Garota irreal escrita por Lady Vérity


Capítulo 2
Garota Real


Notas iniciais do capítulo

Bem, esse é o segundo e último capítulo, espero que gostem.



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Ela continuava a sentir-se solitária como já vinha se sentindo havia anos, não queria voltar a morar com os pais, eles eram tão preocupados que a faziam sentir-se sufocada, mas também não conseguia confiar em mais ninguém, não conseguia deixar alguém entrar em sua vida, mexer em suas coisas e arruinar tudo como fizeram antes.

Saíra da casa dos pais para morar com o homem que amava, apesar de ser capaz de fazer o que fosse por ele, não foi capaz de entender porque não era mais importante para ele que as drogas. Um dia ela chegara em casa e já não havia mais nada, até mesmo suas roupas ele levara, vendera tudo para pagar o que mais o satisfazia, no guardaroupas restaram apenas algumas fantasias que ela usara em festas e foi o que ela decidiu vestir a partir de então, até poder comprar o que precisava, gostou até, decidiu assim que era uma forma de não ser ela mesma quando estivesse vestida, seria uma forma de não precisar sofrer por ter sido abandonada e enganada por quem amava e ao mesmo tempo seria uma forma de fugir daquele homem e do tempo que passara com ele.

As roupas comuns em seu guardaroupas tornaram-se raras, a cada vez que encontrava uma nova e interessante fantasia, ela comprava, porque uma princesa de contos de fadas nunca fugira com o homem errado, princesas esperavam principes encantados em cavalos brancos conquistarem seu coração e lhes darem um final feliz para sempre, princesas não precisavam ter medo de confiar em alguém, porque se algo ruim acontecesse, o principe iria salvá-la. Com as fantasias ela podia fingir, brincar e esquecer sua solidão e seus medos.

Para os pais mentiu que dera suas roupas para caridade e vestir-se daquela forma era seu novo interesse, nunca contou o que realmente aconteceu com seu namorado, mas com o tempo eles passaram a preocupar-se ainda mais com ela, porque ela parecia sozinha e infeliz, porque ela não parecia se interessar em ter qualquer tipo de relacionamento, fosse de amor ou amizade, porque ela não era mais a garota que eles cuidaram toda a vida, ela parecia uma desconhecida em roupas estranhas, isolando-se com seu livro de capa azul.

Ela nunca tivera muitos amigos e a maioria das pessoas não apreciavam seu novo jeito de se verstir, não era normal, mas ela passou a não se importar com os risos, as zombarias e os olhares estranhos, porque era bom fingir, era bom não ser ela mesma e quando ela fingia, ela podia suportar tudo.

No tempo que passou com o namorado drogado, muito sobre ela mudou, suportando a forma como ele se transformava inesperadamente, um sorriso que se tornava agressão, ela era infeliz mesmo antes de ele abandoná-la, ela acreditava que era amada no início, depois sentia apenas medo, porque ele ameaçara matá-la se o deixasse, ele jurava não conseguir sobreviver sem ela, mas tudo o que ela pôde sentir quando voltou para a casa vazia foi alívio, descobrir que ele nunca mais voltaria foi reconfortante, mesmo que nunca pudesse voltar a olhar o mundo como antes de conhecê-lo, mesmo que nunca pudesse voltar a confiar em algém e precisasse sentir-se outra pessoa para ter vontade de sorrir.

Então, ela acordara naquela cama de hospital, confusa e com seus pais chorando de felicidade, sem saber o que havia acontecido para estar alí e há quanto tempo não acordava.

Nada parecia certo, sentia que algo estava faltando, passara meses sem abrir os olhos, sofrera um estranho acidente e tudo parecia fora do lugar. Mesmo após voltar para casa e vestir suas fantasias, não conseguia fingir, porque queria ser ela mesma, sentia que enquanto esteve em coma encontrou um motivo para voltar a ser ela mesma todo o tempo.

Os pais lhe falaram sobre um namorado que lhe levava flores no hospital, um rapaz que estava com ela quando foi atropelada, que foi visitá-los e reconfortá-los, um rapaz que sofreu muito com o que aconteceu a ela , e eles não podiam culpá-lo por não conseguir continuar a visitá-la, não podiam culpá-lo por ter ido embora sem despedidas, os médicos não acreditavam que ela acordaria. Ela não se recordava dele, não o conhecia porque ele não era seu namorado, mas queria conhecê-lo, saber porque mentiu para seus pais, o que ele pretendia. Talvez ele apenas quisesse consolar um casal que temia a morte da filha, uma daquelas pessoas que decidem fazer uma boa ação contando algumas mentiras na tentativa de tornar a morte menos dolorosa, mas ele contara mentiras sobre ela, sobre como ela era feliz, como ele poderia saber os tipos de mentiras que ela contaria para reconfortar os pais? Ela queria saber quem ele era, mas era impossível, os pais não tinham qualquer informação sobre ele, ninguém tinha.

Enquanto deitava em sua cama ou andava pelos cômodos da casa dos pais ou da sua, sentia falta, mas não sabia do quê, tinha a sensação de que tudo estava errado, a cama, os móveis, a casa, os cheiros. Muitas vezes sonhara com um homem, mas nunca conseguia lembrar seu rosto, acreditava que andara sonhando com o homem de quem seus pais falaram, seu suposto namorado e isso não era agradável, porque ela sempre acordava com a sensação de que fora muito mais que um sonho, nada era nítido, mas parecia real, como se ela realmente conhecesse a sensação de estar com ele, como se cada vez que ela sonhasse se lembrasse de algo que já aconteceu, como se cada sonho fosse um retrato de suas lembranças. Por meses ela sentiu-se como se estivesse acostumada a ter uma companhia, a ouvir uma voz enquanto andava pela casa, a deitar ao lado de alguém e de repente tivesse perdido isso.

No iníco do verão, ela vestiu-se com um vestido azul claro como o céu pálido da manhã, com delicadas luvas de renda e um guarda chuva combinando, as crianças adoravam vê-la, era como observar algum personagem de livro tomando vida e caminhando no mundo real, ela já se acostumara ao que sua aparência causava nas outras pessoas, mas as pessoas nunca se acostumariam a ela, ela tinha a sensação que ninguém nunca a conheceria de verdade, ninguém nunca saberia como ela era sem aquelas roupas e aquele fingimento, mas que alguém já a conheceu, que ela já permitiu, uma vez, em algum momento, que alguém a visse de verdade, sem fingimentos e com medo.

Foi em sua livraria favorita, que mais parecia uma biblioteca antiga, que ela teve a sensação que não iria conhecer alguém, mas sim reconhecer.

Ele estava encostado a uma das prateleiras, com um livro de capa azul nas mãos, parecia não fazer a barba nem arrumar os cabelos há dias, assim que o viu foi dominada pela sensação de familiaridade, mesmo que não se recordasse do rosto dele. Caminhando lentamente por entre as pilhas de livros, ela o observou, tentando lembrar-se de quem ele era, de onde o conheceu, mas não conseguiu, sua memória não o conhecia, mas de alguma forma sentia que ele já fez parte de sua vida. Vagarosamente aproximou-se sem se fazer ser ouvida, parou em frente a ele e só depois de alguns minutos ele percebeu sua presença e ergueu os olhos do livro para ela.

– É meu livro favorito. – Ela disse séria, indicando a capa do livro que ele segurava.

Ele não respondeu imediatamente, encarou-a surpreso, olhou-a de cima a baixo e sorriu de forma estranha.

– Foi difícil achar esse livro... Passei meses procurando, só... Me lembrava da capa... – Ele disse devagar, com suavidade.

– Você gostou?

– Não tenho muita certeza. – Ele disse, olhando o livro e depois voltou os olhos para ela com um suspiro – Pensei que você tivesse morrido... Me senti como se você tivesse morrido. Nunca tive coragem de voltar ao hospital e... Você nunca me procurou.

– Mas eu não sei quem você é, só sinto que eu deveria. – Ela disse com certo desconforto, tendo a certeza agora de que aquele estranho era o homem com quem andara sonhando.

Ele sorriu de jeito triste.

– Você não se lembra de nada...

Por um moment o ela apenas sustentou o olhar dele, estudando-o, forçando-se a lembrar, ela lembrava-se de tudo, não muito da noite do acidente, mas recordava-se de todo o resto que era possível e ele não estava lá, em nenhum lugar de sua memória.

– Você é meu assassino. – Ela disse com um pequeno sorriso, lembrando-se subtamente de sua pequena piada pessoal.

Ele fez uma careta, desviando os olhos para longe.

– Você se lembra disso... – Ele disse baixinho, quase sem querer e fechando os olhos falou rápido, a voz saiu trêmula, desesperada – Eu não queria fazer aquilo, você me assustou e foi um acidente, mas eu sei que foi minha culpa e...

– É o que a garota fica repetindo no livro. – Ela o interrompeu com um grande sorriso – Você não leu nada, não é?

Ele apenas balançou a cabeça em negativa e ela começou a andar animadamente em direção a saida, falando com ele, para que ele a seguisse.

– Bem, trata-se de um assassino profissional, ele recebeu uma quantia absurda pra matar uma garota , mas ele não conseguiu porque havia algo nos olhos dela, algo fascinante, e ela se apaixonou por ele, porque ele era seu assassino, mas a salvou... Eu adoro esse livro... – Ela terminou de forma animada, atravessando a rua.

– Eu sei... – Ele murmurou de cabeça baixa.

– Você realmente acha que sabe muito sobre mim, não é? Mentindo por aí que é meu namorado, visitando meus pais, me levando flores, procurando o livro que gosto... Mas porque não estava no hospital quando acordei e porque não está em nenhuma das minhas lembranças? Você por um acaso é algum maníaco que ficou vigiando minha vida?

– Não! – Ele olhou-a com indignação e parou à sombra de uma árvore, cruzando os braços.

– Então prove. Prove que sabe quem sou de verdade.

– Você se veste assim porque uma pessoa detestável vendeu suas roupas pra pagar drogas. Você tem medo que essa pessoa volte e gosta de fingir que é outra pessoa pra não pensar em quem realmente é . E na noite do acidente... – Ele falava com voz baixa, olhando-a naqueles grandes olhos infantis e cheios de vida e expectativa, parou por um momento, nervoso, vislumbrou o vento jogando os cabelos negros sobre o rosto dela e respirou profundamente, escolhendo bem as palavras para continuar – Você estava sozinha, lendo seu livro perto das flores, se distraiu e ficou até de madrugada lendo... Foi o que você me disse...

Ela tentou lembrar-se da noite do acidente, mas não conseguiu, àquela noite especificamente parecia não existir, então ela percebeu que fora naquela noite que ela o conhecera, pois era a única noite da qual nada se recordava.

– Você me conheceu nessa noite? Mas porque você seria tão especial pra eu te contar...

Ela interrompeu-se e ele continuou, desconfortável.

– Eu estava fugindo, esbarrei em você, você me chamou para devolver o ísqueiro que deixei cair... Você me assustou e eu te assustei com uma faca. Você tropeçou e caiu e aí... Aconteceu o acidente... Foi minha culpa, mas eu não quis que você caisse, teria evitado se pudesse.

Ele parecia preocupado e ela apenas intrigada.

– Então... Nós não nos conhecemos? Você esbarrou em mim e eu sofri um acidente? E quando foi que eu te falei sobre mim?

– Você... Era como um fantasma, eu pensei que estava ficando louco... Talvez eu realmente tenha ficado louco... Talvez nada daquilo tenha sido real e você não deve ser real...

– Você quer dizer que enquanto estive no hospital você falou com minha alma? Então foi isso o que fez você consolar meus pais e me visitar?

– Você ficava na minha casa, reclamava o tempo inteiro pra me obrigar a deixar tudo como queria e me atormentava com essa história de que sou seu assassino... Você gostava de conversar e de ficar na minha janela...

Ele sorriu de forma nervosa e ela assentiu, pensativa.

– Posso ver sua casa? - Ela pediu de repente.

Ele assentiu e em silêncio levou-a até sua casa.

Assim que botou os pés naquele lugar, ela sentiu que tudo estava certo de novo, não podia se lembrar de nenhum detalhe que existia alí, do sofá puído, da cozinha pequena ou das janelas do quarto, mas sentiu-se bem como não se sentia desde que acordara no hospital e percebeu que era de estar alí que sentia falta, de estar com ele. Não se lembrava dele e nunca lembraria, como ele lembrava-se do que aconteceu enquanto o corpo dela dormia, mas não importava, porque sentia que ele a conhecia sem aquelas roupas, ele conhecia os segredos que ela escondia do resto do mundo e a fazia querer ser ela mesma de novo, sem fingir, sem ter medo e isso era somente o que importava.

FIM


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Notas finais do capítulo

Muito obrigada a quem leu. Eu realmente gostei de escrever isso, sabem?! Não importa o que digam por aí eu amo finais felizes *-*.



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