You make me feel wrong escrita por Lyssia


Capítulo 2
Is


Notas iniciais do capítulo

"Is", do título, é uma música de Yoko Kanno, mas é em inglês, então como eu não consegui achar nada pra encaixar aqui, escolhi essa mesmo. É legalzinha.
O cap. é um pouco diferente do anterior, espero que não seja problema...



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Havia na vida situações que se podia, e talvez se devesse, considerar inusitadas. Coisas como chutar uma prova inteira e tirar dez, gostar daquele professor novo que lhe chamou a atenção no primeiro dia da escola, ter vontade de rir no clímax de um filme de terror, se apaixonar pelo garoto que flagrou beijando outro em um corredor, em um dia de baile de escola, ver uma fada de vestido negro no vaso de violetas da varanda, ser salvo de uma tentativa de se jogar de uma ponte pelo dito cujo garoto e ainda ser arrastado para tomar sorvete de flocos em uma pracinha, depois, eram pequenos exemplos.

Estar tranquilamente recolhendo suas coisas ao fim da aula e ouvir alguém gritar “SHEY!” enquanto surgia do nada em frente a sua mesa, batendo as mãos na superfície de plástico, com um sorriso de orelha a orelha nos lábios... essa foi a única coisa de sua lista que o fez recuar atabalhoadamente e soltar um grito mais agudo que gostaria de admitir, assustado.

Que diabos?

Santini riu daquele jeito soluçado dele, que o fazia relaxar quase que instantaneamente, muito mais eficaz que os florais para acalmar que experimentara na infância. Ele observou, ainda sem reação, o garoto ajeitar a mochila em um dos ombros, fitando-o com aqueles olhos azuis cheios de expectativa para algo que não sabia ao certo o que era, de uma forma tão intensa que Shey logo desistiu de continuar retribuindo, deixando seus próprios orbes negros se moverem para dá-lo uma visão do chão e dos tênis cinza-chumbo com prateado do outro.

— O que você... estaria fazendo? — questionou, com um tom hesitante, arriscando uma breve olhadela para o alto, apenas para ver que nem um milímetro do sorriso alheio havia vacilado.

Por que ele não apenas o ignorava depois de pensar melhor no que ocorrera na semana anterior, em suas atitudes que deviam parecer ao menos um pouco perturbadoras? Por que exatamente alguém se daria ao trabalho de continuar falando com ele quando era claro que não era uma boa companhia? Ele realmente não conseguia entender. Não fazia o menor sentido.

— Te cumprimentando amigavelmente! — o garoto respondeu, o arrancando de seus devaneios, as marcas de mordidas que ainda não haviam sumido se movendo conforme ele falava. — Consegui convencer um professor a me falar a sua sala na sexta-feira.

— Hmm... — resmungou apenas, sem ter certeza se estava contente de saber que era fácil assim de encontrá-lo. — Por que...?

— Aaah, você sabe, eu não vou conseguir te ajudar em nada se você estiver longe. — explicou, dando de ombros, sem nunca deixar de sorrir. — E eu disse que ajudaria. — acrescentou em seguida, com seus olhos expressivos quase que o desafiando a o contradizer. Shey sentiu as mãos coçarem de vontade de desenhar aquela expressão, de resvalar a ponta do lápis pelo papel até formar aqueles traços, de apagar e desenhar de novo e de novo até ficar satisfeito com os olhos.

— Não precisa se preocupar com isso. Aquilo foi... — parou, vendo o outro cruzar os braços, as sobrancelhas arqueadas. — Foi... completamente momentâneo. Digo, eu tinha bebido um pouco e—

— Mentira.

— Não, estou falando sério—

— Mentiroso. Não tinha nenhum sinal de embriaguez em você.

— Eu... hmm... não fico com muitos sinais. É. É muito oportuno então eu sempre exagero e causo problemas...

— Nem o cheiro.

— Tudo bem, então eu usei LSD.

— Ah, é mesmo? Isso realmente explica a reação da sua família. — ele zombou, trocando o peso de pé em pé sem parar, inquieto.

Shey engoliu em seco ao lembrar-se do que ocorrera na noite de nove dias atrás, de como ao chegar em casa Leon passara minutos olhando aturdido do irmão para o garoto que aparecia a sua frente, provavelmente o reconhecendo dos desenhos, e como todo seu corpo parecera murchar e ele parecera chocado quando Santini passou a história. Ele se lembrava de quando tudo fora dito a sua mãe, quando Santini já havia partido e estava apenas a família na casa, lembrava-se de como ela o olhava de um jeito intenso, triste e culpado, das tentativas de conversa em que ele insistentemente reafirmara que fora um impulso estúpido.

Durante toda a semana seguinte, ele tivera de alternar seus dias entre ir ao trabalho de Leon ou Aloá, fizera um monte de exames a mando do psiquiatra e tivera que ir a uma consulta que foi incrivelmente desconfortável, embora o velhinho de jaleco branco a sua frente fosse simpático e usasse de todas as suas técnicas para fazê-lo se sentir bem-vindo. Provavelmente acabaria por se acostumar após um tempo, por mais que não quisesse fazê-lo.

Apenas durante o jantar do dia anterior, do domingo, é que conseguira convencer o irmão e a mãe de que poderia ficar um tempo sozinho sem tentar algo estúpido, então pudera ir à escola, o que o deixava bastante desconfortável por si só, mas bem menos que a ideia de continuar perdendo matérias e correr o risco de arruinar sua grade quase que perfeita, a qual mantinha com muito esforço, para compensar... bem, todo o resto.

— Foi uma... droga nova que você não conhece. É. A onda só dura umas duas horas e... essas coisas. — Santini o encarou seriamente por alguns segundos e então desabou em risadas, negando com a cabeça, os cabelos negros despenteado tentando entrar em seus olhos até ele os afastar com uma das mãos.

— Quer parar com isso, por favor? — ele pediu, em um tom divertido. — Você não quer vir?

— Hmmm... — Shey resmungou, abaixando a cabeça e terminando de guardar os materiais lentamente, tentando conseguir tempo para pensar.

— Se você ficar colega do meu amigo nesse meio tempo pode até ir jogar com a gente! — certo, isso é um pouco rápido demais, ele quis dizer, umedecendo os lábios de um jeito ansioso para tentar conseguir coragem.

— Acho que eu não me enturmaria com alguém tão rápido assim. — murmurou, pondo a mochila nas costas.

— Ah, então você vai com a gente? — ele questionou, abrindo um sorriso.

— O que?

— Vai, vamos logo que o Danny já deve estar entediado! — exclamou, puxando-o pelo braço e arrastando-o em direção à porta, sem encontrar resistência, embora o loiro ainda estivesse um pouco, se não completamente, hesitante. — Se ele não estiver com a Helena, é claro. — o moreno resmungou, em um tom melancólico forçado.

— Olha... eu não conheço nenhuma dessas pessoas.

— Conhece o Danny, na verdade. Ele estava comigo no dia que a gente se encontrou no banheiro. Lembra? De cabelo castanho, alto e etc.

Ah, claro. O rapaz que o chamara de voyeur. Isso realmente não lhe dava mais confiança.

— Mas nunca conversamos, nem nada do tipo. Eu não acho que seja uma boa ideia ir falar com ele... entende? — Santini virou para ele, com uma sobrancelha arqueada, sem parar de andar.

— Na verdade, não. — respondeu, abrindo um sorriso mínimo. — Se você não começar a falar com alguém, nunca vai se tornar íntimo dessa pessoa, sabia?

— Bem, sim, mas... — ele hesitou, desviando os olhos para a parede, inconsequentemente deixando-se guiar por alguém que sequer olhava o caminho.

— Você não quer ser amigo da gente, ou algo assim? Não estou tentando te forçar nem nada, só tive a sensação que se não tomasse a iniciativa de te procurar a gente nunca mais ia conversar.

— Ah... — ele soltou, sem saber bem o que mais dizer. Era verdade, afinal de contas. Ele seguiria quieto no canto dele, tentando tirar Santini da cabeça, o desenhando o tempo todo e se esforçando para permanecer com suas boas notas. Nada de amizades, conversas amenas, encontros ou qualquer coisa boba assim. Ele não tinha, ou algum dia tivera, ânimo para procurar pôr aquele tipo de coisa dispensável em sua rotina.

Santini lhe soltou o braço, embora ainda o olhasse ao invés de prestar atenção por onde andava, o sorriso sempre intacto.

— Nós somos caras legais, e tal. Mas se você quiser, pode deixar pra lá, viu? — Santini riu, como se tentando quebrar a tensão. — Não estou forçando ninguém a gostar de mim, isso seria muito tenso!

— É, acho que não precisa.

— Não precisa o que? — questionou, finalmente olhando para frente novamente, justo a tempo de virar um corredor.

— Que eu vá embora. É claro. — respondeu, um pouco nervoso, remexendo nas próprias mãos e olhando para os sapatos do outro enquanto se movia. — E me puxar, também, porque na verdade eu posso andar sozinho. Não sou cego pra ficar sendo arrastado.

— Uhhh, ok. — ele sussurrou, em tom de zombaria.

— Q-quero dizer...! — Shey pronunciou, a voz uma oitava mais alta. — Eu não vou fugir... nem nada do tipo...

— Olha, cegos podem andar sozinhos.

— Hn? — murmurou, incerto.

— Eles têm bengalas. Conseguem andar sozinhos, tá? Tenho certeza que alguns são bem independentes e tudo mais. Quanto preconceito. Coisa feia. — o loiro piscou, aturdido.

— Desculpe... — sussurrou, mordendo um pouco o lábio. — Eu não estava tentando ser assim tão grosso...

— Só um pouquinho, né? — brincou, nada abalado, e Shey sentiu o rosto se aquecer, abaixando a cabeça, embora o outro estivesse de costas para si.

— Eu só fiquei um pouco... nervoso.

— Por quê?

— Eu... não sei? — Santini olhou por cima do ombro por um segundo, abrindo um pequeno sorriso que o fez ter de engolir em seco e virando novamente para frente.

— Você é meio tímido, né?

— Ah... não muito. — o moreno se voltou novamente para ele, parecendo intrigado. Shey quis se bater por ter discordado de algo tão simples. Se ele não era tímido, qual era sua desculpa para agir daquele jeito ridículo? — Só não... não... bem... não tenho muita... experiência com convívio social. — mentiu, dizendo a primeira coisa que lhe veio à cabeça. Ele até mesmo fizera um guia de como se comunicar naturalmente e passara boa parte de sua vida fingindo adorar conversar e sair e todas essas coisas. Poderia fazer isso muito bem, caso não estivesse se deixando levar pelo nervosismo.

— Vamos resolver isso, então! — o outro afirmou de um jeito simples antes de se virar novamente, felizmente bem ao tempo em que o loiro se sentia corar de novo, enquanto deixava escapar um suspiro de alívio.

Por sorte, eles permaneceram sem mais conversas que acabariam, de uma forma ou de outra, deixando-o em situações constrangedoras ou tensas, ambos guardando relativo silêncio, já que Santini fazia sons com os pés e os lábios o tempo todo, até que alcançassem as portas para o pátio da escola, onde o moreno soltou resmungos por não ver o amigo próximo do portão e o fez andar em direção à rua, lançando constantemente olhares por sobre o ombro para ter certeza de que era seguido, como se realmente houvessem motivos para alguém desejar a presença de uma pessoa que sequer estava dignando-se a interagir direito.

De qualquer forma, Shey continuou por perto, pois a presença do outro ainda o acalmava na mesma medida que perturbava e ele estava começando a gostar da sensação. Achou que o tal amigo havia ido embora sem Santini quando não o encontraram na rua da escola, porém o garoto afirmou, cheio de certeza, que ele estava por perto e Shey continuou o seguindo, gostando de ouvi-lo soltar reclamações retóricas sobre o clima, com um riso preso na voz, e de vê-lo, assim de perto, executar todos os movimentos ansiosos de sempre: passar os dedos pela alça da mochila, os estralar, arrumar as roupas, coçar os cabelos e resvalar as unhas pelos lábios. Ele se perguntou se alguma hora Santini ficava parado.

Todavia, provando que talvez ele realmente não devesse sair concluindo que pessoas iriam embora sem pensar duas vezes sem conhecê-las, assim que viraram a esquina ele viu o tal garoto de cabelos castanhos. Ele não estava na melhor ou mais esperadas da situação, é claro, apoiado em um muro aos beijos com uma menina loira de shorts e blusa magenta, mas ele estava lá e... era isso que valia, certo? Shey ainda queria ir embora e não precisar interromper aquela coisa, mas... aquilo era... o que adolescentes normais faziam, certo?

— É, ele tá com a Helena. — Santini resmungou, ao seu lado. — E com o Sash, olha. Tadinho.

— Sash...? — resmungou, olhando novamente para a cena desagradável, finalmente notando um menino que ainda devia estar no ensino fundamental, de cabelos ruivos, sentado próximo dos dois... namorados, mexendo no celular e franzindo o cenho cada vez que um som escapava por entre os lábios dos que se beijavam. Ele levantou seus olhos castanhos de um jeito quase desolado para olhar a curva da esquina onde Shey e Santini estavam parados, o rosto imediatamente se iluminando ao vê-los, e levantou-se para correr até eles, agarrando a mão de Santini com duas das suas assim que parou.

— Diga a eles que já chega, por tudo que é mais sagrado! — quase implorou, com olhos pidões um pouco adoráveis, fazendo Santini rir, divertido. — A inspetora mandou eles pararem lá no portão e eles só mudaram de lugar. E o pior é que ainda me arrastaram junto e depois se esqueceram da minha presença, Santie!

— Eles sempre esquecem da presença dos outros quando querem se pegar. — o moreno cantarolou, delicadamente se livrando das mãos do outro. — Vou lá tentar produzir um milagre. Me deseje sorte.

— Boa sorte!

Ele rapidamente correu em direção ao casal, chegando relativamente perto antes de começar a gritar ameaças sobre jogar água nos dois ou meter um dos dedos entre as línguas alheias (o que seria bastante nojento, diga-se de passagem), deixando Shey sozinho com o menino ruivo que aparentemente tinha um nome bastante feminino. Eles se encararam de forma analítica e inexpressiva por alguns segundos que duraram minutos, nos quais o loiro decidiu que não estava diante de uma criança de forma alguma. Crianças poderiam ser cruéis, às vezes, mas elas não tinham aqueles olhos críticos e calmos, não mesmo.

— Eeeei, estão me ouvindo? Que saco, heim! — ele ouviu Santini gritar, em um tom risonho, mas que indicava que ainda estava longe de voltar, o que lhe causou certa agonia. Estar ao lado do moreno de olhos azuis era decididamente perturbador, mas ele preferia que estivessem ao menos próximo quando tivesse de lidar um de seus amigos, principalmente um que o analisava dos pés à cabeça.

— Eu sou Sarosh Uhlish. — o ruivinho se apresentou, em um tom que passava longe da definição de simpatia. — Você é o Shey Völkers, certo? — ele quis confirmar, ainda da mesma forma.

— Se vocês não pararem agora eu vou transformar isso aí em um beijo triplo, entenderam?! — Santini gritou e o loiro engoliu em seco para a brincadeira, para a intimidade que permitia esse tipo de brincadeira, antes de se virar novamente para o ruivo, pensando no que dizer.

— Aaaaaaah, não! Que nojo, Santini! Nunca mais repita isso! — o garoto de cabelos castanhos berrou justo no momento em que Shey abriu a boca, fazendo-o lançar uma olhadela em sua direção, por um mísero momento, antes de se voltar para o seu próprio diálogo.

— Por que você me conhece? — questionou, tratando de deixar seu desagrado palpável, ao que Sarosh apenas sorriu, encolhendo os ombros.

Por favor, que sua tentativa de suicídio não estivesse sob o conhecimento daquele garoto. Por favor, que Santini soubesse manter a boca fechada quando se tratava de guardar para si mesmo esse tipo de coisa. Por favor. Ele podia ouvir uma espécie de discussão nada séria ocorrendo entre os outros três adolescentes, mas mal podia entendê-la, sentindo suor frio escorrer por seu rosto que perdera a cor em questão de segundos, o nervosismo fazendo suas mãos tremerem de leve.

— Semana passada ouvi toda uma conversinha que eu obviamente não acreditei sobre Santie ter te encontrado na praça por coincidência e vocês terem tomado sorvete, conversado e virado colegas. — ele parou, com uma expressão estranhamente adorável no rosto. — Parece completamente plausível que o Santie faça isso, mas, sinceramente... Você não é o garoto que armou aquele escândalo no ano passado?

— Não é da sua conta. — balbuciou, estreitando os olhos para ele. — Essa foi uma péssima tentativa de intimidação babaca, se quer saber.

— Não é intimidação. — ele sorriu um pouco de lado, dando de ombros. — Olhe pro seu tamanho e pra sua cara de pessoa má e olhe pra mim. Eu não tenho chances. Mas se você vai se enturmar com alguém e vai começar com uma mentira descarada como aquela, eu sugiro se esforçar um pouco mais; como puxar assunto ou se apresentar. Essas coisas básicas, sabe?

Shey achou que, caso isso fosse alguns meses antes, ele teria ficado abalado ao ponto de seus olhos marejarem, com os lábios trêmulos e a cabeça processando o quanto o ruivinho tinha razão e ele era, sim, o intruso do grupo e que devia, no mínimo, dignar-se a tentar com mais afinco. O ponto é que ficara tão aliviado de não ter tido a história de sua tentativa de suicídio contada e lidara com tanto adolescente tentando pisar nele desde que saíra do hospício que, no lugar de ser atingido por um maremoto de culpa e dor, ele estava simplesmente furioso.

— Coincidentemente, eu estou com tanta vontade de fazer amizade com você quanto você tem de fazer comigo, então não vejo motivo nenhum para me esforçar. — ele soltou, de uma forma pausada, mas não exatamente calma, não vendo o semblante do outro deixar a placidez em momento algum.

— Eu imagino que seja muito difícil pra você ser agradável quando não é proveitoso. Muito esforço pra nada, não é mesmo?

Eles se encararam com aversão palpável por alguns segundos, como se tentassem mandar o outro para longe sem mover um único músculo, até um som alto e acelerado de piano romper o ar e Shey soltar um ofegar baixo, pondo a mão no bolso para puxar o celular, vendo “Leon” no visor e lançando um último olhar ao ruivo antes de virar as costas e se afastar, atendo à ligação.

— Alô?

— Oi, Shey-Shey. — o irmão respondeu do outro lado da linha, com preocupação pessimamente disfarçada presa na voz. — Já foi pra casa?

— Ainda estou perto da escola... — replicou, um pouco hesitante de contar com quem estava. — A caminho, eu diria

— Você tá aonde, exatamente? — Leon questionou, visivelmente mais nervoso, o que fez Shey suspirar.

— Uma ou duas esquinas de distância da escola, Leon. — respondeu, forçando um tom casual.

— Está tudo bem? — tudo bem era algo generalizado demais, ele pensou, prendendo o ar por um segundo antes de soltá-lo pelo nariz.

— Tudo bem. Já estou indo pra casa.

— Você sabe que pode me ligar a qualquer momento, certo?

— Sei, Leon.

— Ou pra mãe, se você preferir... não vai esquecer, certo?

— Pode deixar. Eu estou bem.

— Jura?

— Juro, juro sim.

— O número daquela linha especial que tenta evitar suicídios...

— A mãe gravou no meu celular desde a semana passada, mas eu não vou precisar. Aquilo foi um impulso estúpido.

— Shey... — ele chamou, soando quase desesperado.

— Sim? — incentivou assim que notou que ele não completaria, um pouco agitado, mordicando o lábio inferior enquanto ouvia o irmão suspirar.

— Nada não, nada não... me manda uma mensagem assim que chegar em casa, está bem?

— Pode deixar.

— Volte com cuidado e não vá fazer nenhuma bobagem.

— Vou estar em segurança quando você chegar em casa, Leon. Pode ir trabalhar em paz.

— É, eu estou indo... até mais tarde, Shey-Shey!

— Tchau... — resmungou justo a tempo da linha ficar muda, afastando o celular do rosto para olhar a tela, que ainda indicava o fim da chamada. Ele suspirou baixinho antes de voltar à tela inicial, guardar o celular e erguer os olhos de novo, fitando o lugar onde estava antes.

Os namorados estavam olhando em sua direção, ele notou. Sarosh encarava o próprio celular novamente, parecendo frustrado, mas o outro rapaz, de cabelos castanhos, e sua provável namorada, que estava agarrada a ele como se eles fossem se ver somente dali quatro meses, cutucaram Santini, que estava concentrado em lançar um olhar de desagrado ao ruivo, fazendo-o contorcer o rosto em uma carranca incomodada antes de olhar na direção que os amigos indicavam e abrir um sorriso bonito, acenando com uma das mãos bem no alto.

Shey pensou em correr e ir embora, entretanto, por algum motivo, quando notou o que fazia já estava na metade do caminho na direção do grupinho, com passos lentos e incertos, mas constantes. A menina loira soltou um pouco o namorado, parando ao lado dele, apenas com suas mãos entrelaçadas, Sarosh continuava com o olhar baixo e Santini pareceu satisfeito quando ele parou perto deles, de uma forma tão genuína que o coração do loiro se descompassou um pouco, fazendo-o sentir-se estúpido.

— Meu irmão estava ligando... — começou a falar, um pouco baixo demais. — Acho que vou para casa de ônibus, é. — acrescentou, vendo a expressão contente no rosto do de olhos azuis derreter.

Ele não tinha certeza se queria ter ligado um pouco mais ou um pouco menos, mas o fato é que se todos os amigos de Santini fossem do mesmo jeito que o ruivinho que parecia do fundamental, ele preferia não interagir com eles. Poderia muito bem sobreviver a mais um tempo sem amigos. Na verdade, estava ficando muito bom nisso. Nunca fora do tipo que precisava compartilhar segredos e novidades com alguém, mesmo.

— Por quê, cara? — ele perguntou, em um tom decepcionado que obrigou o loiro a abaixar os olhos e remexer as mãos, nervoso.

— Ele está preocupado.

— Ah, então, a gente já tá indo, vai ficar tudo ok. — Santini explicou, em tom de quem dava fim à conversa, ajeitando a mochila nas costas. — Sua casa não é tão longe assim, nem nada.

— Você já foi na casa dele? — perguntou a loira, arqueando uma de suas sobrancelhas bem-feitas. — Que maldade! Quando você pretendia apresentar seu amiguinho novo? Quando começasse a sentar na mesa do grupinho dele, no almoço? — ela questionou, em tom indignado, embora houvesse um sorriso brincalhão em seus lábios que indicava que não devia ser levada a sério.

— Só fui com ele até em casa no dia que nos encontramos na praça. — ele replicou, revirando os olhos, embora também sorrisse, a mentira deslizando com facilidade assustadora por seus lábios. — Que drama, heim!

— E ele nem tem um grupinho, de qualquer forma. — murmurou Sarosh, quase inaudível, e se alguém além de Shey o ouviu, ignorou incrivelmente bem.

— Continua sem ter apresentado a gente antes! Que cretino! Você quer criar uma guerra civil pela sua amizade, ou algo assim?

— Iiiih, pode parando! — Santini gritou, balançando as mãos enfaticamente. Então se virou para o loiro novamente, com um sorriso satisfeito. — Essa é a Helena Bienow. Ela é muito, muito chata, irritante e tosca, mas na vida se faz amizade com gente assim, também.

Uma bolsa de carteiro o acertou de forma certeira na nuca, fazendo-o pular para trás justo a tempo de outro ataque, e a menina loira se soltou do namorado e começou a perseguir Santini, que correu pela rua, quase em círculos, como duas crianças de nove anos fariam. Os gritos deles chamavam a atenção de algumas pessoas que passavam pela rua, mas era uma cena muito amena para que alguém parasse para levar a sério: um grupo de adolescentes em que havia dois doidos. Vê-se esse tipo de coisa todos os dias, em qualquer esquina ou shopping.

— Parem com isso! — Sarosh gritou, em um tom nervoso. — Desculpe! — ele exclamou para uma moça que passava pela calçada e levou um susto quando um dos livros da bolsa de Helena caiu e foi para perto dela.

— Desiste, Sash, até parece que não conhece esses dois. — Shey ouviu o garoto de cabelos castanhos sussurrar de uma forma tranquila, virando-se para vê-lo sorrir na direção da confusão, com olhos carinhosos para aqueles que a provocavam. Demorou apenas mais um minuto para ele se virar para Shey, como se repentinamente se lembrasse de sua presença. — Ah, hei. Sou Daniel Endlish. Você pode me chamar de Danny, se quiser.

— Shey Völkers. — Daniel riu, sem parecer fazer esforço algum para se conter, e, por algum motivo, o ato lhe pareceu completamente livre de malícia.

— Eu ouço mais esse nome em mulheres! — comentou, descontraído, e o loiro piscou algumas vezes, sem saber o que responder, porque aquilo não era uma provocação nem uma zombaria. Era um comentário sem propósito, como perguntar a alguém que você quer conversar qual sua matéria favorita.

— Eu... também. — respondeu, um pouco incerto. Daniel riu de novo, negando com a cabeça.

— Deve ser porque somos do mesmo país.

— MERDA! — Helena gritou, papeis voando para todos os lados, saindo de sua bolsa, enquanto Santini se apoiava em uma parede, em meio a um ataque descontrolado de risos.

— Desculpe! — Sarosh pediu de novo, para uma moça que passava com uma garotinha de uns oito anos.

— OS MEUS DESENHOS PRO FIGURINO DA PEÇA, PORRA!

— Ai meu Deus, desculpe mesmo!

— Vai, Shey, ajuda aí! — Daniel quase que ordenou, empurrando-o um pouco em direção aos papeis que se espalhavam cada vez mais.

No fim, estavam os cinco tentando recuperar as folhas agora sujas, algumas com desenhos de roupas futuristas e outras com formas geométricas cercadas de medidas e mais um monte de anotações nos cantos. Parecia realmente o tipo de coisa que alguém não gostaria de perder, por isso ele ignorou por um tempo, até que houvessem terminado, o breve toque de seu celular que indicava que uma mensagem de texto havia sido recebida, tratando de responder às perguntas preocupadas que mãe havia o enviado assim que entregou o que havia recolhido para Helena, que agradeceu em um rosnado.

— Ei, cara. — Santini chamou, quando já estavam de pé e a loira apenas soltava resmungos revoltados, pondo os papeis de volta na bolsa. Shey o olhou por um mísero segundo antes de desviar os olhos para o chão novamente, analisando as manchas do asfalto.

— Sim?

— Seu irmão vai ficar zangado contigo? — indagou, parecendo genuinamente preocupado. O loiro ergueu brevemente os olhos para ele, uma vez mais.

— Não... eu não acho que ele vá... — contestou, dizendo a verdade. Se ele dissesse a Leon que chegara da escola um pouco mais tarde por ter ficado na companhia de prováveis futuros... amigos, seu irmão abriria um sorriso radiante e lhe daria apoio. Tinha quase certeza disso.

— Que bom. Qualquer coisa, liga aí pra ele que eu assumo a culpa, sei lá. — resmungou em resposta e, pela primeira vez, Shey compreendeu que ele estava com medo de que o motivo de sua tentativa de suicídio fosse familiar.

Bem, isso era triste, porque sua família era a melhor parte de sua vida, se ele fosse excluir o suposto pai e contar apenas com aqueles que realmente considerava ter uma ligação forte o suficiente para chamar de “laço familiar”. Seu motivo fora sua falta de força para lutar contra o pecado que sua mente implorava o tempo todo para que cometesse, mas ele não queria pensar nisso, não quando Santini estava ali, bem a sua frente.

— Ele é muito legal. — soltou, pois não queria que alguém pensasse mal de Leon, principalmente por causa dele, e ainda mais se essa pessoa era sua paixão platônica nojenta.

— Certo. — Santini concordou, abrindo um sorriso pequeno. — Ele parecia legal, mesmo. — acrescentou logo em seguida, e eles caíram em um silêncio quase desconfortável por alguns segundos, até Daniel surgir do nada e enlaçar o pescoço do amigo com um braço.

— Ei, você tem mesmo que ir pra casa de ônibus?

— Eu... — começou, sem saber ao certo o que dizer, decidindo por desviar o olhar para o mais longe possível, para ser capaz de pensar com mais clareza. — Eu acho que não tem necessidade.

— Maneiro! Eu adoro andar assim em grupos na rua, sabe? Parece que temos uma gangue ou qualquer coisa do tipo, e aí quanto mais gente, melhor. — comentou, do mesmo jeito simples que não parecia ter segundas intenções, e era algo estranho, porque ele não parecia estar tentando fazê-lo sentir mais confortável, como Santini, ou soando como alguém que quer fazer amizade. Era um comentário natural, e era engraçado mesmo, porque Shey não sabia que as pessoa podiam ser honestas e simples assim depois de saírem da infância.

— Assim faz parecer que tanto faz quem são as pessoas, amor. — a garota comentou, jogando-se nele e sendo recebida com um abraço. E de repente, como se aquele fosse algum tipo de sinal, todos finalmente começaram a caminhar, com passadas de velocidades diferentes que acabariam se ajustando umas às outras em alguma parte da viagem.

— Mas é meio tanto faz mesmo. — Daniel começou a responder, dando de ombros. — Eu não conheço esse loiro pra dizer que ele é super único pra mim.

— Podia ter ficado na sua, né! Que grosseria! — a loira exclamou, em tom de brincadeira, e Santini tornou a rir, um segundo depois de olhar na expressão de Shey, como se querendo ter uma confirmação de que ele não estava ofendido.

Sinceramente, aquilo lhe soou muito menos incômodo que se Daniel houvesse pedido desculpas e concordado com Helena. Ele também não sentia, tirando por Santini, o que era algo bem infeliz por si só, coisa alguma por aquelas pessoas. Um pouco de simpatia pelo casal, talvez, mas apenas. Eles não eram únicos para si, e seria estranho se fosse único para eles. Ele preferia lidar com gente sincera assim que com os seus antigos “amigos”.

Mesmo assim, ele foi o que menos falou durante todo o trajeto. Talvez tivesse feito total silêncio não fossem os monossílabos que tivera de soltar quando alguém dali se dirigira diretamente a ele. Ele não era parte do grupo, e não se imaginava interrompendo o início de monólogo de Santini sobre o tal jogo The Darkness II como todo mundo fizera, soltando piadinhas e o mandando calar a boca. Era o intruso ali e não tinha certeza se devia acrescentar um “por enquanto” ao início desta frase.

Entretanto, por algum motivo, quando chegou em casa e mandou uma mensagem a Leon e outra para a mãe, informando que já estava em segurança e recebendo uma ligação recheada de perguntas desta última, ele se sentia muito mais leve que quando saíra. Foi fácil estudar para reforçar o que aprendera nas aulas e conseguiu se odiar um pouco menos quando teve de tomar uma de suas pílulas. Ele conseguiu omitir toda a vontade que tivera, na escola, de chutar coisas e gritar com pessoas e o fato de ter jogado o próprio almoço fora por falta de fome sem sequer vacilar, e mudou o assunto extremamente rápido para “Hei, eu andei com pessoas aleatórias hoje. Algumas pareceram legais. Um era um idiota”.

As coisas só desandaram novamente, como sempre acontecia com ele, quando estava vendo Leon jogar videogame, antes de ir dormir, já tarde da noite, e começou a se perguntar quanto desse torpor quase alegre era pela possibilidade de amizade e quanto era graças àquele sentimento ridículo. As respostas atravessadas que sua mente lhe ofereceu lhe deram náuseas e arrancaram-lhe toda a energia do corpo. Depois disso, apenas conseguiu desejar boa-noite para o irmão antes de subir para o quarto, trancando-se lá e se jogando na cama.

Ele não chorou, socou ou mordeu travesseiros, chutou coisas ou jogou seus livros e desenhos para o alto. Apenas ficou ali parado, debaixo das cobertas, ainda ouvindo um pouco do barulho da TV, por não ter ligado o ventilador, e se sentindo tão estúpido que achou que não devia ter se preocupado em traumatizar ou não a Santini di Quercia, quando estava cara a cara com sua chance de pôr um fim a tudo facilmente. Ele pensou nas pílulas de seu antipsicótico e na garrafa de vodka sobre o armário, mas também pensou em Leon na sala e na mãe no quarto, pensou em quanto eles sacrificavam, e em quanto já haviam sacrificado.

— Qualquer pessoa que é capaz de sofrer porque você está mal vai sofrer muito, muito mais se você morrer. — ele sussurrou para si mesmo, repetindo as exatas palavras que Santini dissera, no dia da ponte, sem sequer ter de pensar muito, pois as escrevera na margem de um desenho e ainda podia ouvir a voz do moreno pronunciando-as toda vez que as lia.

Ele se perguntou se aquilo também queria dizer que as pessoas capazes de sofrer porque ele estava mal poderiam ficar felizes de verdade caso ele conseguisse as convencer de que estava bem. Não havia no mundo nada que ele desejasse mais que um “sim” como resposta definitiva para esta pergunta.


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