saímos. Como sempre Eliza está especialmente bonita – e feminina –, ela está usando um vestido amarelo rodado de alcinha, sandálias de couro e com o cabelo louro encaracolado jogado para o lado. Ao meu lado ela está especialmente se destacando já que estou usando meu all star preto, um short jeans, uma camiseta verde-escuro e com o cabelo castanho liso amarrado em um rabo de cavalo. Na verdade acho até um pouco estranho que Eliza não tenha reclamado do jeito que estou vestida e tenha pedido para eu trocar de roupa, já que ela nunca gosta do que eu visto.

Com a pressa que Eliza está tenho que ir correndo atrás dela até a praça do centro para que não fique para trás.

Eu moro em Montana, uma cidade de Minas Gerais que fica a trinta minutos de Belo Horizonte e por esse motivo não está no mapa. A cidade foi “criada” por um criador americano de gado chamado Alfred Montana e por isso recebeu esse nome. Mas Montana é razoavelmente grande, e a cidade está quase sempre aparecendo no jornal por causa do congestionamento que acontece durante os feriados e as pessoas que passam por aqui indo para a capital do estado. Mas apesar de tudo Montana não é conhecida por festas já que é uma cidade relativamente calma, até mesmo as festas como aniversários são sempre feitas nos salões de festa de Belo Horizonte, exceto o baile “Inverno de Amor” que é produzido pelo Asilo Santa Eugênia todo ano no ginásio da cultura.

–Olha, Nathalia está logo ali, vamos lá nela. – Minha madrasta diz indo rapidamente em direção a mãe de Vanessa uma de minhas colegas que está próxima a barraca das flores, e eu vou logo atrás dela.

Ao lado da mãe de Nathalia há um garoto um pouco mais alto que eu, cabelos pretos e lisos usando calça jeans e uma camiseta sem mangas; eu poderia dizer que aquele garoto é o irmão de Vanessa, mas Eric é bem mais alto e não é tão bonito. Na verdade aquele garoto é bem gatinho.

–Oi, Eliza! – Nathalia diz logo após Eliza cumprimentá-la. – Olá, Laura! Não foi viajar? Vanessa foi passar as férias com os avós em Porto Seguro.

–Não gosto muito de viajar – minto, não queria começar a conversa sobre “achar que aquele tempo sem aula não fosse férias” novamente.

–Quem é esse garotão com você, Nathalia? – Eliza pergunta toda sorridente, por que gente velha gosta tanto de usar termos como “garotão”, “meninão”, etc.?

–Ah, esse é meu sobrinho, Thomás – ela coloca a mão sobre o ombro do sobrinho. – O pai dele está resolvendo algumas coisas em Belo Horizonte e ele vai passar uma semana conosco.

–Olá, Thomás – minha madrasta aperta a mão dele. – Essa é minha filha Laura. – Eliza sempre me apresenta assim para as pessoas, ela cuida de mim juntamente com o meu pai desde que eu tinha dez anos então meio que se tornou mesmo minha mãe, mas eu acho meio estranho chama-la assim então digo apenas seu nome mesmo.

–Oi! – Ele diz para mim todo sorridente (o que me deixa estranhamente irritada) e eu apenas devolvo um sorriso para ele.

–Que tal você irem andar por aí? – Nathalia diz. – Você podia mostrar a cidade para ele, Laura.

–Não posso, eu vim ajudar nas compras...

–Tudo bem, Laura, pode ir com o Thomás, faço as compras com a Nathalia – Eliza diz me interrompendo e eu olho para ela com um “pouco” de ódio, ela estava sempre me empurrando para cima dos filhos de suas amigas, nesse caso o sobrinho.

–Vamos então, Thomás. – Me viro e vou em direção contraria da que tínhamos vindo.

Depois de alguns segundos andando penso que talvez tenha deixado o garoto para trás, mas então ele aparece ao meu lado com uma flor branca nas mãos.

–Uma flor para outra flor! – Ele diz estendendo a flor em minha direção.

–Que clichê! – Digo sem pegar a flor.

–Eu gosto de clichês, eles são previsíveis, mas ao mesmo tempo são encantadores.

–É, mas se você me conhecesse talvez soubesse que estou mais para um cacto.

–Cactos são fortes, também gosto deles.

Paro e olho para ele, esse garoto é bem bonitinho, mas também é bastante estranho.

–Está bem, aonde quer ir?

–Não sei, talvez possamos ir ao lago dar comida aos patos, ou ir ao zoológico, ou até mesmo andar por ai e logo depois ir ao cinema.

–Espera um pouco aí, você conhece Montana?

–Claro que conheço, minha tia mora aqui.

–Então por que sua tia me disse para mostrar a cidade para você? E por que você concordou?

–Porque ela estava me “jogando” para cima de você, e eu acho isso divertido.

Reviro os olhos e continuo a andar, de qualquer forma eu pelo menos me livrei de ficar escutando Eliza falar sobre como a berinjela faz bem a saúde ou qualquer outra coisa do gênero.

–Você é sempre assim sem graça? – Thomás pergunta ainda andando do meu lado. – Aquilo foi uma piada, eu só não queria ficar lá comprando verduras com a minha tia tagarela.

–Não achei graça em sua piada.

–Por que será que não me surpreendo com isso? Do que mais você não acha graça...?

–Da vida – o interrompo. – A vida é uma grande comédia Stand Up, da qual eu não vejo graça alguma.

–Pelo visto você também é filosofa.

Prefiro não responder e continuo a andar, atravesso a Avenida 52 e continuo andando – com ele ao meu lado.

–Ela não é sua mãe de verdade, é? Digo Eliza.

–Não, como descobriu? – Pergunto com indiferença, apenas para não ficar calada mesmo.

–Os rostos de vocês são completamente diferentes, apesar de seus olhos serem bem parecidos, mas se fossem mãe e filha de verdade teria o mesmo formato de rosto dela.

Novamente prefiro não dizer nada, continuo andando e ficamos em silêncio.

Subimos a rua e atravessamos no sinal na Avenida Alfred Montana – a avenida principal da cidade – e finalmente chegamos ao lago.

–Chegamos, está feliz? – Vou andando até um dos bancos de madeira e me sento, ele se senta ao meu lado.

–Você é sempre assim tão indiferente com as pessoas? As ignorando e simplesmente agindo por agir sem se importar? Quer dizer, você poderia ter voltado quando descobriu que eu já conhecia a cidade, mas simplesmente continuou, porque pra você tanto faz.

–Prefiro ser indiferente com as pessoas e com todo o resto, isso torna as coisas mais fáceis. – Começo a falar, não sei bem porque faço isso, só me sinto com vontade de conversar com alguém. – Isso faz com que eu não sofra quando as coisas ruins finalmente acontecem e com que eu simplesmente esteja preparada para lidar com elas quando finalmente estouram.

–Então quer dizer que você nunca faz nada novo, apenas fica esperando que as coisas ruins aconteçam para que continue sempre com sua armadura contra os sentimentos?

Olho de repente para ele porque não disse nada sobre sentimentos, mas ele parecia ter adivinhado.

–Na verdade é assim mesmo.

–O.K., temos uma semana, pelo quê quer começar?

–Como assim “pelo quê quer começar”?

–As coisas que você sempre teve vontade de fazer, mas nunca fez. Vou ficar aqui até sábado, o que nos dá cinco dias e meio.

–Isso é loucura, não podemos...

–Podemos sim, e vamos. Se não fizer coisas assim agora talvez nunca faça e se arrependa eternamente por isso. Pode começar a falar.

Esse garoto é completamente maluco, talvez se eu agir como maluca também ele desista dessa ideia... Ou se fixe ainda mais nela.

–Está bem, eu sempre quis cometer um crime, mas nunca fiz nada pior do quê chamar minha ex melhor amiga de “vadia” na frente de toda escola.

–Começou com uma boa, gostei! – Ele diz sorrindo. – Bem, teve um livro que eu li em que um garoto foi parar no reformatório por atravessar fora da faixa de pedestre.

–Que crime idiota.

–É, mas deve ser um crime da mesma forma que um roubo é. Só não se fica preso pelo mesmo tempo. – Ele se levanta e estende a mão para mim. – Vamos ser criminosos juntos?

–Tudo bem vamos, mas se formos pegos você vai ficar com toda a culpa – brinco e não sei bem exatamente porque fiz isso.

*

Por ser o caminho principal da cidade a Avenida Alfred Montana está sempre muito cheia de carros indo e vindo e é na calçada ao lado dela que estamos agora. Os carros estão passando tão rápido que nem mesmo dá pra contá-los e eu não me sinto nem um pouco arrependida por ter aceitado aquela loucura, na verdade me sinto muito animada com essa história de cometer um crime – será que isso diz alguma coisa sobre a pessoa que eu sou? Provavelmente sim.

–Olha lá! – Thomás diz todo sorridente apontando para seu lado direito, me desvio de seu corpo para olhar e vejo dois policiais andando calmamente na direção em que estamos.

Pelo visto estamos sem sorte – ou no caso já que queremos cometer um crime: com sorte.

–Tem que ser agora. – Ele aponta para o sinal logo a cima que acaba de ficar verde. – É muita sorte! – Ele diz todo sorridente antes de virar para os policiais e chamar a atenção deles para nós.

Assim que Thomás começa andar no asfalto á mais ou menos um metro da faixa de pedestre eu sigo atrás deles. Nós passamos rapidamente com os motoristas usando ferozmente a buzina de seus carros – e correndo o risco de sermos atropelados – e ouvindo os policiais gritando atrás de nós.

–Ei garotos, não sejam idiotas você vão acabar mortos. – Disse um dos “homens da lei”.

–Vão acabar causando algum acidente, idiotas. – Disse o outro parecendo estar um pouco mais zangado.

Atravessamos o resto correndo e paramos rindo quando chegamos à calçada do outro lado.

–Obrigado por nos assistirem! – Thomás grita para os policiais do outro lado e eu me limito a apenas rir.

Quando olho para o lado vejo um terceiro policial andando rapidamente em nossa direção.

–Olha! – Aponto para o cara o fardado e logo começamos a correr. Quando olho para trás vejo que o policial vem atrás de nós.

–Pelo visto isso foi realmente um crime – Thomás grita enquanto corremos o mais rápido que podemos.

–Ainda bem que ser uma foragida da lei também está na minha “lista” de coisas a fazer. – Brinco. Thomás solta uma risada alta.

Atravessamos a Avenida correndo até chegar á 52 e paramos quando vemos que o policial não está mais nos perseguindo. Assim que olhamos um para o outro começamos a rir.

–Tenho que admitir que isso foi realmente divertido – digo ainda sorrindo.

–Sabia que gostaria – ele para por um momento para respirar. – Então, qual a próxima coisa da “lista”?

Levanto a cabeça olhando para e ele e começo a pensar em algo diferente.


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