Desalmados escrita por Pedro Couto


Capítulo 1
Capítulo 1




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"Fazemos o que temos que fazer para sobreviver, não importa o que eles foram um dia. É matar ou morrer. Se você estivesse na minha situação - talvez esteja -, o que faria para se manter vivo? Mataria? Roubaria? Ou será que você seria um bom samaritano que no fim das contas morreria como todos os outros?"

Cortez fechou seu caderno, o qual esperava futuramente tornar-se um registro de como foi o apocalipse, desde o início até o seu último dia. Ou enquanto ele o escrevesse. Desde que tudo começou, quando o mundo explodiu em caos numa guerra estranha entre humanos, Cortez começou a escrever em um caderno que tinha guardado em casa todas as memórias e acontecimentos que lhe ocorriam durante sua trajetória de sobrevivência.

O ar estava úmido e com um cheiro desagradável de mofo e de madeira molhada. Do lado de fora da pequena casa de fazenda uma chuva torrencial molhava o longo espaço da propriedade abandonada, o ar frio preenchia o interior da cabana e criava uma aura melancólica no ambiente.

A cabana situava-se no meio do nada, em quilômetros de distância para qualquer lado que se olhasse nada era visível, as plantações nos fundos estavam mortas. A própria construção não estava nas melhores condições. Os vidros das janelas da frente estavam marcados de tiros, provavelmente de um homem defendendo sua família e a si próprio. O chão estava manchado de vermelho, cicatrizes de um combate passado há algum tempo. Não havia nenhuma fonte de energia por perto e nem mesmo Cortez sabia se em algum lugar ainda haveria. A escuridão era afastada apenas por uma vela com pouco mais de quatro centímetros de altura que servia de pedestal para uma chama mista de laranja e vermelho brilhante que iluminava o ambiente da sala.

Cortez é um homem de porte médio, sua musculatura era, de fato, robusta. Não era um homem de academia, nunca entrou em uma sequer, mas, quando viajava para a fazenda de seu avô, o que passou a fazer com muita frequência depois dos 16 anos, ajudava seu avô com os afazeres e consequentemente, o resultado do trabalho pesado eram músculos desenvolvidos como os de um touro. Era capaz de levantar um boi inteiro. No entanto, com o tempo e a falta de alimento, Cortez ficou mais magro, com o semblante de um soldado pós-guerra, atormentado por visões de morte e perda. Os seus músculos se mantiveram, mas o porte físico, não.

Ao seu lado, dentro da casa estavam Túlio e Daniele. Túlio nunca fora um grande atleta, daqueles que traria uma medalha de ouro para o colégio, mas tinha as características essenciais para crescer como um, e praticava esportes no colégio para mostrar que poderia ser um. Apesar de nunca ter levado à sério nada do que fazia, o único motivo pelo qual entrava nos esportes extra-curriculares era para ter contato com as pessoas. Túlio sempre foi um homem extrovertido e simpático, e apesar de todos considerarem ele um grande garanhão com as mulheres, sua intimidade real apenas aflorava quando estava perto de homens. O rapaz conseguia ser delicado e amigável com qualquer garota que aproximava-se dele, sempre sendo gentil e nunca demonstrava nenhum interesse real, fora de um contexto de amizade, pelo menos não por mulheres... O fato de Túlio ser tão delicado com as garotas era que seu verdadeiro eu era omitido pelo medo, sua real preferência: A homossexualidade.

Daniele era uma das garotas mais populares de sua classe e de quase todo o colégio no qual Túlio e Cortez também estudavam, sempre mostrando-se firme em sua voz e em suas decisões, nunca desgrudando de seu grupo de leais amigas, Daniele escondia sua real personalidade. Fanática por filmes de ficção, adorava escutar o bom e velho Rock 'n' Roll, junto com sua vida social ativa e um histórico escolar perfeito, seus boletins vinham abarrotados de notas dez. Era a garota que qualquer garoto desejaria namorar, mas, que nunca conseguiam. Não a agradavam... Daniele nutria, desde que era pequena, uma paixão por Cortez, mas que nunca foi de fato revelada nem mesmo para ele, que também era apaixonado desde pequeno pela garota. Os dois nutriam amores platônicos nunca revelados e que acabavam corroendo-os por dentro, forçando-os a esconderem e reprimirem o que tanto desejavam demonstrar um ao outro.

* * * * *

– Túlio, tem dois deles lá fora. Me dê a pistola. - pediu Cortez, observando atento os dois contaminados que batiam de forma demente um no outro.
– Aqui. - estendeu a mão o rapaz, entregando-lhe uma pistola 9mm.

Cortez operou em silêncio, tentando fazer a menor quantidade de ruídos para não atrair visitantes indesejados. Os alvos estavam longe e a chuva não cooperava nos tiros que precisava disparar, respirou fundo, destravou a arma, puxou o ferrolho e apertou o gatilho. A explosão disparou a bala, que deixou em seu caminho um rastro fino de fumaça. Ele errou. Outro tiro, e mais outro, e outro. Quatro tiros foram necessários para derrubar os dois cambaleantes que aproximavam-se da propriedade. Os dois zumbis caíram mortos, um com um tiro que acertou em cheio seu coração, derrubando-o e ali ficando; e o outro caiu com um tiro direto na cabeça. Cortez estirou-se, sentiu o calor dos gases saindo de dentro do cano da arma pouco à pouco e subindo pelo seu braço. Andou em direção a mesa, largou a arma em cima da mochila de armas e sentou-se na cadeira de madeira a sua frente.

– Já percebeu que a cada dia que passamos aqui o número de bichos que aparecem vai aumentando? - perguntou Túlio, sentando-se a mesa junto com Cortez.
– Sim, já notei isso... Acho que se ficarmos muito mais tempo por aqui vamos acabar sendo cercados por essas coisas. Se isso acontecer, fodeu.

Os dois trocaram olhares algumas vezes, quietos, observando a chama da vela queimar a cera que derretia e escorregava pelo corpo do objeto.

Apesar de Cortez ser o melhor amigo de Túlio há mais de 15 anos, ele nunca havia contado da sua homossexualidade. Cortez sempre foi um homem compreensível, mas tinha certos preconceitos em relação à isso. Túlio sempre considerou-se bom ator diante de Cortez e de todos os outros, não deixando qualquer pista, qualquer aparência ou vestígio de quem ele realmente era. Juntos os dois já haviam compartilhado todo tipo de segredo e histórias, desde as mais dramáticas e tristes, até as mais engraçadas e picantes. Ambos confiavam um no outro.

Atrás de Cortez, deitada em um sofá ao lado da parede estava Daniele. Desde que chegaram nesta casa, Daniele recusa-se a participar dos momentos melancólicos de Cortez e Túlio, do modo como estava sendo neste momento. Quando isso acontecia, ela deitava-se no móvel e adormecia por ali. Sempre que o fazia passava alguns minutos escutando o que os dois conversavam, tentando entender o que eles faziam durante a madrugada, mas sempre pegava no sono antes mesmo de escutar qualquer coisa, o silêncio pesava em seus olhos e a fazia adormecer.

Daniele acordou no momento em que Cortez disparou contra os errantes do lado de fora da casa, mas manteve-se deitada, tentando não causar pânico.

– O que vocês estão fazendo aí? - perguntou Daniele, sonolenta, tentando fazer seus olhos acostumarem-se com a luminosidade que lhe era fornecida.
– Nada. - responderam os dois em coro olhando-a entre a escuridão.
– Hum... Vocês não dormem é? - perguntou.
– Dani, você sabe que a gente não dorme de noite enquanto você está dormindo.
– Mas vocês nunca fazem nada, nunca aparece ninguém. - retrucou, sentando-se no sofá.
– Besteira! Agora há pouco nós encontramos dois...

Túlio imediatamente calou-se quando olhou para o rosto de Cortez e viu seu olhar.

– Encontraram dois o quê? - o corpo de Daniele arrepiou-se com a frase dita por Túlio e por sua brusca parada.
– Não encontramos nada, apenas dois cachorros.

Daniele olhou nos olhos de Cortez tentando lembrar de como era o antigo Cortez. Ela nunca admitiu e sempre o rejeitou, na esperança de que ele desistisse dela e encontrasse uma garota que não fosse criar tantos problemas para ele, mas, ela sempre foi apaixonada pelo rapaz. Durante à infância, Cortez tentou de diversas formas mostrar seu amor por Daniele, mas depois de tantas rejeições e humilhações o jovem Cortez começou a desistir e a tornar-se introspectivo. Ela lembrava-se das festas de aniversário, das reuniões para fazer trabalhos escolares e dos encontros aleatórios pelo condomínio, sempre olhando um para o outro de forma romântica, como um casal troca olhares, sempre trocando abraços e beijos mentais que nunca tornaram-se realidade.

O devaneio rendeu-lhe longos minutos de lembranças, e o que ela mais desejava naquele momento era que Cortez voltasse a ser o que era. Voltasse a ser o garoto simpático e divertido que sempre foi. Daniele sabia que aquilo talvez nunca acontecesse, mas, precisava acreditar que era possível, que um dia ia acontecer.

– O que você tem, Dani? - perguntou Cortez, depois que Daniele olhou para ele por quase dez minutos seguidos.
– Ahm? - como num transe, ela despertou da mágica que a prendia. - Nada, nada... Eu só estava pensando.
– Pensando em quê?
– Na vida, Cortez... Na vida.

Daniele deitou-se no sofá, aconchegando sua cabeça no braço do móvel e fechou os olhos. Rezou para que parasse de pensar em tudo e simplesmente dormisse.

– Cortez... - parou e tentou reformular a frase que havia imaginado em sua cabeça. - Você já viu como ela olha para você? Você nunca percebeu que ela é apaixonada por você desde a oitava série? - ele ficou observando as feições de Cortez por um tempo, tentando descobrir o que ele estava pensando, mas, concluiu que só aquilo não ia bastar, e continuou. - Eu sei que você ainda a ama, vejo isso nos seus olhos e nos dela. Vocês dois se amam desde pequenos. Eu sei disso.

Cortez foi pressionado com lembranças de seu passado, de momentos felizes e ingênuos que viveu com Daniele, momentos que ele sabia que haviam ficado no passado. Ele lembrou-se de todas as consequências que seu amor trouxe para ele e para ela, trazendo consigo o por quê de todas essas coisas estarem no passado e não acontecerem novamente.

– Túlio... - Cortez tentou responder seu amigo, mas cada letra que tentava pronunciar parecia rasgar sua garganta e quebrar suas cordas vocais, sua mente parecia ficar confusa e seu estômago embrulhado. - Eu não amo ela, você sabe disso. Não me venha trazer de volta lembranças que eu tento esquecer desde que somos crianças, não aqui, não agora.
– Besteira! Você nunca deixaria de amar a Daniele, você sabe disso! Você passa essa postura de frieza, como se tivesse mudado e se tornado algo que você não é, mas no fundo você ainda é o Cortez que eu conheci quando éramos pequenos, aquele cara que todo mundo queria por perto.
– Se todos me queriam por perto como você diz, então por que você era meu único amigo no colégio?
– Isso é óbvio, parceiro! - disse, esboçando um sorriso alegre. - É porque eu sou o único que te conhece de verdade!

O homenzarrão sentiu como se sangue quente fosse injetado direto no seu coração, ele bombeava num ritmo acelerado e logo o rosto de Cortez estava corado como uma pimenta. Desde que se trancou para o mundo, Cortez sentia repulsa em demonstrar sentimentos afetivos por outras pessoas, como se ele não gostasse de amor, de carinho, de amizades.

– Você é mesmo um idiota, Túlio... - respondeu, rindo e balançando a cabeça.
– Eu sei, amigo.


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