You make me feel wrong escrita por Lyssia


Capítulo 1
Take me to Church


Notas iniciais do capítulo

A música que deu o título do capítulo, Take me to Church, a qual eu realmente recomendo, é do Hozier.



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Algumas pessoas passam suas vidas acreditando em destino. Elas viam linhas as guiando onde quer que estivessem, em todas as coincidências pelas quais passavam, a cada missa na qual iam, a cada encontro para se rezar o terço, a cada reunião de estudo à Bíblia e a cada nova pessoa em sua lista de conhecidos. Shey Völkers era uma dessas pessoas. Ele preferia não ser, mas, de novo, se o destino guia todos os nossos passos e ações, o que ele poderia fazer?

Ele pensara, quando mais novo, que seu destino, a provação pela qual devia passar, era entender aos outros e se misturar a todas às pessoas ao redor, ser tão comum quanto possível, fazer a mãe orgulhosa das conquistas que um filho normal devia alcançar. E se esforçara para alcançar este objetivo, de fato: estudara o que as pessoas vestiam e como agir de forma corriqueira, analisara formas de falar, suprira sua vontade de falar sobre qualquer coisa que não via ser mencionada com frequência, escondera o fato de já ter visto algumas criaturas que todos os outros pareciam não acreditar.

Esforçara-se e tentara muito, até transformar sua vida em um loop de aprendizagem sobre grupos que supostamente tinha de pertencer e medo de falhar e pôr tudo a perder, até o estresse lhe subir a cabeça e ter sua mais forte alucinação, com vozes irritantes e agudas ocasionalmente lhe massacrando a mente por um mês até conseguirem as conter com um novo antipsicótico.

Então ele desistiu. Ele desistiu e começou a passar todos os dias no quarto, porque não havia lugar para ele lá fora, até a psicóloga o convencer a voltar para a escola. Começara a sentar-se no meio exato da sala e a não responder quando outras pessoas falavam com ele, saíra dos grupos da igreja, porque lá também não era onde ele pertencia, deixando-se observar a vida de todos de longe, carregando sua existência nas costas.

Mesmo assim, ele continuava tomando decisões ridículas e sem sentido como ir às confraternizações chamadas de bailes escolares. Como se as meninas não estivessem indo para mostrar poder com seus vestidos e corpos e os garotos não estivessem cheios de segundas intenções e tentando deixar os outros com inveja, ambas as partes andando com seus pares como se o outro fosse um imenso troféu ambulante que demonstrava sua capacidade de ser adulto e de estar no topo da hierarquia do Ensino Médio.

Como se ninguém soubesse que haviam batizado o ponche, que agora ele não podia beber a menos que quisesse passar muito mal, graças aos remédios.

Ele suspirou e se desencostou da parede na qual estava, afrouxando a gravata ridícula que o fizeram usar e passando a outra mão pelos cachos loiros de seu cabelo, tentando tirá-los dos olhos enquanto saia pelos lados, rumando para os corredores da escola, pois prometera a Leon, seu irmão mais velho, que ficaria até a meia noite e tentaria se divertir.

Ele odiava as batidas e as luzes desse tipo de festa; especialmente as luzes, coloridas e que confundiam sua cabeça, e a mistura da batida forte e rápida dos pops dançantes com as conversas dos alunos. Principalmente por isso, correu assim que chegou a uma das portas laterais da quadra, desacelerando ao alcançar os armários, pois o pequeno exercício lhe deixara com calor, por ter sido feito dentro daquela roupa formal.

Virou mais um corredor, tirando os cabelos dos olhos novamente e puxando as mangas do paletó um pouco para cima, caminhando pelos corredores vazios da escola até chegar em seu armário, bem em frente à porta do laboratório de Química. Abrindo-o lentamente, tentando não fazer barulho, pegando a garrafa d’água que mantinha perto da cartela de calmantes de emergência, abrindo-a e tomando um gole enquanto fitava o caderno de desenho que deixara ali para o caso do baile estar muito ruim, ou de ver algo interessante.

Não havia visto nada que valesse desenhar, certamente, e o baile não estava torturantemente ruim, só entediante, quente e lhe deixando com sede, então talvez ainda devesse voltar para a quadra e continuar fazendo nada por lá, enquanto esperava o horário que havia combinado com Leon bater.

Soltou um suspiro, conseguindo terminar de se convencer a não se isolar ali, decidindo que era melhor que enchesse a garrafa de água e a levasse para a quadra, porque ele realmente não podia sequer chegar perto daquele ponche. O que era uma pena, pois fora um dos primeiros a chegar e tomara um gole antes que a bebida fosse batizada, então sabia que ela estava boa.

Estava travando o armário quando ouviu uma risada ecoando pelos corredores vazios, seguida do baque de algo batendo em um armário e de mais uma risada. Ele franziu um pouco o cenho, desconfiado de que poderia ser algum bully imbecil de escola, e caminhou a passos silenciosos em direção ao som, não precisando virar mais que um corredor para se deparar com quem o produzia.

Havia dois rapazes, e um deles, com o cabelo negro despenteado, estava imprensado entre os armários escolares e o outro, um ruivo claramente artificial, as madeixas alaranjadas gritando em sua cara, e talvez Shey houvesse se focado mais nisso, caso a situação fosse outra. Suas bocas estavam unidas e se moviam de um jeito intenso, as mãos indo para todos os lados, resvalando pelo corpo alheio com afobação. Era nojento, era pecado, e era errado. Mas quando o moreno se afastou, com o rosto um pouco afogueado, e abriu os olhos, deixando escapar outra daquelas risadas bobas, Shey não pôde deixar de engolir em seco, recuando um pouco, com um calor esquisito lhe subindo para as bochechas.

Ele concluiu que produzira algum barulho, pois enquanto o ruivo mergulhava o rosto na curva do pescoço do outro rapaz, este se virou em sua direção, e ele tinha olhos azuis vibrantes muito bonitos, que se arregalaram um pouco ao vê-lo. Ele assumiu uma expressão nervosa por um tempo, até não ver o observador se virar e ir embora, como era esperado que fizesse; então ele sorriu de lado de um jeito estranhamente divertido e piscou um dos olhos, voltando a rir, e Shey se virou e correu, finalmente conseguindo pôr-se em movimento, quase deixando a garrafa cair em seu processo de fuga patética.

Ele tentou não acreditar em destino.

Não deu muito certo.

 

~o~

 

Ele era divertido de observar de longe, aquele garoto dos cabelos negros e olhos azuis. Era divertido, pois ele sempre parecia completamente à vontade em todos os lugares, mesmo que fosse, bem, gay e isso fosse um bom motivo para se sofrer descriminação: era um pecado, afinal de contas.

Mesmo assim... mesmo assim, ele caminhava pelos corredores com passos firmes e seguros, o queixo bem erguido e os lábios em sorrisos naturais, que às vezes evoluíam para risadas que soavam ridículas e muito agradáveis, ao mesmo tempo, embora Shey não soubesse bem como isso era possível.

O garoto era bastante bonito, também, o tipo de beleza que era bom parar para olhar, sempre com expressões simpáticas, cílios ralos e olhos em formato de amêndoa, mas levemente arredondados, que eram tão, tão expressivos e divertidos de desenhar, e mãos agitadas que se moviam o tempo todo, com os cabelos extremamente escuros sempre ao menos um pouco despenteados e roupas largas sobre o corpo magro, o que era uma combinação desfavorável, pelo que Shey sabia, mas que pareciam se encaixar bem para ele e...

E havia um garoto rindo no fundo da sala de aula, bem baixinho, mas audível de onde Shey estava, principalmente na classe silenciosa do professor de Geografia, que costumava dar provas difíceis. Ele enterrou os dedos nos cabelos, tentando focar no livro e no caderno abertos, cheios de trechos marcados e anotações, em prol de seu típico esforço de tentar fazer as coisas bem-feitas, enquanto os sussurros do colega de classe e de uma menina que talvez fosse namorada dele pareciam entrar pelos ouvidos e martelar sua cabeça.

A garota sentada ao seu lado o olhou estranho, ele percebeu, e depois virou o rosto de uma forma mecânica para frente, com o cenho ainda franzido.

Estava tentando se focar na matéria e no que o professor dizia, jurava que estava, esforçava-se para que a mente não se dividisse no incômodo pelo garoto conversando ao fundo e os pensamentos errados com o menino que vira apenas uma vez. Queria apenas se concentrar, entender aquilo tudo e ao menos deixar a mãe um pouco orgulhosa de suas notas, visto que não podia fazê-lo em mais nenhum âmbito.

Ao menos não demorou muito para o professor terminar de explicar a matéria que ele pusera no quadro, desta vez. Ele se sentou, pedindo que os alunos copiassem as novas informações e lhes dizendo que daria dez minutos de pausa para que fizessem isso e assimilassem tudo antes que a folha de exercícios da semana fosse passada e falassem sobre ela. Shey levantou a mão, então, pedindo para ir ao banheiro, porque agora todos começariam a cochichar entre si e ele não queria ter de ficar ouvindo, hoje.

Por sorte o professor deixou imediatamente, e Shey tentou sair de sala o mais calmamente possível, enquanto o burburinho já começava, se deixando apressar o passo quando no corredor e atravessando os corredores rapidamente até o banheiro masculino mais próximo. Ele lavou o rosto, esfregando os olhos e secando com a manga do casaco antes de se enfiar em uma cabine e sentar na privada fechada, atraindo os joelhos para o alto para que os pés não ficassem visíveis por baixo da porta trancada, puxando o celular e pondo os fones de ouvido que deixara no bolso do casaco, apertando o botão para pôr uma música aleatória para tocar.

Encostou a cabeça na parede, observando pela fresta minúscula entre a porta e a parede as sombras das pessoas entrando e saindo do banheiro, capturando fragmentos de conversas e risadas por sob a música, enquanto esperava o tempo que estipulara que demoraria até o professor de fato começar a falar sobre o exercício, ao invés de apenas colocá-lo no quadro.

Já havia passado por quatro músicas quando ouviu aquela risada soluçada e animadora preencher o banheiro, acompanhada de uma outra, mais alta e grave. Suas bochechas se aqueceram um pouco e, hesitantemente e com as mãos um pouco trêmulas, pausou a música e retirou os fones de ouvido, mantendo os olhos fixos na fresta, em busca de confirmação de que era o garoto do baile ali, embora não tivesse muita certeza do que faria com a informação.

— Acho que eu não vou voltar pra sala, não. — uma voz preguiçosa e rouca, que vinha de um lugar não tão afastado da porta, se pronunciou. — Eu não tô prestando atenção mesmo, e aquela mulher tá ficando com raiva de mim, eu tô sentindo isso!

— Você vai repetir de ano, Santie. Já estou até vendo!

Santie… que tipo de nome gera um apelido daquele tipo? Santiago? Ou seria realmente apenas esse o nome, apenas Santi? Não parecia ser. Parecia mais um apelido íntimo, daqueles que não devem ser usados por qualquer um.

Santie…

Combinava bem, de qualquer forma, caso fosse o garoto do corredor, como achava que era. Ele gostava.

— Eu estudo em casa, está bem? — Santie retrucou, com uma voz divertida, e passou rapidamente na frente da porta da cabine em que Shey estava, permitindo-o confirmar quem era, fazendo o coração se acelerar de um jeito medíocre e sem sentido. — Diferente de você, aliás.

— Eu presto atenção na aula exatamente pra não precisar disso!

— O certo é fazer os dois, idiota. Não pode falar nada de mim.

O loiro pôde ouvir o outro começar uma resposta antes de girar a trava da porta da cabine e sair, com passos miúdos e hesitantes, enquanto os outros dois ficavam em silêncio, porque eles pareciam pretender se demorar ali, e não podia ficar muito mais tempo sem correr o risco de perder algo realmente importante. Pareceria estranho se, após toda uma conversa, alguém saísse de uma cabine, sem nunca ter feito barulho algum dentro desta, como se houvesse ficado ali justamente para ouvir tudo o que falavam.

Ele olhou de canto para eles enquanto guardava os fones no bolso, vendo a expressão desentendida do garoto alto de cabelo castanhos contrastando com a de Santie, que pareceu se iluminar em reconhecimento antes de se abrir em um sorriso tranquilo.

— Você é o voyeur. — ele pronunciou, em um tom que parecia de cumprimento, e Shey arregalou um pouco os olhos, negando com a cabeça, com algo que devia se classificar como constrangimento se afundando no estômago. — Não, digo, você é o garoto do dia do baile, que ficou—

— Eita, porra, quem diria?! Tu tinha razão, cara, ele não parece um pervertido doido que tá te perseguindo!

— Danny. — ele repreendeu, embora ainda parecesse relaxado. Shey recuou um pouco com os pés, prestes a disparar em uma corrida. — Espera, espera! Eu queria te agradecer. Você sabe, por não ter delatado nem a mim nem ao Jamie… — ele sorriu gentilmente em sua direção, arriscando um passo, que apenas o fez recuar um pouco mais. — Você podia ter nos metido em uma encrenca enorme, se quisesse!

— Eu… não foi nada…? — ele hesitou, erguendo os olhos para o garoto dos cabelos negros, engolindo em seco novamente e virando as costas, saindo em uma corrida apressada daquele lugar, com o estômago enlouquecido e sentindo o rosto e as orelhas arderem.

Era ridículo. Simplesmente ridículo.

Mas… mesmo assim… ele estava estranhamente feliz que aquele garoto existia. E tentou deixar o sentimento tomar conta de si, convencer a si mesmo que não era nojento e que não arruinaria um pouco mais a vida e as expectativas da mãe, mas a ideia de deixar isso acontecer era simplesmente insuportável demais, depois de tudo que ela fizera e fazia por ele.

As aulas já chegavam ao fim, após um dia pouco produtivo em que não conseguiu absorver nada, quando notou que aquilo tudo era inútil e iria queimar no Inferno, de qualquer forma. Depois disso foi simples concluir que quanto mais rápido o fizesse, menos problemas causaria.

Ele achou ter ouvido um sussurro de concordância, no fundo de sua mente.

 

~o~

 

Shey deixou uma de suas mãos escorregar pela madeira lisa, bem lixada e envernizada do banco da igreja, com o sermão firmemente discursado entrando em seus ouvidos e se confundindo em sua cabeça, criando uma sopa de palavras que não era capaz de compreender o significado, podendo apenas engolir em seco cada vez que entendia a palavra “pecado”.

Sua mãe, ao seu lado, parecia concentrada e em paz, com os lábios se movendo sem produzir som, em resposta ao que era dito, em uma interação silenciosa com o ambiente e a religião, como ele achava que devia ser.

Ele respirou fundo, se virando para frente, e tentou relaxar, se concentrar plenamente no que era dito e se deixar guiar para um estado confortável de reflexão em busca de respostas, que talvez nunca chegassem a ser aplicadas na vida de fato, mas eram agradáveis de se ter.

As coisas provavelmente seriam melhores se Leon também estivesse por ali, ele pensou, sem muita convicção. Às vezes a presença de seu irmão mais velho o acalmava; outras apenas o deixava mais nervoso, apavorado com a possibilidade de fazê-lo se decepcionar mais uma vez, embora tivesse certeza que ele nunca deixaria de apoiá-lo por isso.

Contudo, Leon decidira não mais seguir uma religião anos atrás, durante uma conversa que foi realmente muito mais tranquila que o esperado, em que ele dissera não conseguir concordar com alguns dos principais pontos de todas as religiões que conhecia até então e explicara que apenas acreditaria em Deus, deixando a igreja de lado.

Ele ainda se lembrava bem de como sua mãe apenas sorrira, assentira e lhe passara o suco, mandando-o continuar a comer e perguntando sobre o boletim, já que na época o rapaz ainda estava no Ensino Médio, e depois sobre coisas mais pessoais, como quando os amigos dele iriam visitá-lo novamente.

Fora tudo tão tranquilo e corriqueiro que Shey se perguntou, algumas vezes, se não tinha vontade de fazer o mesmo. Com ele, entretanto, era bem diferente: acreditava, sim, nos pontos principais, apenas era um pecador fraco demais para segui-los. Ele não conseguia perdoar com facilidade, pensar primeiro no próximo, agir com gentileza, ou virar o rosto para oferecer o outro lado quando recebia tapas. Ele ignorava todas as palavras de Jesus Cristo sobre generosidade, como o ser humano ruim que era e sempre fora. E agora ainda havia... aquilo.

As pessoas começaram a se levantar na igreja agora livre da voz firme do padre, e ele notou, um pouco desorientado, que aquela missa já terminara, pondo-se de pé e vendo a mãe fazer o mesmo, com uma expressão serena de quem aproveitara bem aquelas últimas duas horas. Ele estendeu a mão para a bolsa da mulher, ainda jogada no banco da madeira, querendo apressar um pouco a saída, pois o ambiente estava começando a lhe deixar inquieto e nervoso, e recebeu um fraco e repentino tapa na mão que o fez recuar, surpreso. Aloá Völkers pareceu conter um sorriso e pegou ela mesma seu acessório, pondo-o no ombro.

— Pareço inválida demais para carregar a minha bolsa, seu moleque? — questionou em um tom brincalhão, cruzando os braços, e ele negou com a cabeça, umedecendo os lábios e desviando os olhos.

— Não. Desculpe. — ela riu de leve, estendendo a mão para ele e bagunçando seus cachos loiros que já não estavam muito alinhados em primeiro lugar, para logo em seguida envolvê-lo pelo pescoço em um meio abraço, começando a andar.

— Você é sempre tão sério, minha nossa! — ela murmurou, guiando-o para a saída da igreja enquanto acenava para algumas pessoas que a cumprimentavam, sem nunca deixá-lo ir, embora mesmo com sua ausência de luta devesse saber que ele nunca estava muito confortável com demonstrações de afeto de qualquer tipo, quando em público. A vida era dele e parecia errado expor partes tão importantes dela assim, como se nada.

Aloá e Leon sempre riam disso.

Ele não achava que fosse levado muito a sério naquela casa e não tinha como ter certeza se aquilo era bom ou ruim. Talvez alguém precisasse levar na brincadeira. Talvez se não o fizessem com algumas coisas desistissem e o mandasse para o hospício de novo.

— Eu aposto que sua mente está sendo depressiva. — ela comentou, em um tom desconfiado e baixo, quando já haviam virado a esquina e ele não mais via senhoras em vestidos longos e com pequenas florezinhas. Havia muitas daquelas e, alguns anos antes, ele demorara a deixar de pensar nisso, fazendo-o apenas depois de partilhar a impressão seriamente com Leon e ouvi-lo rir e mandá-lo relaxar. Ele piscou, tentando puxar a mente para fora daquela linha de raciocínio, e se concentrou na escolha de palavras da mãe. Nada de “você está sendo”, mas sim “sua mente”. Ele quis questionar se era mais confortável daquela forma.

— Não muito. — respondeu apenas, em um tom baixo, ouvindo-a suspirar e sentindo-a retirar o braço de seus ombros.

— Eu marquei uma consulta.

— Não, não, não precisava. — ele resmungou, afastando-se um pouco, finalmente entendendo porque ela havia o abraçado e deixado seus rostos tão próximos quando na rua, e Aloá parou de andar, olhando-o seriamente, fazendo seu coração acelerar, porque sabia que vinha uma conversa importante que realmente não queria ter, sobre ter parado as terapias.

— Eu não estou dizendo que vou te internar, nem nada. É apenas uma consulta. — ela explicou, e Shey acreditava que essa era a intenção, mas e caso o médico dissesse novamente que precisava ser internado por um tempo? Ele não conseguiria lidar com mais dois meses.

— Mas os remédios ainda não acabaram, não precisamos de outra receita.

— Acho que é melhor cuidarmos disso com mais atenção, Shey. — ela explicou, com um tom de voz que parecia visar lhe acalmar, mas apenas o deixou mais nervoso.

— Eu não estou tendo nenhum pensamento agressivo que precise desesperadamente ser deixado de lado. Eu estou… tentando… conviver. Eu—

— Não, você não está. — ela retrucou, com uma calma que tinha de ser forçada, virando-se para ele e abrindo um sorriso que nada tinha de feliz. — Nós dois sabemos disso. — ele desviou os olhos para o chão, estreitando-os para as manchas no asfalto. — Você nem tenta fazer amigos, tenta?

— Não é tão simples.

— Ah, Shey, eu já fui para a escola também. Por mais que você se julgue incomum, tem de ter alguém lá que se identifica com você. Ninguém é tão estranho assim. — ela riu, como se tentasse tirar um pouco do peso da conversa, falhando em seu intento, pois nenhum deles era muito bom em aliviar o ambiente. Aquela era a função de Leon.

— Eles têm medo de mim, tudo bem? Eu surtei na frente de todo mundo. — disse o obvio, porque ela já devia saber disso, mesmo, não era possível que achasse que alguém podia não ligar para aquilo. — Ou eles têm medo ou eles zombam de mim, e não tem ninguém lá que seja exceção.

— Podemos muito bem te mudar de escola. Eu sugeri isso! Se você apenas fosse menos cabeça dura, nós—

— O problema sou eu. É mais fácil mudar de filho. — ele interrompeu em um resmungo, soltando um breve resmungo amargo.

Então a lateral de seu rosto ardeu e o pescoço se virou um pouco, com um estalido baixo e rápido fazendo eco em seus ouvidos. Aloá recolheu a mão, com uma expressão irritada e com algo de arrependimento disfarçado nos olhos, embora Shey já houvesse levado um tapa consideravelmente mais forte depois de todo um discurso estúpido no primeiro dia de visitas, no hospício. Ele recuou um passo, respirando fundo de forma trêmula e engolindo em seco, as mãos começando a tremer de forma perceptível.

— Desculpe. Desculpe. Desculpe. Eu não devia ter dito isso. Desculpe.

— Não devia mesmo. — ela confirmou, em um tom ainda um pouco irritado, mas principalmente cheio de preocupação, aproximando-se um passo. — Mas isso não é justificativa. Desculpe. Eu perdi o controle. Não vai se repetir, eu prometo. Está doendo?

— Desculpe.

— Chega.

— Certo.

— Eu não devia ter te dado um tapa. Estou muito mais errada que você. Você entende, né? Eu é que tenho de pedir desculpas, agora.

Ele apenas assentiu, tratando de segurar-se para não dizer que fora mais que merecido e que ela tinha o direito de fazer isso quando estava sendo um estorvo. Tinha a sensação que um comentário desse tipo não ajudaria em nada, mas, mesmo assim, não era como se pudesse o arrancar da cabeça. Ele era simplesmente muito bom em acidentalmente ferir todos ao seu redor, a magoá-los e fazê-los sofrer e chorar, portanto é claro que ele estava esperando ser ferido também, principalmente por aqueles que eram mais próximos.

Assim sendo, quando chegaram em casa ele tratou de ir para o quarto imediatamente, com mais pensamentos na cabeça do que seria bom deixar que os outros soubessem. Tinha certeza de que precisava agir logo, antes que fosse a um psiquiatra, pois estes sempre distorciam suas crenças, deixando-o sem saber ao certo no que devia acreditar, o que era real de fato e o que fora produto de sua mente doente e desta vez sabia que não podia deixá-los vencer.

Catou um livro aleatório, buscando um marcador de páginas antes de descer as escadas com passos calmos, vestindo a mesma roupa com a qual fora para a igreja, não sabendo bem porque devia se arrumar para morrer. O chuveiro ligado começou a produzir um barulho que indicava que sua mãe iniciara um banho, e ele suspirou de alívio por não ter de falar com ela, parando apenas ao alcançar a sala e se deparar com Leon no sofá, de pijamas e assistindo TV, com pacotes vazios de salgadinhos e jujubas espalhados para todos os lados, demonstrando quão produtivo estava sendo seu domingo.

— Quer ver comigo? — ele questionou, abrindo um sorriso divertido. — É uma série americana de modelos. Uma está tentando sabotar a outra, agora. — Shey franziu o cenho, encarando-o com incredulidade.

— Não, obrigado. — respondeu, embora achasse que fosse óbvio. — Vou sair.

— Você vai? — Leon retrucou, com choque. — Já está escurecendo!

— Vou a algum café… — explicou vagamente, erguendo um pouco o livro e desviando o olhar.

— Tudo bem. — ele soltou, ainda um pouco surpreso, e arqueou uma sobrancelha. — Mas não se distraia muito com isso aí e volte cedo. Está levando o celular?

— Estou. — mentiu, forçando-se a soar firme, e virou as costas para ir embora, caminhando em direção à saída, com medo de ter de responder a mais perguntas.

— Tchau, Super-Educado! — ouviu Leon gritar antes que fechasse a porta, suspirando profundamente e tomando coragem para seguir.

 

~o~

 

— Então, isso é de um jogo muito legal. — ouviu o garoto dos cabelos negros e olhos azuis bonitos, Santie, dizer. — Eu já zerei todos e tenho um amigo que realmente adora. Você já jogou também? — ele questionou, em um tom interessado, mas que continha um quê de desespero. Uma vez mais levou os dentes o lábio inferior por sua falta de resposta, embora a última mordida houvesse arrancado um pouco de sangue.

Shey o encarava com incredulidade, parado em meio às vigas de uma ponte de ferro, agarrado em cabos de sustentação, sentindo o vento forte bater em seu rosto e bagunçar seus cabelos e tendo a perfeita noção de que a única coisa que o impedia de saltar era não querer marcar a mente daquele garoto com a cena.

Encarava-o fixamente, embora tivesse de olhar para cima para fazê-lo, graças às posições em que estavam, esperando por uma chance: uma piscada mais longa, um virar de cabeça, o toque do telefone… qualquer coisa.

Mas o outro se mantinha concentrado, um pouco debruçado na grade de segurança da rua que dava acesso à ponte, segurando seu livro em uma das mãos, com um sorriso forçado que ele tinha de interromper para morder-se e os olhos expressivos um pouco escurecidos pela iluminação precária e pelo fato da noite já ter caído quase que por completo, deixando no céu apenas um fino e discreto rastro dos tons vivos de roxo e laranja que o pôr-do-sol liberava.

Ele começara a chamá-lo assim que Shey terminara de equilibrar-se naquele lugar, enquanto olhava para os carros que passavam lá embaixo e esperava por um suficientemente grande e rápido para matá-lo instantaneamente. Já estava fadado ao sofrimento eterno do Inferno, e não havia porque dar a si mesmo mais dor do que já receberia. Santie surgira do nada, gritando “Fique parado!” com uma fúria que realmente o paralisou, fazendo-o hesitar demais e acabar naquela situação desagradável.

Ele pensou, no primeiro minuto, que o garoto por quem criara tanto gosto sem motivo algum fosse abaixar a cabeça para pegar o celular e ligar para a polícia ou para os bombeiros, mas ele apenas seguia ali, encarando-o, tentando iniciar um diálogo sem fazê-lo tomar a decisão definitiva de pular, e Shey tentava conter-se para não mandá-lo partir, não querendo deixar claro que apenas precisava de uma oportunidade para deixar-se cair.

— Eu nunca li isso. — ele continuou, sacudindo cuidadosamente o livro. — Sou meio vagabundo pra essas coisas, você sabe como é. Ou não. Sei lá. A gente nunca conversou antes e você tem cara de quem lê bastante. Enfim. O que eu tava dizendo? — ele fez uma pausa, franzindo o cenho. — Ah, é. Eu nunca li isso. Eu joguei todos os jogos e tal, mas sabe quando você olha pra algo e pensa “Não quero ler essa coisa”? Até porque eu já sei a história toda! Jogo prestando atenção na história. É o melhor jeito de se jogar qualquer coisa, afinal! Mas o meu amigo, que começou a jogar ao mesmo tempo que eu, leu. Ele adora livros e adora jogos, então acho que teve uns sete orgasmos quando comprou. A namorada dele devia se vestir de livro. Eu tenho que sugerir isso a ela.

Shey franziu o cenho, sem entender ao certo porque diabos o garoto estava lhe bombardeando com isso, mas conseguindo forçar-se a não perguntar absolutamente nada ou se intrometer no monólogo.

— Aliáaaas, sabe aquele moleque ruivo idiota mesquinho que você viu comigo no corredor no dia do baile? — o loiro arregalou os olhos, fechando as mãos com mais força nas vigas de sustentação, sentindo-se suar frio, e Santie sorriu de lado, formando uma arma com os dedos e apontando para ele. — É, eu sei quem você é. Bang! Enfim. Aquele puto idiota não quer mais me ver só porque eu recusei um pedido de namoro. Eu posso com isso? A pessoa te chama pra sair porque tem certeza que você não vai ficar no pé, diz isso na sua cara, e aí fica puta quando você se recusa a namorar. Não dá vontade de esganar? Eu fico com vontade de esganar! Nunca mais ajudo ele em Matemática.

Ele sorriu e mordeu o lábio, como se houvesse visto algo em sua expressão, respirando fundo antes de seguir com sua fala rápida.

— Sim, eu sou bom em Matemática. Sou apaixonado por Matemática, por sinal. É, plot twist, o cara bonito é nerd. Embora eu não seja nerd. E eu sei que sou bonito mesmo. Outro plot twist. O cara bonito sabe que é bonito e não tem vergonha de sair falando isso. É por isso que as pessoas se apaixonam por mim, você tá vendo? Eu sou muito legal e muito foda. — ele soltou o livro, se debruçando novamente na grade e abrindo um sorriso zombeteiro. — Ou não. Aliás, eu tenho a sensação que a maioria só quer sair comigo uma vez. Deve ser porque eu falo demais. Você acha que eu falo demais? Aposto que acha.

Ele parou, como se pensasse em algo, o cenho se franzindo em uma expressão concentrada que parecia não ser totalmente verdadeira.

— Eu sempre quis perguntar se as minhas costelas não incomodam, e tal. Elas aparecem. Tipo, argh! Eu tentei engordar! Tinha uma menina na sétima série, a primeira que eu saí, antes de descobrir que eu tava mais na vibe dos meninos, que gostava de ficar apertando o ossinho da minha cintura. Caaara, não, isso é horrível! Faz você se sentir o Puro Osso! Sabe, Puro Osso? Do desenho e tal. Que eu nunca assisti, falando nisso. — ele parou de novo, com uma expressão surpresa. — Que personagem famoso. Mais famoso que o desenho… aí aquele momento em que fica difícil saber se a mesma coisa rola com Naruto, porque… — ele riu, negando com a cabeça. — Foi mal, essa foi muito ruim. Desculpa aí, nossa. Enfim. Você já assistiu Naruto? Tem um ninja de laranja e um cara vingativo com uma espada! E uma menina de cabelo rosa que cura as pessoas. E é inútil pra todo o resto, mas curar pessoas é legal, na minha opinião, então a Sak—

— Cala boca. — Shey soltou, vendo-o parar imediatamente, arregalando um pouco os olhos de uma forma surpresa e entreabrindo os lábios. — Você fala… muito. Demais. Por favor, só faz um pouco de silêncio. — finalmente deixou-se dizer, em um tom que pairava entre uma real e profunda irritação e uma admiração sem sentido que não podia ignorar. Santie sorriu, assentindo animadamente.

— Sim, é isso mesmo. Eu sou Aquele que Fala Demais ou a Máquina de Assuntos Aleatórios. Você devia ter começado a falar em algum que te interessasse. Eu deixo espaço pra outra pessoa quando, você sabe, não estou em um monólogo. — explicou, parecendo estranhamente orgulhoso. — Meu nome é Santini, aliás. Santini di Quercia, mas não me chama assim que ia ser esquisito. Só Santini ou Santie já tá de bom tamanho. Oi. Prazer te conhecer.

Shey sentiu o coração se acelerar sem motivo aparente, com a boca se tornando seca e as bochechas ardendo repentinamente. Esse era o nome dele, então. Um nome que ele nunca ouvira antes e que soava perfeito para aquele garoto, muito mais do que aquele apelido que ele não achava que poderia pronunciar sem se sentir desconfortável, que não deixava claro qual era o gênero de quem o possuía, assim como seu próprio nome, Shey.

Ele gostou tanto que tinha certeza que era mais por conta de sua anormalidade que por qualquer outro motivo.

— Então, eu sou Santini. Qual seu nome? — ele questionou, em um tom suave e gentil, livre de falsa complacência, tão diferente do tom da diretora do colégio e das enfermeiras do hospício que ele teve de engolir em seco enquanto sentia os olhos se nublarem, um segundo antes de deixar correrem as lágrimas que não sabia bem a que vinham, se ao fato de que ele estava asquerosamente apaixonado por aquele garoto ou ao de ter percebido que era tão raro que as pessoas não lhe lançassem um olhar de pena que o fazia sentir miserável. — Não, não, calma, shh, já passou. Vem cá… — ele sussurrou, estendendo uma mão. — Vem cá, sai daí, você não quer fazer isso. Eu vou te ajudar a lidar com seja lá que porra te fez querer se matar, eu juro. Anda, vem cá.

— Eu só queria morrer antes que atrapalhasse mais ainda todo mundo. — ele soluçou, sem entender ao certo porque tinha de lutar consigo mesmo para não obedecer. — Eu não aguento mais, não aguento mais ter que ver todo mundo sofrendo por minha causa. Eu não consigo. Não aguento mais.

— Qualquer pessoa que é capaz de sofrer porque você está mal vai sofrer muito, muito mais se você morrer. Anda, sai daí. Vem cá. Você sabe que não precisa fazer isso.

Shey encostou a testa em uma das vigas, soluçando e ofegando, sentindo o corpo interior tremer enquanto as vozes em sua cabeça, todas misturadas e frenéticas, gritavam comandos diferentes que o deixavam trêmulo e confuso, em vozes estridentes, claramente irreais. Ele fechou os olhos, passando as unhas de uma mão pelo antebraço, mordendo os lábios sem muita força, tentando se agarrar à sensação para conseguir ignorar as vozes.

Então, quando abriu os olhos, decidindo repentinamente que fitar outra coisa também ajudaria, ele viu. Ele viu que o garoto havia pulado a grade de segurança e se aproximava dele em movimentos cautelosos, sempre se segurando em algum lugar. Ele o viu tombar para o lado, e os dedos escorregarem da viga na qual se segurava.

Sua cabeça se tornou um verdadeiro turbilhão de vozes, enquanto ele encarava, com os olhos arregalados vidrados, o lugar onde Santini estava até um segundo atrás, com o corpo tremendo e os ofegos saindo de um jeito tão intenso que não conseguia respirar direito, a cabeça girando e doendo.

Morto, o garoto está morto. Por sua causa, morto, até mesmo ele.

Por sua causa, sempre, morto, morto, morto, completamente.

Nunca mais falará demais, nunca mais, está morto.

Até mesmo Santie. Por sua culpa. Sua culpa.

Você o matou. Assassino. Você o matou. Sua culpa.

Assassino.

Ele gritou, em um tom alto e desesperado que fez mesmo seus ouvidos doerem, obrigando as vozes a se calarem por alguns ínfimos segundos, deixando sua garganta dolorida como se houvesse tentado engolir uma aranha raivosa, arranhando as vigas de metal e fazendo as unhas latejarem, mas não se soltando, por um motivo que não consiga entender. Apenas agarrou-a como quem agarra algo precioso, fechando os olhos, temendo olhar para baixo, temendo tudo o que sabia que veria, temendo, embora não quisesse admitir para si mesmo, a vontade de se jogar que certamente viria assim que fitasse o corpo sem vida de Santini.

— Eu vou te ajudar a voltar para terra firme. — uma voz sussurrada e um pouco trêmula falou, fazendo-o abrir os olhos de chofre, percebendo o garoto de olhos azuis logo a sua frente, mordendo o lábio com força, com os lábios feridos fazendo escorrer sangue pelo queixo, sem parecer ligar ou sequer notar tal fato.

Eles se encararam por um segundo e Shey ofegou quando uma de suas mãos, mãos que até onde ele sabia deviam estar mortas, o tocaram, e era gelado, graças ao tempo que parara em um lugar que ventava tanto, mas ainda pareciam vivas o bastante, e ele se aproximou, beijando-lhe a testa de uma forma carinhosa e limpando-a com o polegar ao se afastar.

Shey achou que caso aquele fosse um dos livros de sua mãe, as vozes parariam e ele descobriria que se aceitava, e logo em seguida Santini o chamaria para sair e eles declarariam seu amor um ao outro no meio do jantar, e quando ele chegasse em casa seu genitor que nunca tentara ser um pai estaria lá para lhe pedir desculpas e tudo ficaria bem.

Ali, naquele momento, as vozes continuavam, embora um pouco mais fracas, já que o garoto estava vivo, e seu choro, assim como a tremedeira e a falta de ar, seguia incessante. Mesmo assim, ele aceitou a mão que o garoto por quem era apaixonado e que havia acabado de salvar uma pessoa que ele sequer sabia o nome, deixando-se puxar em direção à rua, olhando para baixo para ver por onde andava, querendo evitar de arrastá-lo para uma morte quase certa.

Ele não sabia se sua motivação principal era o alívio ou o desejo de vê-lo fora daquelas vigas, mas pulou sem hesitação quando chegaram às grades de proteção e abraçou-o com força, como se fossem amigos, assim que estavam ambos em segurança, enterrando a cabeça em seu ombro e não conseguindo parar o choro por um bom tempo, se acalmando gradativamente com a ajuda do conforto da carícia que os dedos gelados do garoto faziam em seus cachos. Ele não estava em paz, definitivamente não, mas decidiu, assim, meio de repente, que poderia chamar o abraço daquele garoto de agradável, se a situação fosse diferente

Não foi até quatro horas depois, já em casa, que ele notou que estavam no meio da rua durante aquela demonstração de afeto, e ele odiava isso, ainda mais de um afeto que sequer devia existir.

 

~o~

 

— Você ainda não me disse o seu nome. — Santini comentou, cerca de meia hora depois, quando estavam sentados um ao lado do outro em uma praça aleatória, a primeira que viram. Havia um pote de sorvete em suas mãos e ele insistia em misturá-lo de segundo em segundo, querendo que virasse uma massa cremosa no lugar de um sorvete consistente. Ele também comprara um para Shey, de flocos, e este estava apenas um pouco comido, cheio dos furos que ele fazia com a colher enquanto fingia que a estava enchendo pra levar aos lábios.

— Shey Völkers. — respondeu em um sussurro, fazendo o outro sorrir e assentir.

— Combina com você. — disse em um tom que parecia livre de segundas intenções ou indiretas. — Você não come ou fala muito, não é, Shey?

— Você já vai me chamar pelo primeiro nome? — murmurou de forma neutra, olhando para frente, para fugir daquele rosto bonito e dos lábios feridos por sua culpa.

— Logicamente. — replicou simplesmente, dando de ombros. — Pode me chamar só de Santini, também. — ele parou, assumindo uma expressão mais séria. — Quando a gente acabar aqui eu quero te levar em casa e falar com os seus pais.

— Você não é meu amigo pra ficar se preocupando com essas coisas. — ele retrucou, com o coração parecendo querer sair pela boca, encolhendo-se um pouco mais. Então aquela risada que ele queria adorar um pouco menos ecoou, tirando um pouco da tensão do ar como que se de mágica se tratasse.

— E quando se digna a pronunciar uma frase longa ainda é pra fazer grosseria! — exclamou, batendo na própria perna, como se assistisse a algum show de comédia. — Você é muito mal-educado, cara!

— Sinto muito. — resmungou, em um tom quase inaudível, que fez o garoto imediatamente cessar a risada e se virar para ele.

— Eu não faço ideia do que você disse, mas o seu tom doeu. — comentou, parecendo legitimamente horrorizado. Então balançou a cabeça, como que tentando afastar algum pensamento ruim e sorrindo novamente. — Desculpe ter te chamado de voyeur, Shey Völkers. Era uma piada entre amigos, só, e era pra ficar nisso. Não parecia que você tava secando eu e o Jaime.

O loiro desviou os olhos para a rua, para os carros que passavam e as pessoas que caminhavam em grupo, fixando-se no rapaz de blusa azul que ia sozinho, com enormes headphones na cabeça. Não se sentia muito confortável em pensar sobre o dia em que tudo começara, ou no dia em que encontrara o garoto no banheiro. Ele queria ignorar que estava do lado de sua… sua… céus, sua paixão platônica, fingir que ele era apenas um professor preocupado e que falava daquele jeito que o fazia sentir fraco.

Os professores que ele tinha não riam daquele jeito lindo, entretanto.

O pensamento lhe deu vontade de chorar.

— Ei, cara. — Santini chamou, puxando-o pelo ombro. — Você tá se torturando, ou algo assim? — questionou em um tom que mesclava de uma forma incrível preocupação e zombaria, como se quisesse camuflar que se importava, mas estivesse tenso demais para ter sucesso em seu intento.

— Eu não… — ele sussurrou, encolhendo-se um pouco mais, tentando fugir do toque de alguma forma, incomodado, e Santini imediatamente retrocedeu as mãos, mostrando as palmas.

— Vamos tentar não fazer isso, ok? De ficar se torturando. — ele propôs, arqueando uma sobrancelha e esperando por uma resposta, por alguns segundos. — Agora era a sua vez de dizer “ok, Santini!”, mas tudo bem. — sorriu de um jeito doce, negando com a cabeça. — Vem cá. — sugeriu, se aproximando lentamente para um meio abraço, lhe dando tempo de recuar caso quisesse, envolvendo-o pelos ombros com a mão que não segurava o pote de sorvete e lhe atraindo a cabeça para que a deitasse em seu ombro. — Eu vou te ajudar a deixar tudo legal. Eu te disse isso, não disse?

Shey absteve-se de responder, inspirando a essência alheia e sentindo o corpo pateticamente relaxar. Ele queria não ter ficado feliz em saber que o rapaz não estava, aparentemente, pensando em se afastar dele assim que fosse deixado em casa, mas, acima de tudo, ele queria adormecer naquele abraço; ele queria o cheiro de Santini ao seu redor e em seu quarto.

Era pecado e muito errado, mas ele não achava que pudesse refrear nada, não mais. Seria tudo apenas bom demais, o destino seria bom demais se um deles fosse uma mulher, e ele não era o tipo de pessoa com a qual o destino perdia muito tempo tentando tornar feliz. Não é que queria ser assim tão sujo, mas, mesmo assim… as vozes sumiam quando ele abandonava sua luta interna e se deixava levar. E teria tempo para tentar lutar novamente depois, mas agora estava tão, tão cansado. Então apenas inspirou fundo e apoiou a testa no ombro dele, sussurrando um agradecimento baixo, mas não hesitante.

Ele teve a sensação que o garoto sorriu.


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Notas finais do capítulo

Bem, caso alguém tenha lido, por algum milagre do destino, que tal deixar um comentário? =3 eu ficaria muito feliz de saber a opinião das pessoas nesta original e juro que sou uma autora dedicada que responde com educação u.u (?) XDDDDD
Obrigada por ler, se é que alguém chegou a esse final, e desculpe qualquer coisa.
O próximo deve sair em três dias, porque já tá escrito e isso daqui está sendo repostado porque eu fiz a besteira de marcar como terminada XDDDD""



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