Nuvens cinzentas cobriam o céu. O dia estava escuro embora fosse de tarde. O sol não tinha aparecido naquele dia, como se recusasse a ver aquela cena. Chamas alaranjadas carregavam as cinzas para o céu. Sob o fogo da pira apenas um pequeno pedaço de tecido ainda não havia sido queimado. Um último resquício da mortalha com um pequeno sol bordado ao centro. Cortesia de Mike, assim como quase tudo que precisasse ser pago. Olhava fixamente para o fogo, como se esperasse algo acontecer. Mas não aconteceu. O fogo apenas queimou, levando tudo embora: A mortalha, as duas moedas para o barqueiro e, por fim, Liza…

Eu mal conseguia pensar em seu nome, como se aquela simples ação pudesse me destruir por completo. Às vezes eu achava que realmente podia. No bolso carregava a única coisa que tinha restado dela: seu diário. Todas as suas memórias contidas num pequeno caderno. Eu queria me agarrar a ele ao mesmo tempo em que não sabia se suportaria lê-lo.

Não havia muitas pessoas ali. A maioria conhecidos. Apenas alguns irmãos de Liza eram estranhos para mim. Aos poucos as pessoas foram deixando o lugar. O fogo estava enfraquecendo, sem nada para queimar. Jennifer foi a primeira a falar comigo.

— Desculpe por não ter consigo pegar quem fez isso — ela disse.

— Tudo bem — as palavras soaram estranhas vindas da minha boca. Não parecia que eu havia dito isso. A voz está fraca e baixa demais para ser a minha.

Jennifer me abraçou e se despediu. Até encontrar sua irmã, ajudaria Mike em sua empresa. Depois veio Chris, colocando a mão em meu ombro, como se quisesse me apoiar, certificar-se de que eu não cairia. Lembro que disse alguma coisa, mas eu não prestei atenção realmente. Mike foi um dos últimos. Disse estar à disposição sempre que precisasse. Quis agradecer, mas não consegui abrir a boca, apenas fiz um movimento com a cabeça.

Não sei quanto tempo fiquei ali, mas quando dei por mim o fogo já havia sumido. Restando apenas um pequeno monte de cinzas e um pequeno fio de fumaça. Avistei um homem um pouco mais perto da pira. Tinha a pele bronzeada e vestia um terno preto junto com uma calça de mesma cor. Uma camisa cinza chumbo e uma gravata preta completavam suas roupas de luto. Não o conhecia, mas por sua expressão sabia que Liza tinha significado algo pra ele. Talvez alguém da família.

Não havia notado, mas apenas nós dois estávamos ali. Todos já haviam ido embora. Ele olhou pra mim, como se tivesse constatado o fato também. Caminhou até a pira e mergulhou suas mãos nas cinzas ainda quentes, juntando um pequeno monte em sua mão. Estava chocado demais para ter alguma reação. Completamente pasmo, vi o homem caminhar em minha direção, parando de frente para mim.

— Por tantas vezes ela pediu por você… — ele suspirou — Eu os via toda vez que se sentavam juntos pra me observar. Ela parecia tão feliz… — disse tristemente — Fiquei grato por vocês estarem juntos. Talvez você conseguisse salvá-la do próprio desespero… No fim as coisas não foram como imaginei, mas não o culpo por isso.

Ele segurou meu ombro com uma mão. A outra, com o monte de cinzas, se fechou em volta de meu braço esquerdo. Um aperto forte, quase insuportável. O pedaço de pele que ele apertava sob sua palma começou a queimar. Não por causa das cinzas. Estava muito mais quente que as cinzas, muito mais forte. A sensação me fazia lembrar de quando tinha ganhado a tatuagem da corrente, mas era diferente. Mais intensa, muito mais profunda. A dor fez o ar escapar de meus pulmões, mas não cheguei a gritar.

— Leve o pouco que restou dela com você dessa vez. Honre sua morte.

A dor ficou ainda mais intensa. Uma luz se desprendia do ponto onde estava queimando. Fechei os olhos com força, tentando resistir à dor. Repentinamente a dor foi embora. Quando abri os olhos novamente estava sozinho diante da pira. O homem havia sumido. Quando olhei para meu braço havia uma pequena imagem de um sol gravada nele. Diferente da tatuagem da corrente, o sol não era escuro, mas sim totalmente branco, como uma mancha na pele, desprovido de contornos. Olhei para ele sem entender, depois para o monte de cinzas espalhadas pela pira.

— Liza…

Após uma longa e cansativa viagem estava de volta ao meu apartamento. Nunca fora nada de especial. Na verdade ele quase não estava em condições de moradia, mas sempre tinha me sentido confortável ali. Porém naquele momento ele não poderia parecer mais vazio e desconfortável.

Deixei minha mochila ao lado da cama e fui para o banheiro. Deixei que a água fria caísse sobre mim por vários minutos. Após sair do banheiro me sentei na cama. Apanhei a mochila e tirei de lá o diário de Liza. Ainda não o tinha lido, quase não me atrevia a tocá-lo. Tentei ficar confortável sobre a cama enquanto me posicionava para abri-lo. Coloquei os dedos entre a capa e as folhas, mas não consegui mover um centímetro sequer. Estava completamente travado. Por fim desisti e apenas observei sua capa. Era um caderno simples, pequeno. A capa não tinha nada de especial, apenas uma cor alaranjada e um nome, escrito à mão:

Liza Patterson

Aproximei o caderno do rosto, como se de alguma forma estivesse mais próximo de Liza daquela forma. Encostei sua capa na testa, fechando os olhos. Lágrimas silenciosas rolaram pelo meu rosto. Não havia chorado daquela forma desde que ganhara a marca em meu braço. De alguma forma eu sabia que aquilo era apenas o começo para o que viria ao abrir aquele diário. Mas eu tinha que lê-lo. Era o mínimo que podia fazer naquela situação. Devia isso a ela. Com os olhos ainda molhados e a visão embaçada, eu abri o diário de Liza e comecei a ler.