You make me feel wrong escrita por Lyssia


Capítulo 20
Angel with a shotgun


Notas iniciais do capítulo

Oi....
Desculpem-me. Tive vários probleminhas que se juntaram em uma grande bola de problemas, e ainda tava tendo de escrever pelo celular. Mas demorou. Muito. Eu sei. Eu odiei isso, também, acreditem.
A música do título é da banda The Cabs.



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Ele observou o desenho recém-terminado, os traços feitos por lápis formando a imagem do adolescente sorridente, sentado a uma mesa, com os cotovelos sobre esta, roupas largas no corpo magro e cabelos bagunçados, aqueles olhos muito expressivos fitando algo que não fora desenhado, um outro alguém, provavelmente, em uma conversa agradável, que terminaria com risadas soluçadas e linguagem corporal empolgada, desde que tudo desse certo.

Fazia algum tempo que ele não desenhava Santini.

Largou o lápis, amparando a cabeça com as mãos e fitando a folha de papel com olhos arregalados, pois se sentira tão extremamente tranquilo enquanto deixava as feições se formarem, tão calmo e bem durante todo o processo, que era impossível acreditar que fizera algo tão absolutamente errado assim. Como se já não bastasse ter sonhado com ele aquelas quatro vezes, e desviado-se de seu caminho apenas para vê-lo. Como se tudo aquilo já não fosse nojento o suficiente.

Ele rasgou o desenho em pedacinhos, levantando-se da cadeira e deixando os restos de papel sobre a escrivaninha, passando a mão pelos cabelos em um gesto nervoso e deixando o quarto, descendo as escadas agarrando-se ao corrimão, até chegar ao último degrau e sentar-se ali. Ninguém havia chegado ainda, a casa vazia demais, parecendo ecoar sua falha em se conter, com nervosismo escalando sua garganta de maneira cada vez mais eficaz.

Ele sabia que estava fazendo o certo, no fundo, mantendo-se longe da tentação de pecar, renegando aquele caminho, mas era tão absurdamente difícil.

Fechou os olhos com força, tentando respirar de forma mais compassada, alguns segundos depois desistindo e subindo com passos apressados. Ele passou a mão pelo material de desenho, descendo as escadas quase que correndo e acendendo a luz da varanda de trás antes de abrir a porta e se sentar lá, começando a desenhar uma menina em um balanço de folhas, flores e raízes, forçando calma ao puxar as asas pontiagudas e delicadas.

O que ele precisava, certamente, era de uma distração boa e eficaz. Apenas isso. A escola não vinha sendo o suficiente de trabalho, no fim das contas, e ele precisava se ocupar e não pensar em Santini mais, não ter sequer tempo para isso. Ao menos isto ele podia providenciar sem dificuldades.

~o~

— Então, aconteceu algo? — o médico questionou, em um tom tranquilo, recostado confortavelmente em sua cadeira giratória, mas com a ficha de Santini sobre a mesa, uma caneta próxima, a postos para suas anotações. — Problemas com o remédio? — sugeriu quando o outro não respondeu.

Santini abaixou o olhar, sentado na poltrona confortável de antes, os dedos traçando padrões no braço do móvel insistentemente, os pés se remexendo dentro dos tênis, mas ao menos a perna não balançava. Havia apenas trocado cumprimentos iniciais com o médico e sentado-se ali, com toda a determinação da segunda-feira parecendo muito distante para ser alcançada.

O pai, como pensara, acabara não podendo ir com ele. De fato, eram apenas 14h, o que significava que ele ainda estava no trabalho e havia ligado para a escola no dia anterior pedindo que Santini fosse liberado após o almoço, para a consulta médica. Supostamente, tudo que devia fazer era dizer ao médico sobre como as mordidas começaram e a sensação que elas lhe traziam. Parecia perfeitamente simples. Mas ele devia saber desde o principio que não era, uma vez que sequer conseguia olhar alguém nos olhos quando elas estavam daquele jeito.

— Não. — conseguiu obrigar-se a dizer, em um sussurro trêmulo. Então pôs a mão direita, a com o polegar mordido, embora o machucado já estivesse com uma casca, em processo de cicatrização, sobre a mesa. — Olha. — murmurou, indicando a ferida. — Isso quase nunca acontece. É muito, muito raro. Eu mal me lembro a última vez.

— Foi você que fez isso? — o psiquiatra perguntou em uma voz calma e ele abriu a boca para responder, sentindo algo travar a garganta e fechando-a de novo, resignando-se a assentir. — É raro você machucar a si mesmo ou morder os dedos?

— Morder algo que não seja a boca. — disse em um só fôlego, puxando ar pelos lábios em seguida. — E eu nem… eu nem notei o que tava fazendo até o remédio fazer efeito. Eu tava… tava na sala de aula. Isso foi perigoso. — o médico soltou um som de compreensão, sem se mexer.

— Você pôs o dedo na boca porque já havia feito essas feridas novas? — negou novamente, apertando o braço da poltrona entre os dedos para tentar continuar.

— Isso foi depois. — expirou tremulamente, arrastando as unhas pelo estofado. — Eu não consigo. Eu não consigo falar disso. Não dá. — murmurou nervosamente, de forma acelerada, abaixando ainda mais a cabeça, com as orelhas queimando.

— Respire fundo. — o médico pediu, sem se abalar. — Vamos concentrar nisto, por enquanto. Respire bem devagar, deixe os músculos relaxarem quando expirar. Tudo bem? Você consegue? — assentiu, fazendo o que o psiquiatra mandava, embora ainda mantivesse os olhos nas pernas, tentando tirar um pouco da tensão dos ombros. Alguns poucos minutos depois, quando já quase se sentia melhor, o homem tornou a falar. — Como você prefere que eu te chame? Primeiro nome ou sobrenome?

— Primeiro nome, por favor.

— Certo. — ele concordou, ajeitando-se na cadeira e pondo as mãos sobre a mesa. — Então, Santini, por que você não me olha nos olhos? — perguntou, ainda naquele mesmo tom, que parecia imutável, e o adolescente encolheu os ombros, resistindo ao impulso de fechar os olhos com força, morder o lábio ou levantar e sair correndo. — Não, não. Não foi uma pergunta sarcástica ou um desafio. É uma questão real. Por que você não me olha nos olhos?

— Eu não sei. — foi seu primeiro impulso, em uma voz estrangulada. Então, alguns segundos depois, negou com a cabeça. — Isso é constrangedor.

— Estar em um psiquiatra?

— Não. — respondeu, erguendo uma mão que começava a tremer para indicar os lábios. — Estar aqui por causa dessa coisa doentia.

— Hm… então deixa eu te contar uma coisa? Eu sou o seu psiquiatra. Eu estou aqui pra ouvir todas essas coisas que você acha que são constrangedoras, e eu não tenho o menor direito de te julgar. Nem o mais mínimo. Então por que você não tenta me olhar nos olhos? Você pode desviar de novo assim que você quiser, mas quem sabe manter a cabeça erguida não ajude um pouco na sua auto-confiança?

Ele fez o que o médico mandou, encarando-o com hesitação e então recostando-se mais na poltrona, franzindo o cenho sem notar. Era difícil não abaixar a cabeça novamente, mas ele tentou, mesmo assim, porque o homem tinha razão, para começar, e porque ele por si mesmo odiava manter a cabeça baixa.

— Como está?

— Nervoso. — respondeu honestamente, abrindo um meio sorriso levemente travado. — Pra cacete, com o perdão da palavra. — o médico sorriu de lado, se sentando novamente de forma confortável na cadeira giratória.

— Respire fundo um pouco mais, que tal? Até se sentir melhor. — ele assentiu, aliviado de não ter de se apressar, e puxou ar, expirando lentamente, tentando relaxar os ombros outra vez.

— Por onde eu começo? — questionou quietamente quase cinco minutos depois, quando julgou que já havia relaxado o quanto era possível: não era como se fosse atingir 100% mesmo que tentasse por duas horas, naquela situação. Melhor acabar logo com aquilo.

— Por onde você quiser. Sempre.

— Ok. — respirou fundo novamente, tentando reunir coragem. — Ok. Sabe qual é o problema de se morder?

— Qual?

— É que você não precisa pensar praticamente nada pra fazer isso. Eu não preciso pegar uma lâmina, não preciso nem arrumar uma, não preciso pensar em consequências, porque isso nunca vai me matar, e é muito, muito difícil de controlar. Isso eu imagino que seja igual às outras formas de se machucar de propósito, mas, é.

Ele parou, observando o médico escrever por um segundo, então respirou fundo novamente, encarando um ponto fixo na mesa e esperando até o doutor erguer os olhos para ele para continuar falando.

— Até o jeito que eu comecei foi escroto. Com o perdão da palavra.

— Não se preocupe com palavrões, aqui. Siga o impulso.

— Ok. Então, sabe essas mordidas no lábio super normal que as pessoas dão quando estão nervosas ou com vergonha? Foi isso. Foi só isso. Mas eu perdi o controle e acabei mordendo muito forte. E aí tudo foi pro espaço, basicamente. Isso acalma. Acalma mesmo. Eu não sei porque, mas, sei lá. Limpa a minha mente. — piscou, franzindo o cenho. — Por que isso limpa a minha mente?

— Os motivos por trás de auto-mutilação são muito particulares. Algumas sequer chegam a notar o porque.

— Ah. Que merda. Hn. Ah... Acho que eu quero um calmante.

— Fique à vontade. Quer um pouco de água?

— Quero, por favor. — o homem se levantou, fazendo Santini negar com a cabeça freneticamente. — Não, não. Deixa. Eu não quero remédio. Deixa. — falou, extremamente rápido, e o psiquiatra sentou-se novamente, observando-o com atenção. — Eu tinha doze anos, fiquei nervoso e aí perdi o controle. Sangrou, e doeu, mas eu fiz de novo, e de novo, e de novo, e de novo… — ofegou, fechando os olhos por um segundo. — Foi por aí que eu comecei a ficar com medo da sala de aula, também. Eu tenho que conferir por saídas de emergência toda vez que entro em algum lugar, aliás. Toda vez. Sem exceção. Mesmo a minha sala de aula, que eu entro todos os dias. Sempre. Todos os dias.

— Respire. — o médico mandou, em um tom concentrado, e Santini obedeceu, parando para respirar fundo novamente. — Você não precisa forçar.

— Eu não estou forçando. — contrariou, torcendo os lábios. As mãos tremiam de leve no braço da poltrona. — Não, ok. Eu estou. Mas tá tudo bem. Eu quero forçar. Então. Eu tenho que conferir todos os dias. Se eu não conferir, eu não consigo ter paz enquanto não sair de lá. É perturbador. E eu acabo me mordendo. Eu também não consigo me concentrar na aula.

— Santini. — chamou, em um tom quase preocupado. — Respire fundo. Devagar. — ele seguiu a ordem, sentindo a cabeça girar, o cérebro mandando que tomasse respirações mais rasas e constantes.

— O mais estranho, o mais estranho mesmo, é que a dor da mordida me dá a sensação de que eu estou no controle. Que pelo menos aquilo sou eu e só eu que estou controlando. Mas isso é uma puta de uma mentira. Tipo, eu me mordo na sala de aula, eu me mordo sem perceber. As pessoas ficam descobrindo, e querem que eu conte a elas o que tá acontecendo. O que elas querem que eu conte? Que eu sou patético pra caralho e nem controlo os meus dentes? Haha. Não.

Ele ergueu a mão para pedir que o médico esperasse, puxando a mochila e tirando a cartela do bolso do meio, destacando um comprimido sublingual e o colocando debaixo da língua, fechando novamente o zíper e colocando a mochila na outra poltrona. Esperou alguns segundos, com o médico o olhando atentamente, então respirou fundo para tornar a falar.

— Eu quero parar. Eu não quero mais isso. Eu odeio tudo isso. — olhou para o homem. — E o meu ex-ficante… ah, eu sou gay. Isso é um problema, aqui?

— Não, imagine.

— Então tá. Você é legal. Enfim. O meu ex-ficante é um babaca. Eu fiquei com ele porque eu sou tão babaca quanto, acho. Mas não o sentido “babaca que fica fazendo piada sem graça”, ou “babaca sem noção”. Acho que ele é o tipo de babaca que gosta de pisar nos outros. E eu sou o babaca que fica catando gente assim. Ele me viu tomando o remédio na sala e agora ele pode contar pra escola e eu tô com tanto medo.

— Talvez ele não saiba pra que é o remédio.

— Ele sabe. A gente conversou depois e ele acabou descobrindo. Isso é culpa minha. Isso é culpa minha porque eu sempre tenho que ir nas pessoas que parecem que precisam de ajuda e— ok, o Jaime não é assim, e eu fiquei com ele por causa do cabelo, mas eu faço isso. Eu me aproximo dos outros porque eu quero ajudar, e acabo me envolvendo, e depois as pessoas ficam sendo babacas comigo e eu me mordo, porque eu fico nervoso. Isso quando eu não me apaixono por algum problemático supremo e me fodo muito bonito com isso. — pôs uma mão entre os cabelos, enterrando os dedos nos fios, e franziu o cenho, a respiração descompassando. — Minha cabeça tá girando.

— Vamos parar até o remédio fazer efeito, que tal? — Santini assentiu, apoiando os cotovelos na mesa e amparando a cabeça com ambas as mãos. — Você quer um pouco de água?

— Não me deixa sozinho nessa sala. Eu não tenho rota de escape, eu não aguento ficar aqui sozinho. Por favor. Eu não consigo.

— Tudo bem. Eu não vou sair. Estou completamente parado aqui.

— Obrigado. — umedeceu os lábios, soltando um grunhido baixo e fechando os olhos com força. — Eu quero tanto me morder. Isso tá me deixando maluco. Eu preciso— eu preciso fazer isso, desculpa.

— Não. Santini, presta atenção. — o psiquiatra chamou, em um tom tranquilo. — Abra os olhos, sim? Preste atenção em mim. — pediu com afabilidade, e Santini obedeceu, encarando-o. — Você não precisa disso. Você é melhor e mais forte que isso. Aguenta firme. Você disse que quer que isso pare, não? — ele pausou, fitando Santini por alguns segundos. — Não disse?

— Disse. — contestou tremulamente, com quase nenhuma certeza no tom.

— Parar isso precisa começar de algum lugar. Eu acho uma boa ideia começar aqui, agora. Nós podemos tentar isso, o que você acha?

— Ok. — o médico assentiu, agarrando o tablet no canto da mesa e o desbloqueando, repousando-o na mesa, virado na direção de Santini, e empurrando-o para mais perto com um sorriso calmo. Olhou para a tela, vendo uma foto de uma flor em preto e branco, voltando-se para o médico com olhos confusos.

— Passe o dedo. — o homem pediu, e ele obedeceu, vendo a imagem se tornar colorida onde ele tocara, aquele pedaço assumindo um tom vibrante bonito de amarelo. — Você quer continuar com isto até ficar mais calmo? — ele olhou para o psiquiatra novamente, assentindo.

— Seria bom. — concordou, vendo-o indicar para que prosseguisse e abaixando a cabeça, continuado a fazer as cores surgirem com seu toque.

Ele continuou com aquilo por quase cinco minutos: toda vez que terminava uma imagem o médico pondo a mão e mudando para outra, todas bastante vibrantes e lindas, até que se sentisse um pouco melhor, provavelmente efeito do remédio.

— Sentindo-se melhor?

— Acho que sim.

— Certo. Você quer continuar falando?

— Não. — o médico assentiu seriamente.

— Você quer começar o tratamento para a auto-mutilação, certo? — ele se encolheu diante da palavra, assentindo mesmo assim. — Um tratamento para parar esse tipo de coisa é muito difícil, e teria mais chance de sucesso caso você fosse a um psicólogo, também.

— Não.

— Tudo bem. — ele assentiu, sem alterar a expressão, não parecendo aborrecido pela recusa. — Eu acredito que todos são capazes de superar esse tipo de obstáculos. É necessário esforço e força de vontade, muita força de vontade, mas a recompensa sempre vale à pena. A recompensa é auto-controle, melhor qualidade de vida, e é mais que claro que deixar de se ferir será bom para você.

— Eu sei. — concordou, em um tom baixo. — Eu quero parar. — o médico assentiu, sorrindo novamente.

— Isso é o que importa, na minha opinião. Por isso, Santini, eu não estou dizendo que você é obrigado a procurar um psicólogo, não estou mesmo. Você deve tomar as decisões de cada passo do seu tratamento, sempre. Mas eu mal posso lhe explicar por completo o quanto um profissional acostumado a empregar o Tratamento Cognitivo-Comportamento te ajudaria. Se você não quiser, no começo, não precisa contar nada profundo a ele. Conte da urgência em se machucar e peça ajuda quanto a isso. Se você se sentir confiante depois, ele pode te ajudar nos outros problemas.

— Eu não consigo falar tudo isso de novo.

— É claro que você consegue. — ele garantiu, sorrindo amavelmente. — Eu posso entender caso você não queira, mas você consegue. Talvez não na primeira vez, mas nem tudo precisa ser assim, lembre-se sempre disso. E o psicólogo terá paciência de esperar até você confiar nele. — pausou, encarando de uma forma tranquila. — O que acha?

— E se eu odiar?

— Você para.

— Ok.

— Ok?

— Sim. — ele sorriu, parecendo quase aliviado.

— Quer uma recomendação?

— Por favor.

Ele observou o médico escrever algo em um papel, estendendo-o para ele em seguida, entretanto apenas dobrou e colocou no bolso, sem querer, ainda, olhar para o que estava escrito ali, sem interesse de descobrir o nome de quem quer que fosse. O doutor se levantou para levá-lo à porta, daquela vez, e o ajudou a marcar uma consulta para dali a duas semanas, pois ele ainda precisava ver como o remédio reagiria após um mês.

Santini se sentia estranhamente irreal e desconectado quando deixou o consultório, mesmo assim, e esqueceu-se de seu medo de elevadores por alguns segundos, entrando em um sem pensar e apertando o botão do térreo, só sentindo algumas ondas de pânico à metade do caminho, imaginando a caixa de metal caindo vários andares e o encaminhando para a morte. Acabou saindo às pressas, graças à isso, ganhando um olhar estranhado do segurança e apressando-se a deixar o prédio, sentindo o sol bater na pele de seu rosto e respirando fundo.

Então, desta vez, porque havia posto o dinheiro na mochila antes de sair de casa e porque não estava com o pai ou qualquer outro, desta vez, ele atravessou a rua rumo à sorveteria, bastante determinado a comprar alguma coisa que o permitisse misturar vários sabores e jogar granulado e mais um monte de porcarias deliciosas por cima do doce gelado. E era isto que ele chamava de se recuperar de um momento ruim, obrigado.

~o~

Shey observou os alunos deixando a biblioteca moderna, com no máximo seus dez anos, computadorizada, com espaço para as crianças e salas para cursinhos de escrita criativa, alemão para estrangeiros e desenho. Ele não estava muito animado, para ser sincero, mas Padma, que aparentemente conhecia a mulher que dava as aulas de desenho de alguma forma, começou a caminhar em direção à entrada da biblioteca, fazendo um sinal para que Shey a seguisse.

Ela estava com um macacão larguinho com estampa florida, com fundo vermelho-vivo e uma jaqueta jeans por cima, e isso era tão chamativo. Ao menos ao invés de uma de suas faixas coloridas usava apenas um arco simples. Mas ainda era incômodo andar ao lado dela, pois havia um motivo para ele usar roupas escuras. O que ela estava fazendo era muito gentil, mesmo assim, então não podia negar ou reclamar: seria injusto e infantil, e ele simplesmente não faria. Além do que, a forma que a mulher decidia se vestir não era da conta dele no mais mínimo.

Eles caminharam até a sala onde eram realizadas as aulas de desenho, as mesas próprias para isso postas lá, apenas quinze ou dezesseis, não mais que isso, o que era terrível: quanto menos gente mais atenção se punha em alunos isolados. Ele preferia ir para uma sala bem maior que isso, certamente. Mas não tinha o direito de reclamar, mais uma vez. Havia uma mulher ainda jovem, no máximo de trinta anos, com cabelos loiro-claros com apenas a franja presa, os fios lisos caindo até a altura do peito. Ela abriu um sorriso assim que viu Padma, acenando e mandando que entrassem.

— Boa tarde. — Padma saudou em um cantarolar, olhando a outra de cima a baixo por um momento rápido antes de abrir um sorriso largo. — Obrigada por estar pensando nisso, Lavi. — ela agradeceu, puxando a outra para um abraço rápido. — Esse é o garoto que eu te falei. — ela completou, indicando Shey com a mão.

— Você é o irmão do Leon, né? Eu conheço ele de passagem. Vocês são iguaizinhos, caramba. — ela murmurou, soando um pouco impressionada, e sorriu para ele em seguida, estendendo a mão para um cumprimento. — Eu sou a professora Lavigne Schweisteiger, e você?

— Shey Völkers. — respondeu apenas, sacudindo de leve a mão dela como saudação e então a soltando, retornando o braço para o lado do corpo.

— A Padma me falou que você estava querendo entrar no curso agora. Eu posso falar com a gerência e eles provavelmente vão deixar, mas não acha melhor deixar para entrar no próximo período? Para acompanhar melhor a turma, digo.

— Me recomendaram começar algo agora. — ele retrucou baixinho, notando Padma observá-los atentamente, parecendo pronta para intervir. Ela lhe lembrava um pouco Leon, algumas vezes.

— Ah... quem te recomendou começar uma aula de desenho? — ela questionou com amabilidade, sorrindo para ele. — Você tem problemas de coordenação, querido?

— Foi a minha psicóloga. E o psiquiatra concordou, também. — Lavigne o observou em branco por alguns segundos, reabrindo o sorriso em seguida.

— E que tipo de problema você tem?

— Só depressão. — Padma interveio assim que Shey começou a abrir a boca para responder, abrindo um meio sorriso e arqueando uma sobrancelha para a mulher. — Isso não foi delicado, ok? As pessoas não gostam de falar esse tipo de coisa. — ela completou, em um tom brincalhão. Lavigne soltou um som de entendimento, olhando para Shey com orbes apologéticos, e ele desviou o olhar alguns poucos segundos, incomodado. — O Shey consegue acompanhar, aposto. Ele é bom.

— Ah. — ela murmurou, parecendo novamente um pouco animada. — Você tem alguma experiência com desenhos, já?

— Eu gosto de desenho realista, sim. — respondeu em um tom baixo, ainda observando apenas os lábios da mulher. — Fiz curso quando mais novo, também.

— Aaah, entendi. Por bastante tempo?

— Alguns anos. — ela soltou um murmurar intrigado, crispando um pouco os lábios.

— Isso é um curso para iniciantes, querido.

— Eu não tenho certeza se estou pronto para algo mais avançado.

— Não prefere que eu olhe um pouco alguns de seus desenhos e te diga?

— Eu não conheço nomes técnicos.

— Ah, mas isso é fácil de decorar, também.

— Lavi. — Padma chamou, em um tom aveludado. — Ele não ia se sentir confiante agora. Melhor esperar, né? — a professora ficou em silêncio por alguns segundos, e Shey ergueu o olhar hesitantemente para observá-la fitar Padma de forma pensativa antes de sorrir novamente e se voltar a ele. O loiro abaixo novamente os olhos, encarando os lábios da mulher.

— É, tem razão, isso é o mais importante. Você tem só dezesseis anos, também, não? É bom que dá para fazer umas amizades aqui. Nos mais avançados dá uma variada maior nas idades. — Shey a observou por um tempo, pensando no que dizer, sem encontrar bem as palavras.

— É parte da ideia. — Padma se meteu, quando parecia que o silêncio estava prestes a ficar desconfortável. — Então você vai falar com a gerência sobre o deixar entrar?

— Vou, claro. Se ele tem certeza que pode acompanhar.

— Acho que posso. — ela riu de uma forma suave e um pouco divertida, ao ouvir sua resposta vacilante.

— Ou acha, eu não sei. — retrucou calmamente, o sorriso nunca deixando o rosto. Padma pegou as mãos da mulher, apertando-as com carinho e sorrindo com amabilidade.

— Obrigada por isso, Lavi. Mesmo. — a mulher corou de leve, soltando uma risadinha fraca em retorno.

— Imagine. — ela murmurou, soando envergonhada, e mordiscou o canto do lábio de leve. — Foi bom de ver. E é sempre bom receber alunos novos.

Padma assentiu, sorrindo mais largamente.

— Precisamos ir agora. Eu prometi que ia levar o Shey pra casa em segurança logo depois de passar aqui. Você deve estar doida para ir para casa, também. — a loira assentiu, sorridente, e catou a bolsa da mesa.

— Vou aproveitar para passar logo na sala da gerência.

— Você é um amor, Lavi. — a mulher soltou uma risada, corando novamente, e começou a se encaminhar à porta.

— Até semana que vem, Shey. — ela disse, fitando Padma em seguida com olhos cheios de dúvida.

— Eu te ligo.

— Ah. — ela sorriu largamente, empolgada. — Até mais, então!

— Até, Lavi.

Eles saíram da sala e Lavigne Schweisteiger seguiu até o final do corredor, enquanto eles voltavam para as escadas e desciam para a biblioteca. Ele apressou o passo quando viu um rapaz bastante alto com cabelos castanhos de costas, temendo ser Daniel, e Padma o seguiu sem questionar, olhando ao redor, para o jardim em frente à biblioteca, de forma distraída.

— Obrigado. — Shey murmurou, quando já quase chegavam ao ponto de táxi, e Padma o encarou por um momento, sorrindo para ele.

— Ah, por nada. Eu te conheço há anos, Shey-Shey. — respondeu, erguendo a mão para bagunçar seus cabelos e parando à metade do caminho, voltando-a para o lado do corpo.

Padma era amiga de Leon desde o primeiro ano do colegial, o que, é claro, queria dizer que vira Shey pela primeira vez quando este tinha oito anos e pouquíssima paciência para interação com outros seres humanos. Um ano antes dele e Leon ficarem de fato próximos, também, se fosse para ser sincero; quando isto aconteceu, entretanto, e chegou aos ouvidos de Padma que Shey gostava de quadrinhos, ela sempre aparecia por lá com uma edição de revistas antigas de super-heróis, que achara em um sebo, bagunçava seus cabelos e puxava sua bochecha como se para forçar um sorriso, depois que ele agradecia.

Eles não eram próximos, mesmo assim, mas Shey não a detestava, e sua presença não necessariamente o deixava desconfortável, por isso quando disse ao irmão que gostaria de entrar parar um curso de desenho não sentiu como se devesse recusar ao ouvi-lo dizer, no dia seguinte, que Padma conhecia uma professora, assim como não ficara de fato surpreso por Leon ter contado sobre isso para a amiga.

Padma correu um pouco, fazendo sinal para um táxi, que parou para deixá-los entrar, e cumprimentou o motorista, sentando-se no banco de trás e escorregando para o outro lado, para deixar espaço livre para Shey. Ele se sentou, batendo a porta enquanto ouvia a mulher dizer o endereço, e puxou o celular para olhar o horário assim que o carro arrancou.

Daria tempo de chegar em casa antes do próximo remédio, ao menos.


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