Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 9
Desorientado


Notas iniciais do capítulo

Hello, hosters! Bom, queria agradecer as meninas que me acompanham desde o início e nunca me abandonaram, deixando sempre comentários maravilhosos. Esse capítulo é para vocês, lindas Msnise, Kah Borel, Khaty e Rain.



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Cal


A última viagem até as cavernas de Jeb pareceu ser a mais longa de todas.

Todos os humanos da célula de Nate, assim como todos os seus pertences e suprimentos do antigo esconderijo foram transportados em segurança para o deserto. Eu e Nate fomos os últimos a nos deslocarmos porque estávamos ocupados e preocupados demais com a segurança dos outros e viemos atrás com intuito de verificar se a movimentação tão intensa ocasionada pela mudança não havia atraindo demasiadamente a atenção dos buscadores. Apesar dos nossos temores, nada de mau aconteceu em nosso percurso.

Todos estavam unidos e em segurança, contudo eu ainda estava inseguro. Eu agora convivia com Samantha e a presença dela era desconcertante para mim. Já havia passado várias semanas desde o incidente na sala de banhos e ainda assim ela não falara uma única palavra comigo nas vezes em que estive perto dela. Bom, ela também não falava com nenhuma outra alma, deixando clara a aversão que sentia por nós. Pelo menos ela era silenciosa, ao contrário de Lacey que era barulhenta e desagradável.

— Então, Cal, está se acostumando com o novo lar? — Jeb perguntou quando cheguei à cozinha. Agora ela estava bem mais cheia do que de costume e teríamos que nos habituar a essa superlotação. Quando o único poço que alimentava nossa célula começou a secar, nós instantaneamente saímos em busca de um novo esconderijo, mas Jeb ofereceu sua casa para nós e de bom grado aceitamos. Voltaríamos para nossa casa assim que as monções retornassem.

É claro que houve muitas discussões e pessoas contra, mas no final a segurança de todos era prioridade e optou-se pela unificação dos grupos. Cerca de sessenta e cinco sobreviventes, entre eles três almas, agora viviam em conjunto, no entanto a harmonia estava um pouco abalada e o clima tenso já que uma aglomeração sempre gera divergências. Se mesmo Peg, que morava na caverna há mais de um ano ainda sofria com o desprezo, comigo a situação era pior. Nate me dizia apenas para ignorá-los.

— Estou sim — respondi para Jeb. Não era uma mentira, mas também não era uma verdade completa. Por melhor que a comunidade fosse, eu me sentia bastante incomodado com a aversão de algumas pessoas. Samantha era uma delas, no entanto ela se mantinha afastada não só de mim, mas de quase todos.

O jantar passou rápido e eu já estava me preparando para dormir quando Nate me chamou para ajudar em uma busca. Fiquei sabendo que Paige havia sumido há uma hora e Andy já estava enlouquecendo. Apenas alguns moradores das cavernas foram chamados para ajudar nas buscas.

— O que você acha que aconteceu? — Perguntei a Nate.

— Não sabemos nem fazemos ideia. Estão temendo que ela tenha caído no fosso na sala de banhos.

— Vamos torcer para que não tenha sido isso! — falei já apavorado. Eu não suportaria a morte de mais um humano no mundo.

Procuramos por toda a extensão da caverna e nada da garota aparecer. Eu então me afastei do grupo e decidi ir até a sala onde os garotos jogavam bola, um lugar grande e que mesmo de dia não era possível observar na sua totalidade. Eu não sabia definir qual o seu real tamanho e nem aonde iam dar os córregos que a cortavam ao fundo. Fiquei parado no escuro por alguns minutos, quando então ouvi um barulho.

Procurei por todos os lugares, mas não consegui identificar de que direção vinha o som, ele parecia muito longe e era entrecortado pelo barulho das fontes. Penetrei no lugar andando no escuro até o que julguei ser o fundo e depois de minutos a voz foi ficando mais clara.

Havia uma bifurcação na profundidade da caverna e de lá o ruído provinha. Guiando-me apenas pelo som segui em frente e tal foi a surpresa que tive quando vi Paige jogada no chão. Em cima dela, um homem tentava tirar suas roupas.

Fiquei paralisado. Eu sabia o que o homem estava fazendo, porém não sabia como agir naquele momento. A única iluminação do lugar provinha de uma lanterna no chão, e se eu saísse do lugar acho que nem saberia como voltar. Antes que eu conseguisse pensar em algo o homem olhou para mim.

Era difícil para mim acreditar no que estava vendo. Clint era membro da célula de Nate há anos e sempre me pareceu honrado. No entanto, havia sequestrado uma mulher e estava prestes a violá-la.

Ele largou Paige, que estava desacordada, e veio para cima de mim me dando um soco forte no olho direito. Tentei segurá-lo, mas era quase impossível tamanha a sua fúria. Eu não poderia deixá-lo machucar Paige e por isso, lutando contra a minha essência pacífica, eu permiti que a adrenalina fluísse e acertei-o também na parte esquerda do rosto fazendo-o me soltar por uns instantes. Aproveitei a oportunidade e chutei com força seu estômago. Clint se desequilibrou, mas antes de cair me levou junto com ele ao chão. Após socá-lo no queixo consegui me levantar, porém minha cabeça estava atordoada devido ao baque. O homem então me pegou pela gola da camisa, lançou meu corpo com toda força na parede e novamente fui atingido por outro soco. Nesse momento eu só pensava no quanto humanos poderiam ser cruéis e voláteis, mesmo que no fundo eu soubesse que poucos escapavam do estigma de monstros.

— Alma idiota! — ele bufou quando caí no chão. — Você ...

O tiro foi seco e o estampido alto. Clint colocou a mão no peito, as palavras ainda morrendo em sua boca. O cheiro de queimado e sangue se espalhou pelo lugar. Olhei para a direção dos disparos e Samantha estava parada na entrada da bifurcação com o rosto incrédulo e a arma em punho.

Senti alívio por estar vivo, alegria pelo salvamento de Paige, tristeza pela violência necessária e medo do que os humanos eram capazes. No entanto percebi que assim como eu Samantha só estava tentando ajudar. Ela parecia em transe e não movia um único músculo, com a arma apontada para frente como se ainda houvesse algum perigo. Ela me olhou assustada e depois se recompôs lentamente, a respiração compassada. Então passou correndo por mim, se agachou e apalpou a garota verificando seus pulsos e pescoço. Depois fez o mesmo com o corpo do homem no chão.

— Ela está bem, precisamos sair logo daqui. Consegue se levantar? — Samantha disse estendendo a mão para me ajudar, porém eu não conseguia me mexer. — Anda, cara, nós não temos todo o tempo do mundo — sua impaciência me fez aceitar a ajuda. Sua mão estava suada e fria quando a toquei e ao fitar seu rosto percebi o quanto estava pálida e assustada com o que ocorrera.

— Você vai ter que carregá-la, Cal. Temos que levá-la urgentemente para Doc — suas palavras saíram entrecortadas e me espantei ao ouvir pela primeira vez pronunciar meu nome. Apenas assenti.

Embora machucado não foi difícil carregá-la, Paige era uma mulher pequena. Eu só conseguia pensar no horror do ocorrido, no que teria acontecido caso não tivéssemos a salvado e do que teria ocorrido a mim se não fosse Samantha, que ia a frente, iluminando o caminho. Pisando em ovos e com toda cautela, resolvi sanar minha curiosidade.

— Como nos achou?

— Vi uma luz no fundo da sala de jogos e resolvi segui-la. Deveria ser você vasculhando área. O resto você já sabe.

— Obrigado. Por nos ajudar.

Ela não respondeu, apenas respirou fundo, descontente. O caminho inteiro foi feito em silêncio, cada um perdido em seus pensamentos. Ao avistarmos a entrada do consultório ela apressou o passo.

— Não precisa ir tão rápido reclamei já entrando e depositando Paige em um catre. Não havia ninguém no lugar. — Ela está bem.

— Precisamos contar logo para Jeb. Se demorarmos, Clint irá morrer.

— Eu achei que era isso que você queria. Você atirou nele.

Samantha, que estava de costas, parou abruptamente. Ela se aproximou de mim e, me olhando com os olhos carregados de fúria, praticamente cuspiu as palavras.

— Então é isso que você acha, alminha? Que eu sou uma assassina? Não, Cal, eu não sou uma assassina, não sinto nenhum prazer em machucar os outros e só atirei naquele homem porque foi necessário. Vocês almas se acham melhores do que nós, não é? Mas vocês não são! E se a cada dia nos tornamos piores é tudo culpa de vocês que nos condenaram a essa vida insólita! Se algum dia eu machuquei uma alma foi apenas para proteger Adam, foi para me proteger. Não pense que eu tenho orgulho disso, Cal, porque eu não tenho.

Ficamos em choque por longos segundos, apenas nos olhando. Ela balançou a cabeça em desaprovação e saiu. Esperei ela retornar, mas apenas Doc, Jeb e Andy entraram desesperados e me enchendo de perguntas, que eu respondi mecanicamente. Era a segunda vez nessa caverna que eu era agredido por alguém e a dor emocional era maior que a física.

Depois de ter meu rosto curado, rumei para o meu quarto. No escuro, lágrimas rolavam na minha face, uma angústia cortante esmagando o meu coração. Os humanos eram seres egoístas, dissimulados, violentos e prepotentes, mas do outro lado da moeda havia pessoas realmente boas e que não mereciam a vida que agora eram obrigadas a levar. Esse planeta era o mais ambíguo de todos, maldade e bondade; amor e ódio, lealdade e traição andando de mãos atadas.

Desorientado, esbarrei em alguém. A luz baça da lua que penetrava fracamente pelas frestas foi suficiente para que eu visse o seu rosto.

— Não pode ser! Saia da minha frente.

— Eu preciso falar com você, Samantha — minha voz era quase um tom de súplica.

— O que você poderia dizer para fazer eu me sentir bem, Cal? Nada. Nada vai trazer o meu mundo de volta, a minha família, a minha vida. Agora me dê licença.

— Me perdoe, por favor. Eu não devia ter dito aquilo. Desculpe-me.

Ela apontou o dedo para mim e abriu a boca, mas nem um som saiu dela. Abaixando as mãos e depositando-as na cintura ela me olhou menos irritada.

— Me perdoe por julgá-la mal — disse sinceramente a ela.

Sua expressão mudou de fúria para receio. Parecia que estava analisando minhas palavras cuidadosamente. Pela primeira vez a vi suavizar a expressão dos olhos e sorrir. Sim, Samantha sorriu. Um sorriso cansado e sarcástico, mas ainda sim um sorriso.

— Cal, eu estou morta de cansada. Isso tudo é inédito para mim. Por mais que eu me esforce é algo difícil de acreditar. Você não faz ideia do que passei e do que já vivi no mundo lá fora. Por mais que os outros confiem em você eu não consigo.

— Sei disso — respondi tristemente. — Mas nos dê uma chance, por favor. Essa vida não é inédita só para você como para mim também. E para Sunny e Peg. Traímos nossa espécie. Nos arrependemos até de sermos nós mesmos...

Mal consegui terminar a frase. Estávamos nós dois expostos ali na escuridão e eu não me importava mais com nada. Meu único desejo era mitigar a dor que me invadia.

— Cal... preciso de tempo para pôr as coisas em ordem dentro da minha cabeça. Não posso garantir que seremos amigos, mas prometo que não farei nenhum mal a você. Eu reconheço que você é um cara legal e que ajuda a comunidade, por isso tentarei ser mais compreensiva. Isso é tudo que posso te garantir por hora. Agora me dê licença.

Então ela se foi, me deixando sozinho e absorto em meus pensamentos. No breve momento que a tinha encarado vi a profundidade da dor em seus olhos e senti que ela não era um monstro, não como muitos humanos criminosos que dominavam e fazia atrocidades antes da chegada das almas. Entretanto, apesar da tristeza que sentia por causa dos últimos acontecimentos me senti um pouco melhor por ter conseguido o reconhecimento dela.

E isso era mais do que eu poderia pedir.


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Notas finais do capítulo

Até a próxima!



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